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Entrevista

‘Ninguém deve imaginar que está protegido em lugar algum', diz Aras sobre foro privilegiado - 09/07/2018

Por Cláudia Cardozo / Lucas Arraz

‘Ninguém deve imaginar que está protegido em lugar algum', diz Aras sobre foro privilegiado - 09/07/2018
Foto: Reprodução / André Coelho

Para o procurador regional da República Vladimir Aras, a restrição do foro privilegiado aprovada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) foi apenas o começo de uma transformação na cultura política do Brasil: “Ninguém deve imaginar que está protegido em lugar algum”. 

 

O membro do Ministério Público Federal conversou com o Bahia Notícias e defendeu a mudança sobre a restrição aprovada no STF e que agora pode ser ampliada com a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 333 no Congresso. “Em qualquer democracia é importante que as autoridades respondam como cidadãos comuns. Não deve haver foro especial, senão para grupo muito restrito de pessoas”. O grupo, na opinião do procurador, deveria ser composto pelo presidente da República, o vice-presidente, o Presidente da Câmara, o presidente do Senado, do STF e o Procurador-Geral da República. “Seis pessoas em âmbito federal”, completou. 

 

Entre os benefícios da restrição, segundo Aras, estão o fim do fenômeno explicitado por ele como “ioiô processual”, em que determinado caso sobe e desce de grau até a prescrição. “A decisão do Supremo ainda gera dúvida, a do Superior Tribunal de Justiça gera dúvida, como também as decisões dos Tribunais de Justiça geram dúvidas. Esse momento de dúvidas pode ser aproveitado para que se continue o ping-pong entre um juiz e outro para saber qual é o competente. É melhor que acabe o foro para todos em qualquer caso, seja no exercício do cargo ou fora dele”, argumentou. 

 

Aras trabalha com uma matemática simples: “Só temos 11 ministros no Supremo para um país inteiro enquanto temos milhares de juízes de primeiro grau no Brasil. O STF não é uma corte preparada para o tipo de processo que hoje enfrenta”, falou. A descida de processos para o primeiro grau, porém, levanta o medo de que as relações de gestores municipais com juízes locais atrapalhem os processos. “O Judiciário é um poder independente e que tem, nos seus juízes, autoridades que podem decidir com liberdade e autonomia, sem vínculo com posições políticas e partidárias. Os juízes federais de primeira instância do Rio de Janeiro e Curitiba, por exemplo, têm decidido questões com grandes graus de autonomia”, rebateu o procurador ao dizer que acredita que esse tipo de influência não deve acontecer na Bahia.

Foto: Agência Câmara

A Câmara Federal tem a possibilidade de ampliar a restrição do foro privilegiado aprovada pelo Supremo Tribunal Federal, que reduziu o benefício a crimes cometidos durante o mandato e relacionados ao exercício do cargo. Qual a sua avaliação da proposta? 

Em qualquer democracia é importante que as autoridades respondam como cidadãos comuns. Não deve haver foro especial, senão para grupo muito restrito de pessoas. E esse grupo no meu entendimento deveria ser: o presidente da República, o vice-presidente, o presidente da Câmara, o presidente do Senado, do STF e o procurador-geral da República. Em âmbito federal, apenas essas 6 pessoas deveriam estar no foro especial. Já no âmbito estadual, apenas o presidente da Assembleia Legislativa, o presidente do Tribunal de Justiça (TJ), o governador e o procurador-geral de Justiça. Nos municípios, ninguém. Acredito que a PEC 333/2017 [que será votada na Câmara] esteja caminhando para isso. Quanto ao movimento que o Supremo iniciou, os ministros tomaram uma decisão limitada. O que na minha perspectiva gerou alguma perplexidade. A decisão se inscreveu a parlamentares quando se poderia ter dado uma regra mais geral. Como essa temática não foi discutida em uma Ação de Controle Concentrado, mas se deu no caso específico - como deveria ser -, não foi uma solução para todos. 

 

Na Bahia temos cinco decisões que remeteram processos envolvendo prefeitos para a primeira instância. O senhor acredita que esses gestores municipais podem ser favorecidos por conta da relação com juízes locais?

