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Direito se torna emancipador com pessoas negras, diz juíza citada para vaga no STF

Por Ana Gabriela Oliveira Lima | Folhapress

Direito se torna emancipador com pessoas negras, diz juíza citada para vaga no STF
Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil

Para a juíza federal Adriana Cruz, 55, a presença de mais negros no Judiciário é um passo necessário em uma sociedade que ainda precisa ir para o divã quando o tema é o racismo.
 

Secretária-geral do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) de setembro de 2023 a setembro de 2025 e atual titular da 5ª Vara Federal Criminal no Rio de Janeiro, ela diz à Folha que uma Justiça mais diversa ajuda a aperfeiçoar a democracia ao fazer com que mais pessoas vejam os "espaços que decidem as suas vidas como espaços em que elas também podem estar à mesa".
 

Adriana é um dos nomes citados por entidades como Fórum Justiça, JUSTA e Themis, que pleiteiam a indicação de uma mulher para a vaga aberta no STF (Supremo Tribunal Federal) com a aposentadoria de Luís Roberto Barroso.
 

Ela diz que a diversidade nos tribunais auxilia magistrados brancos a exercerem melhor a profissão ao conviverem ao lado de juízes com vivências como a dela, que já foi "parada pela polícia diversas vezes" e teve a experiência de não ser reconhecida como autoridade pelo réu.
 


 

PERGUNTA - O nome da sra. é lembrado por entidades que pedem uma mulher na vaga do STF. Gostaria de ser nomeada para o cargo?
 

ADRIANA CRUZ - Eu preferiria não falar nesse assunto.
 


 

P. Que diferença faria uma mulher negra no STF?
 

AC - Uma pessoa negra no sistema de Justiça me parece essencial. É um caminho natural de um país que tem buscado aprofundar a sua democracia. É o desafio de que todas as pessoas tenham acesso a todos os espaços, não só pessoas negras, mas indígenas, pessoas com deficiência.
 

A ampliação de acesso —e que as pessoas possam enxergar todos os espaços que decidem as suas vidas como espaços em que elas também podem estar à mesa— é praticamente uma consequência dos nossos comandos constitucionais e, principalmente, desse anseio por maior democracia e maior inclusão.
 


 

P. - Que sinais o Brasil dá a pretos e pardos ao, em 134 anos de história do Supremo, nunca ter nomeado uma mulher negra como ministra da corte?
 

AC - Esse tema das nomeações é um pouco delicado para mim. Eu sou juíza de carreira, e a nomeação é uma prerrogativa dos presidentes. Numa chave mais ampla, acho que vale a gente questionar por que pessoas negras, indígenas e com deficiência —que compõem a sociedade e têm as suas vidas afetadas não só pelo Supremo, mas por tantos outros espaços de decisão— não têm a mesma possibilidade de participar.
 

A sociedade precisa refletir sobre quais caminhos quer construir para que todo mundo possa estar à mesa. É disso que fala a nossa Constituição, que começa com essa declaração tão óbvia, mas tão necessária, de que todos são iguais perante a lei e de que queremos construir um país livre de todas as formas de discriminação.
 

Fazer isso não é só evitar que as pessoas sejam atacadas em razão daquilo que são. É também fazer com que possam ter acesso a todos os bens da vida e possam viver a vida em plenitude, livres de embaraços, tropeços e obstáculos que são criados artificialmente. Porque o sexismo e o racismo não são dados da natureza, são criações nossas como sociedade.
 


 

P. - A pauta racial enfrenta mais resistência que a de gênero?
 

AC - A minha experiência de vida me demonstra que sim. É muito mais palatável para as pessoas enxergarem a desigualdade entre homens e mulheres do que enfrentar a questão racial. É importante conectar isso com a nossa história. Vivemos em um país que proclamou a democracia racial e no qual, no período da ditadura, não se podia falar em racismo.
 

A gente viveu em negação. É um país que precisa ir para o divã para lidar com a sua negação. Ninguém é racista, mas ao mesmo tempo as pessoas reconhecem que o racismo existe. O sexismo, o racismo, todas as formas de discriminação, não são dados da natureza, não são a lei da gravidade, são construções que beneficiam alguém, um determinado grupo.
 


 

P. - O CNJ tem fomentado ações para a igualdade racial e de gênero? Tem sido o suficiente?
 

AC - Suficiente vai ser o dia em que a gente tiver realmente um cenário de igualdade. Mas eu acho que as medidas estão no caminho certo. A política de cotas hoje é consolidada e garantiu um cenário completamente diferente daquela magistratura na qual ingressei, em 1999.
 

Até muito pouco tempo atrás, éramos únicos nos nossos tribunais espalhados pelo país. Hoje a gente já começa a ver os colegas chegando. A política de cotas se consolidou como algo efetivo e eficiente.
 


