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Entrevista

Pesquisador avalia que ausência do Carnaval por mais um ano trará grandes danos socioeconômicos - 28/02/2022

Por Vitor Castro

Pesquisador avalia que ausência do Carnaval por mais um ano trará grandes danos socioeconômicos - 28/02/2022
Foto: Bahia Notícias

Se não fosse a realidade imposta mais uma vez pela pandemia da Covid-19, baianos, soteropolitanos e turistas estariam nesta segunda-feira, 28 de fevereiro, lotando as principais avenidas dos circuitos do Carnaval para aproveitar a maior festa popular do país.  

 

Desde de março de 2020 até então, lá se vão dois anos sem a folia momesca. O Bahia Notícias ouviu o professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e considerado um dos maiores pesquisadores sobre o Carnaval do Brasil, Paulo Miguez, para entender os impactos culturais e socioeconômicos que a ausência da festa traz. 

 

Miguez trouxe um breve histórico do surgimento do Carnaval no mundo e sua chegada no Brasil pela Bahia. Diferentemente do que apostam alguns pesquisadores, Paulo Miguez garante que a festa ganhou espaço no Brasil após receber na Bahia os primeiros moldes do que seria o Carnaval que temos hoje. Confira abaixo a entrevista na íntegra. 


Primeiro eu gostaria que o senhor explicasse/conceituasse para o nosso leitor este Carnaval que nós temos hoje. De onde ele vem e qual a relação com o povo baiano? 

O Carnaval é para a gente uma das marcas mais visíveis, coloridas, vibrantes e mais importantes do nosso corpo de cultura e isso é desde de sempre. Não é algo que se remonte aos tempos mais próximos. O Carnaval sempre foi um elemento muito forte da vida cultural baiana. E eu diria, sem sombra de dúvidas que é um marco forte da vida brasileira. Não é a toa que é um dos elementos que caracterizam a trama brasileira, o ser brasileiro lá fora. O samba, o carnaval e o futebol. Diferente de muita gente, eu acho isso um luxo. É bom ter pais que é visto lá fora como a terra da festa, do gesto criativo. Seria péssimo se fôssemos vistos como um país que se dedica a invadir países, por exemplo. Embora estejamos vivendo um momento em que samba, carnaval e futebol estão sendo desrespeitados no sentido de que, como gestos de cultura, sofrem em um país no momento em que a cultura está sendo desrespeitada, criminalizada, ofendida. Isso é muito importante ser dito porque apesar do mundo nos vê assim, desgraçadamente na quadra que nós estamos vivendo, aqui dentro, esses gestos criativos do nosso povo, no futebol, no teatro, na dança, estão sendo desrespeitados, totalmente desrespeitados por quem tem a obrigação constitucional de defendê-los, cuidar deles, e protegê-los. 

 

Alguns pesquisadores datam a chegada do Carnaval ao Brasil pelos portugueses entre os séculos XVI e XVII. O festejo então começa a ganhar força no Rio de janeiro e só depois se espalha pelo país. E aqui na Bahia, quando e como se dá o que podemos chamar dos primeiros passos ou vestígios do que seria o Carnaval? 

Veja bem, vamos aos fatos. Carnaval, o nome e a palavra carnaval nos chega no século XIX. Este Carnaval que nós temos, desfiles, bailes, carros alegóricos, é uma festa que se espalhou mundo afora vindo da França. O que os pesquisadores relatam é a existência do entrudo, uma festa portuguesa e ibérica, na Espanha também existia, que chegou a nós logo nos primeiros momentos da vinda dos portugueses. Portanto, antes de chegar ao Rio de Janeiro, chegou a Bahia. Não esqueça que Salvador, a cidade da Bahia, era a cidade mais importante do Atlântico sul, e não o Rio de Janeiro. Então antes do entrudo fazer a folia no Rio de Janeiro, já fazia aqui. Há relatos extremamente interessantes e curiosos. Por exemplo, Charles Darwin, pai da teoria evolucionista, esteve na Bahia no Beagle, seu navio que fez mundo a fora, e esteve aqui justamente no período do entrudo e ele escreve sobre isso, sobre o entrudo. Ele cita que viu isso. Porque a palavra entrudo: tem a ver com o período da quaresma, quando se entra no período da quaresma, de quarentena. A terça-feira gorda é o último dia que se pode comer carne, você entra no período de jejum por conta da Semana Santa. O entrudo, depois chamado Carnaval, é uma festa do calendário cristão. É por isso que a data é móvel. É por isso que não tem uma data fixa. Então é por isso que eu digo, nós temos uma festa desde os períodos coloniais se chamada entrudo, que se transforma, a partir do final do século 19 no Carnaval por conta da vinda francesa. O que tem de interessante nisso é que o entrudo sempre foi muito perseguido pela forma que ele acontecia. Eram batalhas que as pessoas atiravam umas nas outras uns limõezinhos de cera as vezes com água, as vezes com perfume e as vezes com xixi. Ainda hoje há traços muito parecidos do que era essa guerra. Em São Luis do Maranhão, por exemplo, é comum no Carnaval que as pessoas atirem farinha de trigo nas pessoas molhadas. São traços deste período do entrudo. A lança perfume proibida nos anos 60 pelo então presidente Jânio Quadros não deixa de ser uma expressão daqui que existia no entrudo. Você atirar alguma coisa em alguém. Agora Carnaval, como a gente conhece, é uma festa da segunda metade do século 19, quando começa a se espalhar pelo mundo afora e a matriz é francesa. Agora aí a gente tem sim uma festa, que era o entrudo, no mesmo período que depois, como ele vai sendo reprimido cada vez mais, ele passa a dar lugar para o carnaval que é uma festa civilizada. França era o centro da civilização, então era uma festa civilizada, não era aquela barbárie do entrudo. 

