'Não quero ser exemplo para ninguém, só quero ser irmão de todos', diz Júlio Lancellotti em 1ª missa após veto
Por Anna Virginia Balloussier / Folhapress
Ali não havia dúvida: padre Júlio Lancellotti é um perseguido. Havia, isso sim, eletricidade política de sobra na primeira missa conduzida pelo clérigo desde que dom Odilo Scherer o proibiu de transmitir a celebração pela internet.
"Não quero ser exemplo para ninguém, só quero ser irmão de todos vocês, especialmente irmão dos mais pobres, dos abandonados", disse num dos momentos de maior exaltação na manhã deste domingo (21).
O padre liderou a cerimônia, agora só na modalidade presencial, na capela da Universidade São Judas, na Mooca, zona leste de São Paulo.
Há uma semana, ele anunciou que as celebrações semanais deixarão de ser exibidas ao vivo pela internet. Também afirmou que não deve continuar atualizando seus perfis nas redes. Sua última publicação no Instagram, uma discussão teológica, é de 10 de dezembro.
A decisão partiu do arcebispo da Arquidiocese de São Paulo, por motivos ainda não esclarecidos —na ocasião, Lancellotti divulgou uma nota falando em "período de recolhimento temporário", e dom Odilo disse à Folha que o veto é "assunto de um bispo com seu padre". A Arquidiocese determinou uma auditoria financeira na paróquia de São Miguel Arcanjo, liderada há 40 anos por Lancellotti.
A missa começou com o clérigo acendendo velas para o Ocidente, que chamou de "prepotente", e para o norte, descrito como o lar dos poderosos, em contraposição ao sul global. "Quem não sabe onde é o norte é um desnorteado."
O público lotou a capela e aplaudiu numerosas vezes. Um grupo de mulheres transgêneros levantou um cartaz onde se lia "o amor ao próximo não pode ser silenciado". Uma delas, Rafaella Stephanny da Rocha, 29, disse estar lá para apoiar o padre "que me ajuda muito".
A pregação de Lancellotti, conhecido por seu trabalho social, teve a voltagem social de praxe. Abordou a violência contra mulheres ("nesta cidade marcada por feminicídio, Maria é sinal de vida") e mirou a elite. "Os lugares mais iluminados de São Paulo" são onde "não entra Jesus, lá não entram os pobres", afirmou. "Essas luzes ofuscam e não fazem chegar Jesus."
Evocou mais adiante um lema seu: "Força e coragem, ninguém desanime!". Depois disse que ele próprio repetia aquelas palavras para ver se se convencia. Comungou, recebendo a hóstia, rito central na Igreja Católica.
Com flores de papel distribuídas e erguidas no ar, cortesia do movimento Flores pela Democracia, Lancellotti encerrou sua participação incensado pela plateia.
O líder religioso abriu espaço para Raul Huertas, porta-voz da pastoral da comunicação da paróquia, ler um texto em desagravo a ele. "Quando ferem o padre, ferem também nossa paróquia", disse.
Huertas afirmou que há uma tentativa de incriminar e caluniar o clérigo que "ousa amar o próximo para além do discurso".
"Muitos dizem que o padre é o santo, e somos suspeitos para opinar sobre isso. No entanto, podemos afirmar que o seu dia a dia é profundamente humano, pois ele faz exatamente o que Jesus nos pediu."
Lancellotti voltou à palavra e fez propaganda de itens vendidos pelo bazar da paróquia. Um deles é uma camisa que pode ser lido como alusão ao lema bolsonarista "meu partido é o Brasil": "Meu partido é o pão partido".
Abaixo-assinado
Antes da missa, Elisa Huertas, também da pastoral de comunicação, anunciava um abaixo-assinado em favor do padre que contava com centenas de assinaturas. "Muitos não católicos" por ali, excepcionalmente, e expectativa de público dobrado em relação a missas passadas, ela estimava.
A professora Teresinha Pinto, 68, afirmou ter certeza de que o clérigo é alvo de perseguição. Tudo culpa de dom Odilo, disse, imputando-lhe carga ideológica. "É um cara ligado à extrema direita, sempre foi."
"Não tem nenhum sentido você proibir um padre que tenha um trabalho consistente na rua, que tenha um trabalho de evangelização, de transmitir uma mídia. A missa é muito bonita, vêm pessoas que nem são católicas", afirmou. "Hoje poucos padres têm a audiência dele. Quando ele está falando nas redes, ele está evangelizando."
O casal Luzanira Santana, 51, Donivan Paladino, 61, foi à capela com camisas estampadas com a silhueta do padre, compradas numa manifestação pró-Palestina na avenida Paulista. O que aconteceu com Lancellotti foi "um absurdo, cerceamento de liberdade", disse ela. "Eles que pregam tanta paz estão privando a pessoa de ser respeitada, de realizar uma obra assistencial tão importante."
"É censura, né?", engatou Donivan.