O Judiciário é um poder independente e que tem, nos seus juízes, autoridades que podem decidir com liberdade e autonomia, sem vínculo com posições políticas e partidárias. Os juízes federais de primeira instância do Rio de Janeiro e Curitiba, por exemplo, têm decidido questões com grandes graus de autonomia e competência, como a Constituição prevê. Esperamos é que isso se veja nos outros casos da Justiça dos estados. Claro que o favorecimento por razão da relação mais próxima com o juiz pode acontecer em estados menores, mas não acredito que veremos isso na Bahia. Eu conheço bem o Ministério Público da Bahia (MP) e acho que o órgão tem condições de agir com independência. Quem deve ser condenado, será condenado. Especialmente porque em algumas situações, os processos vão a júri popular. Em casos de homicídios cometidos por prefeitos, ou deputados, o julgamento não será de mérito do “absolveu” ou “condenou”. O julgamento será feito pelo próprio povo. 


A restrição do foro vai evitar o chamado “elevador”, em que um processo sobe e desce de instância? 

Eu gosto de chamar o fenômeno “gangorra” ou “ioiô” processual. O ato de ficar subindo e descendo [de instância] é uma coisa que favorece a prescrição. Já escrevi algumas vezes no meu blog sobre o uso da gangorra para permitir o prolongamento de um processo. Essas distorções são sempre causadoras de dubiedade quando se discute quem é o juiz competente. Toda pessoa tem direito a ser julgada pelo próprio juiz que a lei previamente estabelece. Como todo cidadão também tem o direito de ser investigado e processado por um promotor natural previamente estabelecido por lei. Essas são garantias importantes, mas quando a gente fica discutindo quem é a autoridade, o tempo passa e o relógio passa a contar em favor da prescrição do processo. Com a definição dessa temática, evitaremos a situação e também reduziremos o tempo de tramitação dos processos. De quebra, ainda haverá menos discussão sobre o juiz competente, que pode acarretar em nulidade. A dúvida sobre quem é o juiz natural pode gerar a nulidade e colocar tudo a perder. 

 

A decisão do STF por si só é uma solução que evita os casos de nulidade por tempo? 

A solução ao meu ver é constitucional e não vinda do Supremo. Ela tem que vir do parlamento, como a PEC 333. O texto já foi aprovado no Senado e depende agora de uma votação na Câmara para valer como alteração constitucional que eliminaria qualquer dúvida sobre o foro especial. A decisão do Supremo ainda gera dúvida, a do Superior Tribunal de Justiça gera dúvida, como também as decisões dos Tribunais de Justiça geram dúvidas. Esse momento de dúvidas pode ser aproveitado para que se continue o ping-pong entre um juiz e outro para saber qual é o competente. Se aquele caso foi praticado durante o mandato, se tem a ver com o mandato... O tema ainda vai ficar em discussão podendo gerar incertezas. É melhor que acabe o foro para todos em qualquer caso, seja no exercício do cargo ou fora dele. 

 

Vivemos momentos jurídicos diferentes se compararmos o Mensalão e a Lava Jato? Na época do Mensalão os políticos renunciavam para fugir do Supremo, como fez Azeredo para ser julgado no primeiro grau. 

Foi também o caso do deputado Ronaldo Cunha Lima. O pai do atual senador de mesmo nome tinha uma acusação contra ele e renunciou para o caso descer do Supremo para a Justiça da Paraíba. Havia essa possibilidade de trabalhar com renúncia, mas desde o episódio do Natan Donadon, a Ação Penal 396, o STF barrou essa possibilidade. Foi a primeira vez que o Supremo decidiu que a renúncia não levaria a mudança de foro. 

Foto: Luis Macedo / Agência Câmara

No entendimento do senhor, por que a população em um momento pede a restrição do foro e em outras ocasiões defende a ida dos processos para o STF?