 

Já deu para perceber que a folia momesca, antes ligada à povos estrangeiros, encontrou no Brasil, na Bahia e em Salvador, terreno fértil para fincar suas raízes e criar uma identidade própria.  Neste sentido, como podemos descrever o Carnaval de Salvador de ontem e de hoje? 

Quando você vai para o tempo colônia, Salvador era a cidade mais importante do Atlântico sul. Europa, França e Bahia. Aqui você já tinha primeiro, toda uma tradição das procissões católicas barrocas dos carros, dos andores e etc. Depois, surgiram os batuques, os tambores dos povos escravizados que foram trazidos para cá. Essa junção produziu um clima muito interessante de festa porque o escravizado, quando fazia festa, fazer a festa era uma forma de resistir porque qual era o dia a dia do escravizado? Trabalhar. Quando ele parava de trabalhar e fazia festa ele estava se revoltando em certo sentido. Ele estava se recusando a trabalhar. Tudo isso junto rendeu, certamente num ambiente extremamente propício para a proliferação da festa. Essa sabedoria baiana. 

 

Agora voltando um pouco o nosso papo para a realidade atual imposta pela pandemia da Covid-19. Estamos completando dois anos sem Carnaval. Para começar, eu gostaria de ouvir a sua opinião enquanto pesquisador em relação aos impactos culturais que a falta da festa traz para nossa região e nosso povo. 

Olha, uma festa que tem sua inscrição tão forte, como uma tatuagem na Bahia, na cultura do nosso povo, a sua não realização é um prejuízo imenso. É um prejuízo simbólico da mais alta gravidade para nós porque o carnaval é uma festa que, por exemplo, delimita o nosso calendário. As pessoas dizem ‘antes e depois do carnaval’. As pessoas dizem que o ano só começa depois do carnaval, há uma expectativa a volta disso. O carnaval é a celebração daquilo que nos é mais caro, que é a vida presencial. As pessoas se encontram nas ruas, as pessoas se tocam. Nós somos uma cultura em que o contato físico é fundamental. Aqui na Bahia a gente tem expressões que são absolutamente incompreensíveis fora daqui. Quando você diz assim para uma amiga sua, ‘olha, diga a fula que eu mandei um cheiro para ela’, isso não existe em lugar nenhum. O ‘cheiro’ só é possível por conta da proximidade. Por que que carnaval não é uma festa violenta? Violento é um jogo de futebol em que as torcidas, ao se encontrarem, se agridem e matam-se. Carnaval não, porque nós temos uma tecnologia de corpo. A gente sabe encostar um no outro sem que isso possa parecer uma agressão um desrespeito. Então, não ter a festa em que isso se celebra, em que a alegria se celebra, onde é possível você estar com pessoas é um prejuízo imenso. Só que contemporaneamente, o prejuízo pela não realização do carnaval não se esgota aí. Alcança uma outra dimensão, que se tornou forte nas últimas décadas que é o fato de que não existir carnaval provoca impactos pesados do ponto de vista socioeconômico porque o carnaval movimenta uma quantidade de recursos expressivos tanto público quanto privado, que mobiliza uma quantidade imensa de trabalhadores dos mais diversos desde aqueles trabalhadores do chão da festa (o cordeiro, o ambulante, o catador de lata, o barraqueiro) até trabalhadores com alto grau de técnica sofisticada. Técnicos de som, de luz, técnicos envolvidos com engenharia de estrutura para palco, motorista de trio elétrico fora evidentemente os músicos, os artistas, percussionistas, ou seja, é uma quantidade imensa de pessoas que participam do carnaval. Então a não existência, além de nos afetar do ponto de vista simbólico porque ficamos ali com aquela sensação ruim de não estar e não poder fazer a festa, há também o impacto socioeconômico envolvendo a questão do emprego e etc. 

 

O senhor chegou a participar de um debate promovido pela Comissão de Educação, Cultura, Ciência, Tecnologia e Serviços Públicos da Assembleia Legislativa no último dia 15. A comissão abordou o manifesto “Carnaval é festa, trabalho e pão”. Neste sentido, na sua visão de pesquisador e de baiano, de que forma o poder público tanto a nível estadual quanto municipal pode agir para tentar sanar estes impactos não só culturais, mas também socioeconômicos que a falta da festa trouxe?  

