Nosso Samba, Nossa Alma: por que o Samba de São Lázaro deve ser reconhecido como patrimônio imaterial da Bahia?
Quando o som dos tambores ecoa pelas ruas da Federação, em Salvador, durante a festa de São Lázaro, não estamos ouvindo apenas música. Estamos testemunhando a pulsação de uma alma coletiva, um testamento vivo da força, da fé e da resiliência do povo baiano. O Samba de São Lázaro é muito mais que uma roda de samba; é um ato de resistência, um elo sagrado com nossos ancestrais e uma celebração vibrante da vida. Defendo, com profunda convicção, que seu reconhecimento como patrimônio imaterial da Bahia não é apenas necessário, mas um ato de Justiça e de amor à nossa própria identidade.
A história do samba em nossa terra é a crônica da própria formação do Brasil, nascida da dor da diáspora africana e florescida na genialidade cultural do Recôncavo Baiano, o berço incontestável do samba [1]. O samba de roda, que a UNESCO sabiamente reconheceu como Patrimônio da Humanidade, é a fonte de onde bebem todas as formas de samba, incluindo a manifestação poderosa que vemos em Salvador [2]. Acredito que o Samba de São Lázaro é um dos mais puros herdeiros dessa tradição, uma chama ancestral que teima em não se apagar no coração da metrópole.
O bairro da Federação, e em particular o Engenho Velho, é, para mim, um solo sagrado. É um território que respira a história da cultura afro-brasileira. Tendo sido o destino de tantos africanos escravizados, o bairro se transformou em um bastião de resistência, guardando em suas ruas e vielas dezenas de terreiros de candomblé, incluindo o primeiríssimo do Brasil, o Casa Branca [3]. É nesse chão impregnado de axé e memória que o Samba de São Lázaro encontra seu terreno fértil, florescendo como a mais autêntica expressão de uma comunidade.
A Igreja de São Lázaro e São Roque, o coração da festa, carrega em suas paredes uma história que me emociona profundamente. Erguida no século XVIII por africanos escravizados, apartados em um lazareto, a igreja é o símbolo máximo da resiliência [4]. Em meio ao sofrimento, eles não apenas construíram um templo, mas o reinventaram, entrelaçando a fé católica com a reverência aos seus orixás. É a prova de que a fé e a cultura, quando unidas, são capazes de transcender qualquer adversidade.
O sincretismo religioso, a meu ver, é a mais bela e inteligente expressão da sobrevivência cultural africana no Brasil, e no Samba de São Lázaro ele se manifesta em sua plenitude. A devoção a São Lázaro, o santo das chagas, se une à reverência a Omolu, o orixá da doença e da cura. São Roque, o protetor contra a peste, caminha lado a lado com Obaluaê, o “médico dos orixás” [5]. Essa fusão não é uma confusão de crenças, mas uma sofisticada teologia popular, uma prova da capacidade do nosso povo de dialogar com o sagrado de múltiplas formas.
Observar a Festa de São Lázaro, no último domingo de janeiro, é uma experiência transformadora. As missas e procissões católicas se desenrolam em uma harmonia impressionante com os rituais do candomblé, como a icônica lavagem das escadarias e o purificador “banho de pipoca” [4]. Essa coexistência pacífica e potente de diferentes tradições é um tesouro que precisamos celebrar e proteger, pois representa o melhor da nossa identidade cultural, uma lição de tolerância e respeito que a Bahia ensina ao mundo.
O Samba de São Lázaro, que explode em alegria no entorno da Igreja, é a alma dessa celebração. Ele é muito mais que um evento; é o ponto de encontro da comunidade, o momento de celebrar a cultura negra e, crucialmente, a fonte de sustento para inúmeras famílias de trabalhadores e ambulantes [6]. Considero-o um patrimônio vivo, que se fortalece a cada ano, tecendo laços comunitários e reafirmando com orgulho a identidade de um povo.
É com indignação que vejo as ameaças que essa manifestação tão rica sofreu recentemente, com tentativas de silenciá-la sob pretextos de desordem. A resposta da comunidade, que se uniu bravamente em defesa de sua festa, mostra a força e a centralidade do samba para a vida do bairro [6]. Essa não é apenas uma luta por uma festa, mas uma batalha contínua pelo direito à cultura, à memória e à própria existência de um povo que resiste há séculos.
Por isso, afirmo com toda a certeza: o reconhecimento do Samba de São Lázaro como patrimônio imaterial da Bahia é uma medida urgente e fundamental. Assim como o Samba de Roda, o Ofício das Baianas e a Festa do Bonfim, ele condensa os saberes, as celebrações e as formas de expressão que constituem a essência da alma baiana [7]. O registro como patrimônio não é uma formalidade, mas a garantia de apoio institucional para que essa chama nunca se apague e para que as futuras gerações possam herdar essa riqueza.
Em última análise, o Samba de São Lázaro é um tesouro que nos pertence a todos. Sua história, seu sincretismo e sua vitalidade comunitária são motivos de orgulho e devem ser protegidos com determinação. Decretar o Samba de São Lázaro como patrimônio é, em minha opinião, o mínimo que podemos fazer. É um ato de reconhecimento, de justiça e de compromisso com a preservação da nossa cultura. É garantir que o som desses tambores continue a ecoar, celebrando a vida, a fé e a alma de um povo que nunca deixou de lutar e de cantar.
*Joel Meireles Duarte é coordenador de Articulação Social do Estado da Bahia. Terceiro suplente ao cargo de vereador, no município do Salvador, pela federação PT, PCdoB e PV, obtendo 6242 votos (2024). Eleito para o Conselho Superior do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB) (2025/2027). Mestre em Direito pela Universidade Católica do Salvador (2022). Mestre em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social pela Universidade Católica do Salvador (2018). Pós-graduado em Comunicação Jurídica pela Faculdade Renato Saraiva (2022). Pós-graduado em Direito Tributário pela Faculdade Baiana de Direito (2011). Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador (2009). Atualmente, além de coordenar a articulação social no Estado da Bahia, exerce a advocacia privada. Tem experiência na área de Teoria Geral do Estado, Ciência Política, Direito Constitucional, Direito Urbanístico, Direito Tributário, Direito Administrativo e Direito Regulatório.
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Referências
[1] Pragmatismo Político. (2021, 2 de março). O samba da Bahia é a base da história e do samba brasileiro.
[2] UNESCO. (n.d.). Samba de Roda of the Recôncavo of Bahia.
[3] iBahia. (2023, 13 de abril). Engenho Velho da Federação: bairro de Salvador que respira cultura.
[4] Wikipédia. (n.d.). Igreja de São Lázaro e São Roque.
[5] Raízes Espirituais. (n.d.). O sincretismo de Omulú Obaluaê com São Lázaro e São Roque.
[6] O Que Fazer Nordeste de Amaralina. (2024, 28 de novembro). Samba de São Lázaro: Resistência Cultural e a Luta Pelo Retorno.
[7] Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. (2021, 10 de setembro). Patrimônio Imaterial.
