Manifesto: O Estado e a Megaoperação da Hipocrisia
A megaoperação no Rio de Janeiro não foi um ato de justiça. Foi uma demonstração de poder — e de hipocrisia. Quando helicópteros sobrevoam as favelas e o som dos tiros ecoa pelas vielas, o Estado não está combatendo o crime. Está reafirmando que o crime é parte de sua própria estrutura. Porque se o crime é organizado, é porque o Estado também está dentro dele — e dele se alimenta.
Os verdadeiros traficantes não estão nas favelas. Não são aqueles jovens negros e brancos, pobres, que empunham fuzis que nunca fabricaram, que vendem drogas que nunca produziram, que usam drones que nunca compraram. Alguém fornece tudo isso. Alguém lucra com isso. E esse alguém veste terno, mora em condomínio fechado, tem CPF limpo, empresa aberta e contrato com o poder público.
E quem consome as drogas que o Estado diz ter apreendido? Não são os corpos baleados nas vielas, nem as mães que enterram seus filhos no fim de semana. São os filhos e filhas da elite, são os consumidores de classe média e alta que moram a poucos quilômetros das favelas — os mesmos que exigem “segurança” e aplaudem a repressão. Porque o comércio de drogas só existe porque há quem compre. E quem compra, em sua maioria, é quem pode pagar caro pelas melhores drogas — importadas, puras, discretas.
A favela nunca foi o problema. A favela foi o resultado. Resultado de uma história que começou quando a Lei Áurea foi assinada sem compromisso com o futuro dos libertos. Quando a Inglaterra pressionou o Brasil por razões econômicas, e o país apenas trocou a corrente de ferro pela corrente da exclusão.
O negro liberto foi empurrado para longe do centro, para longe das escolas, das terras e das oportunidades. Foi aí que nasceram as favelas — não como espaços de crime, mas de sobrevivência. De resistência. De invenção da vida onde o Estado só ofereceu ausência.
Os filhos da favela são filhos da escravidão que nunca acabou. Continuam sendo treinados não para o crime, mas para o extermínio. Recebem armas, não diplomas. São alvos, não cidadãos. E os que morrem nessas operações são, na verdade, vítimas de uma guerra programada — uma guerra de classe, de cor e de controle.
A megaoperação no Rio de Janeiro foi uma chacina, sim — uma operação política, pensada, calculada e legitimada por um discurso de “ordem” que serve à extrema-direita. Uma encenação que mascara o abandono, que esconde a ausência de políticas públicas, e que transforma o sofrimento do povo em espetáculo para as câmeras.
Mas é preciso dizer, em alto e bom som: Enquanto o Estado seguir tratando o pobre como inimigo, o crime continuará sendo o espelho do próprio sistema; enquanto o branco rico cheirar a cocaína que o preto pobre morre por vender, a hipocrisia continuará reinando; enquanto houver exclusão, haverá resistência; e enquanto houver resistência, haverá voz. Porque nós somos os que ficaram — e ainda assim, seguimos de pé.
*Luiz Carlos Suíca é historiador e pré-candidato a deputado pelo PT
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