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Filhinha*

Por Emiliano José

Filhinha*
Foto: Lucas Reis

Filhinha*

 

Emiliano José

 

Um tombo. Tantos na vida. Taygoara me carregando nos braços. Estou magra, muito magra – me pegou com tanta facilidade, como uma pena. 2021, esse ano meio estranho, sempre dentro de casa, sempre dizendo tudo passa – até uva passa. E agora saio assim, numa ambulância. Lamentos da vida? Tenho não. Nasci em Heliodora, Minas Gerais, 1925, Dia da Bandeira.

 

Foi nascer, e receber o apelido: Filhinha. Tão pequena. Nasci de sete meses. Isso rendeu-me mimos de caçula toda vida.  Família numerosa, me afeiçoei assim pra valer por dois irmãos: Terezinha, ela sim caçula, e Vicente, irmão nascido antes de mim. Com João Barbosa, outro irmão, vivi às turras: ciumento, possessivo, mandão. Não gostava dele, não.

 

Com cinco anos, fui pra Itajubá. Ah, a dor de assistir ao meu pai chegando baleado - doido, doido, deu de lutar contra Getúlio Vargas, ao lado dos paulistas, na Revolução Constitucionalista. Estudei somente até o quarto ano primário, família numerosa e pobre. Depois, prendas do lar. Com elas, fazer bom casamento – era a esperança.  Pouco estudo, mas posso dizer: sempre escrevi bem, falo bem – às vezes me confundiam com professora, tão bem falava, tão bem escrevia.

 

Em Jacareí dei de cara com Emiliano. Rapaz ousado, bonito, bem apessoado, atrevido, cheio de galanteios, de verbo, foi chegando, chegando, e com 19 anos casei-me. Feliz, eu estava feliz. 

 

E nasceram Emilianinho, Maria Aparecida, Antônio Carlos, um atrás do outro. Sempre brinquei: igual igreja de São Bento, um fora outro dentro. Nasceram no Sítio Santo Antônio, do vô Tonico, pai de Emiliano.  Um dia, Justiniano, irmão mais velho de Emiliano, oferece-lhe oportunidade: tomar conta de grande fazenda de tomates, lá pelas bandas de Ribeirão Preto, município de Monte Alto.

 

Enquanto sigo para o hospital, posso afirmar: acompanhei muito de perto a trajetória do homem pelo qual me apaixonei e casei. Soube: antes de me casar, vô Tonico, vendo o filho namorador que só o diabo, sem preocupação com os estudos, propôs escolha: trabalhar ou estudar. Soube: Emiliano deixou os estudos de lado, no terceiro científico. Ajudava vô Tonico no sítio, namorava, namorava até eu surgir na vida dele.

 

Pegamos os três filhos e seguimos para Monte Alto. Ali, vida melhorou. Emiliano administrava fazenda próspera. Produzia tomates para a Cica. Fazenda Cascavel. De verdade: havia muita cobra.

 

Eu podia até comprar roupas boas para mim, para meus filhos, montar bons cavalos, andar de charrete, ir à cidade quando me desse na telha. Continuava igreja de São Bento: na mesma fazenda, outra gravidez: o bebê não vingou. Uma tartaruga me beliscou, deu pra assustar, e eu abortei.  Emiliano achava tivesse sido provocado por homem fantasiado de palhaço. Chegou a pegar revólver, encher de bala, pronto para matar o palhaço. Foi a tartaruga.

 

Depois, nasceu Vera Lúcia – morreu, com pouco mais de um ano. Estávamos em viagem de família, em São Paulo. Gastroenterite. Voltamos destroçados para Monte Alto, eu já de nova barriga, quase seis meses de gravidez. Igreja de São Bento. Sou devota de Nossa Senhora Aparecida. Um oratório com a imagem dela me acompanha desde sempre. Quando perdi Vera Lúcia, ajoelhei, rezei, fiz promessa: todos os filhos seguintes teriam os nomes oferecidos à Virgem. Nasceu, chamei-a Vera Lúcia Aparecida da Silva.

 

Fim de 1954, mudamo-nos para Teófilo Otoni. Igreja de São Bento: nasce outro filho, 1956. Vida do bebê em risco, parto de horas.  Nasceu. Ganhou o nome do médico milagroso: Edvard. Aí, eu pensei: não podia vacilar de jeito nenhum senão a Virgem não perdoava. Viria castigo, e é bom não brincar com coisas sagradas.