 

P. - Apesar do patamar mínimo de vagas para candidatos negros nos concursos de magistratura, o cenário é de vagas não preenchidas. Como melhorar a inclusão?
 

AC - O CNJ produziu um boletim em que se buscou entender com os bolsistas suas maiores dificuldades. E é isso: tempo e tranquilidade para estudar. Hoje em dia as pessoas fazem concurso no país inteiro. Imagina ir fazer uma prova, pegar 20 horas no ônibus e dormir na rodoviária porque não tem dinheiro para o hotel. Em que condições vai fazer essa prova?
 

Todo mundo que já estudou para concurso ou para qualquer coisa na vida sabe que é isso que é preciso para estudar: ter paz. A gente [CNJ] buscou abrir essa frente de fortalecimento desses candidatos para que possam chegar a novas etapas com capacidade competitiva.
 


 

P. - Falando do CNJ, que balanço a sra. faz sobre esse tempo como secretária-geral?
 

AC - Como juíza federal, a gente acaba, no dia a dia, muito fechada no nosso universo. No CNJ eu lidei com questões da Justiça Estadual, do Trabalho, Militar. A gente passa a olhar não só para a diversidade das Justiças, mas também para a do país. O Brasil é muito diverso, e isso se reflete nos nossos processos.
 

Conseguimos responder aos comandos do ministro Barroso, que criou um portal único de acesso aos processos do país inteiro e, na área de direitos humanos, fez resolução do conselho sobre as certidões de óbito dos mortos pela ditadura e para as mães de Acari, em uma chacina que aconteceu há 35 anos.
 


 

P. - A sra. lida com o direito desde 1988, quando entrou na graduação na UFRJ. Que balanço faz nesse campo desses anos para cá em relação à população negra?
 

AC - Vejo muitos avanços. Nos meus cinco anos de faculdade, a questão racial nem sequer foi mencionada na minha formação. Hoje há várias universidades com núcleos de pesquisa para tratar do tema. Essa perspectiva também passou a estar presente no cotidiano do Judiciário. Não quero parecer Poliana e dizer que está tudo maravilhoso, mas vejo uma evolução, porque isso era um "não assunto".
 

Hoje há um protocolo de julgamento com perspectiva racial, instituído por uma resolução do CNJ. A gente tem ainda muito por fazer, principalmente para que as pessoas negras se sintam bem atendidas, mas é impossível a gente dizer que não avançou.
 

Sou uma otimista com os pés no chão. É um pouco aquela fala: sai da minha frente com seu racismo que eu vou passar com a Constituição. Porque é a Constituição que diz que a gente tem o dever ético, moral e legal de tratar todas as pessoas de forma igualitária, com respeito e consideração.
 


 

P. - Como tornar o direito um instrumento emancipador para a população negra?
 

AC - Acho que com a gente estando à mesa. Para participar das decisões, da construção das normas, de como elas são interpretadas. Isso tem sido feito por todos os movimentos da advocacia, da magistratura, dos Ministérios Públicos.
 

Quando a gente fala da inclusão de mulheres, pessoas negras, com deficiência e indígenas é porque a vida de todas essas pessoas é afetada por esses espaços. É muito importante que o olhar dessas pessoas esteja presente neles.
 


 

P. - Ter mais pessoas negras no Judiciário ajuda a Justiça a enxergar o racismo?
 

AC - Com certeza, até porque espaços diversos produzem decisões de maior qualidade. Eu tenho muitos colegas que, ao longo da vida, se surpreenderam pelo fato de eu já ter sido parada pela polícia diversas vezes.
 

Pessoas que nunca foram paradas pela polícia na vida foram paradas quando estavam comigo. Para elas isso é uma surpresa. A convivência com a diferença só nos enriquece. Espaços monolíticos tendem a ser mais empobrecidos.
 


 

P. - Foram no estado do Rio todas as vezes que a sra. foi parada pela polícia?
 

AC - Sempre aqui, é onde eu moro.
 


 

P. - A sra. já comentou ter vivido a experiência de não ser reconhecida como autoridade pelo réu.
 

AC - Acho que essa experiência todos os juízes negros e negras já tiveram. Porque a gente não corresponde ao imaginário das pessoas do que é um juiz.
 

Mas acho que estamos caminhando para que esse tipo de episódio se torne cada vez mais raro. Porque, para além de um constrangimento —esse não é o ponto central da minha colocação—, esse estranhamento demonstra que as pessoas não entendem aquele espaço como passível de ser ocupado por qualquer pessoa.
 


 

RAIO-X | Adriana Alves Cruz, 55
 

Formada em direito pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), tomou posse na Justiça Federal em 1999. Comandou a Secretaria-Geral do CNJ de setembro de 2023 a setembro de 2025, na gestão do ministro Luís Roberto Barroso. É titular da 5ª Vara Federal Criminal no Rio de Janeiro e professora de direito penal na PUC-Rio.