O evento que você se refere foi a entrega à AL- BA do manifesto de diversas organizações carnavalescas, especialmente blocos afro e de afoxé, no sentido de chamar atenção das autoridades municipais e estaduais de que a não realização da festa por um segundo ano exige do poder público uma atenção cuidadosa no sentido de apoiar as pessoas que não tendo carnaval perdem sua ocupação e sua geração de renda. Essa é uma situação dramática para muita gente que depende do Carnaval. Então esse evento foi exatamente entregar a pela Comissão de Educação, Cultura, Ciência, Tecnologia e Serviços Públicos da Assembleia Legislativa este manifesto que foi organizado por essas entidades e que efetivamente isso precisa ser com rapidez olhado e atendido. Já há movimento nesse sentido. Há alguns dias eu vi a prefeitura de manifestando em relação a um auxílio que será disponibilizado, mas isso é algo que precisa ser visto com muita atenção e com muito cuidado porque o número de pessoas é muito grande e não só aqueles que estão, digamos assim, com um envolvimento muito grande com a festa como por exemplo os donos de camarotes, mas muito particularmente aqueles que não tem alternativas quando o carnaval não se realiza. Se você é dono de camarote você pode até realizar uma festa privada, mas se você é um cordeiro, você não vai realizar nada. Então os auxílios são diversos, é preciso olhar a indústria do entretenimento e produzir um apoio para as empresas dessa área que é muito importante, mas é também importante um olhar atento, cuidadoso e diria até carinhoso e generoso com quem está em uma situação difícil e que se não existir não há carnaval. Não adianta ter um grande artista de trio se não tiver o cordeiro ou o ambulante. São eles que fazem a alegria da rua junto com a música, junto com a percussão, é muito importante isso. 

 

O senhor acredita que as iniciativas tomadas pelo estado e pelo município, que propõem, dentre outras coisas, auxílio financeiros, como o SOS Cultura, da prefeitura de Salvador, para àqueles já conhecidos trabalhadores do Carnaval que fazem a festa na sua opinião são satisfatórios? Atendem a este hiato imposto pela pandemia?

Veja bem, eu não tenho aqui dados e números que me permitam dizer se são satisfatórios ou não. Tenho apenas a percepção de que essa ação é extremamente importante e deve certamente ser concertada com os setores envolvidos porque todos eles, ou quase todos esses trabalhadores tem algum nível de representação. Os cordeiros tem os sindicatos, os ambulantes tem os sindicatos tem uma organização que os representam. Então é procurar discutir para chegar ao melhor modelo de apoio, mas o fato de haver disposição para apoiá-los já merece que a gente aplauda. Não sei se é suficiente, mas é necessário que se faça alguma coisa neste sentido. 

 

O senhor acredita que este período sem a folia, e as necessidades culturais e econômicas que este hiato, querendo ou não, impôs tanto a cidadão, quanto aos empresários do ramo e no poder público, pode resultar em uma mudança na forma de se fazer Carnaval? Teremos daqui para frente uma nova festa, com um novo formato? Qual seria a aposta para essa retomada? 

Veja bem, o carnaval é uma festa em constante transformação. Se você olhar há 15 anos atrás, haviam camarotes, mas eles não eram grande parte da economia da festa. Eram os blocos de trio e isso mudou. Ou seja, o Carnaval tá sempre produzindo mudanças. Nós tivemos lá atrás, nos anos 50 por exemplo, mais de duas, três dezenas de escolas de samba na Bahia que desapareceram. Os blocos de trio durante um tempo dominaram, hoje já não são o grande eixo. O trio elétrico na sua versão original que acabou sendo capturado pelas cordas, voltou a ter uma presença fora das cordas maior recentemente, então o carnaval tá sempre mudando. Agora eu não acredito que, por mais sucesso que possam ter as festas privadas, e eu não vejo nenhum problema que elas estejam acontecendo, mas não vejo que elas possam sinalizar uma nova forma de fazer carnaval. Porque carnaval é rua. Carnaval é cidade. Essa é uma parte importante: O carnaval é o território simbólico que só se realiza no território da cidade. Daquela cidade efêmera que é erguida para que a festa aconteça. Não há possibilidades de pensar um carnaval sem referências deste território. Carnaval é o lugar, é a festa, é o momento em que você diz, ‘ali no relógio de São Pedro’, ‘ali no Farol da Barra’, ‘ali no Barravento’, ‘ali na Piedade ou na Praça Castro Alves’. Ou que seja no Campo Grande, mas fora disso daí, não é Carnaval, é uma festa. Uma festa até bacana, não tenho nada contra ela, mas não imagine que a gente vá ter um novo carnaval capitaneado por essa festas privadas, porque Carnaval é rua. E nos venceremos a pandemia e faremos o maior Carnaval de todos os tempos, porque carnaval é cidade.