Existe a sensação de que os casos andam mais rápido na Justiça de primeiro grau e com razão. Só temos 11 ministros no Supremo para um país inteiro enquanto temos milhares de juízes de primeiro grau no Brasil. É muito natural que os casos tramitem muito mais rapidamente na primeira instância com vários membros do MP e juízes trabalhando ao mesmo tempo. O STF não é uma corte preparada para o tipo de processo que hoje enfrenta. O Supremo não é capacitado para investigar casos de direito penal, ou processual penal. Eles não são juízes de investigação. A Procuradora-Geral da República atualmente aponta diligências necessárias para casos que estão pendentes e os ministros têm encerrado, erradamente ao meu ver, as investigações. Como se não houvesse investigações capazes de elucidar o que está por vir. Não cabe a um juiz do Supremo ou de primeira instância definir os rumos de uma investigação. Essa é uma função que cabe ao MP apenas. O juiz dá a palavra final, mas não deu a primeira palavra. Essa é uma função do Ministério Público, como um órgão de acusação, conforme diz a Constituição no artigo 129. Se o juiz dá a última palavra, a primeira palavra não é dele. Isso marca a diferença de um sistema em que juízes fazem tudo para o sistema acusatório, que é o adotado na maior parte do mundo em países avançados, e no Brasil. Existe a separação de funções em juízes, MP e a defesa. Quando o STF passam a decidir se o inquérito tem futuro ou não, eles estão assumindo o papel de acusadores ou investigadores que não lhes cabem no sistema atual. 

 

Um receio na Bahia na descida de processos para o primeiro grau é que não haja estrutura e nem juízes nas Comarcas. O que é preciso que a sociedade faça para evitar que os processos prescrevam por falta de estrutura na primeira instância?

O Tribunal de Justiça e a Procuradoria-Geral dos estados tem que prover as Comarcas com as estruturas necessárias. Existem situações de Comarcas que estão há muito tempo sem juiz e promotor por questões orçamentárias. Às vezes não depende da decisão do chefe das instituições para cobrir todas as regiões. A gestão desse tema depende de órgãos centralizados nos estados que possam responder demandas adicionais de investigações mais complexas e que envolvem pessoas que antigamente tinham foro especial e que agora não têm mais. Muitos estados têm centro de apoio operacional, como a Bahia, e tem no Ministério Público outros centros capazes de responder a demandas por perícia e por investigações mais técnicas, com apoio das que são feitas pelos promotores de várias Comarcas. Eu acho que a Bahia, no que diz respeito ao MP, tem uma grande estrutura. Evidentemente que sempre podemos melhorar, mas creio que o modelo que temos visto, com o MP se organizando em grupos especiais de promotorias que são instrumentalizadas para investigar áreas como a de crimes tributários, crimes econômicos e do crime organizado, são um modelo ideal para o enfrentamento desse cenário de delitos praticados por autoridades que agora não terão mais foro. 

 

A restrição do foro muda a cultura política do país? Os agentes acharem que não estarão mais protegidos pode ter reflexo na política nos próximos anos? 

Ninguém deve imaginar que está protegido em lugar algum. Há uma mudança de cultura, podemos sentir isso na sociedade, nas redes sociais e pelo movimento de ONGs em prol da transparência e da honorabilidade da vida pública. Em 1988 o Brasil testemunhou o surgimento do Ministério Público, que é uma instituição que fortemente labutava pela probidade na vida pública. Depois veio a Polícia Federal e agora temos as Defensorias Públicas, a Receita Federal e outros órgãos de administração dos estados se juntando a agenda do MP. Com isso, cada vez mais as pessoas estão se tornando intolerantes à corrupção. Tal fato gerará, necessariamente, uma mudança na vida política nacional. Os partidos mais sérios já sentem a movimentação e buscam trabalhar nessa direção. É responsabilidade dos partidos de apresentarem bons nomes para a eleição. Não é só responsabilidade do eleitor votar bem. As siglas têm que ocupar o papel como os primeiros responsáveis na autorregulação da própria atuação política da vida nacional, seja do município ou do estado. 

 

Quais as chances da PEC 333 passar na Câmara? Os deputados vão querer restringir o foro ainda mais?

A agenda nacional é essa. Já houve a restrição do Supremo em relação aos próprios parlamentares e, agora, eles vão querer adotar uma política de isonomia em relação a outras carreiras e outros servidores públicos que têm foro especial. Eu falo de uma categoria que detém foro especial, e sou favorável à aprovação.