 

Nome de acordo com a promessa: Edvard Luiz Aparecido da Silva. Trato é trato, promessa é promessa. Sempre pensei assim. Teofilo Otoni não foi só dificuldade. Até a programa de auditório, fui. Exibi sapateado. Emilianinho, cantou. Tentei que ele aprendesse acordeon. Deu certo, não.

 

Emiliano, caminhoneiro agora. Saímos de Teófilo Otoni, fomos morar em Jequié, na Bahia. Pouco tempo por lá.  Voltamos pra São Paulo.

 

Nunca descobri por que: Emiliano sumiu no mundo.

 

Eu, os cinco filhos em casas dos irmãos e irmãs dele: Rio de Janeiro, São Paulo, Cachoeira Paulista. Tempo de acolhida e de sofrimento. Acolhida dos parentes, generosa por demais. Muito sofrimento pela ausência de Emiliano, e ausência do pai, para a filharada.

 

De repente, reaparece. Tempos muito duros, de muita miséria, quase fome, entre 1958 e 1959. Voltou sem tostão no bolso, sem caminhão, sem nada. Do trabalho, nunca fugiu, isso eu registro. Primeiro, no sítio Ugliara – pobreza enorme, chuchu dava na cerca à vontade, era o de comer.    

 

Indo pro hospital, vou relembrando: Picida ajudava a cuidar dos pequenos e nas demais tarefas da casa, no alto de uma ribanceira. Lá longe, uma pedreira. Volta e meia dinamite jogava pedra para o alto. Aquele cuidado com os mais novos para nenhum deles rolar morro abaixo. Emilianinho e Antônio Carlos, cuidar de porcos, fazer cercas, diabo a quatro, tão sem forças ainda, coitadinhos. Pobreza.

 

 Emiliano chamado para administrar outra propriedade, Caxambu. Não mais um sítio. Fazenda.  Cuidava dos filhos e da comida dos patrões quando vinham de São Paulo passar final de Semana. Pobreza continuou, mas a fome não rondava, como chegou a rondar no Ugliara. Emilianinho cuidava de cavalos, Picida continuava me ajudando nos trabalhos da casa. Emiliano me deu desgostos, namorou mulher de um dos empregados, que via e fingia que não via. Era ver rabo de saia, e não se segurava, o Emiliano.

 

Demorou, não. Emiliano sai da roça de Nazaré Paulista, vai tomar conta de outro sítio: Ivoturuna. Também muita pobreza, não tanta como a do Ugliara. Propriedade pequena, galinhas, hortas, goiabas, muita jabuticaba. Novamente, cozinhar para a casa grande dos proprietários nos finais de semana. Emiliano sentia a vida passar, e nada melhorar, e chorava. Emilianinho e Cal ao menos estudavam. Picida, não: Emiliano acreditava desnecessário, mulher não precisa estudar.

 

Final de 1959, Emiliano larga vida de roça e segue com família para cidade grande: Guarulhos. Bar no Morro do Querosene, achado dele pra tocar a vida, barzinho de nada.  Às vezes, comprava galinhas para revender na feira. Emilianinho foi ser engraxate na Barbearia do Juvêncio, estudar datilografia à noite.

 

Igreja de São Bento continuava aberta: em 1960, nasce Eliana. Na Maternidade Leonor Mendes de Barros, na Penha, capital. Única a nascer em hospital, é, lembro disso na ambulância. Edvard ainda teve um médico a fazer parto em casa. O resto, sempre na mão de parteira. Lembro nestante: conversa de Picida com o padre no batismo da caçula. Com 14 anos apenas, Picida  pergunta se seria pecado a irmã ser batizada como Eliana Barbosa Aparecida da Silva e no cartório o Aparecida desaparecer. Padre disse né pecado, não. Eliana se viu livre do Aparecida.

 

Vila Esperança. Tive de dar conta sozinha da cozinha de uma pizzaria, onde volta e meia via surgir Nenê da Vila Matilde e toda sua tropa. Não gostei muito da ideia de ver Picida tomando conta de outro bar, na Vila Matilde. Sobrou pra ela, pois Emilianinho já trabalhava em banco. Família pobre é assim.

 

Jaçanã.

 

Sempre gostei de sapatear, dançar, me divertir. Não perdi tempo, quando pude. Lembro, agora, nesse trajeto. Tem pouco tempo, filhos fizeram festa pra mim nos 90 anos. Me acabei de dançar. Noite inteira. Quando quiseram acabar a música e a dança, protestei: parar por que?, protestei. Me explicaram: já é muito tarde, teve quem  torceu pé, contundiu panturrilha de tanto dançar, tá na hora de acabar. Disse não: bora seguir na dança. Sempre fui feliz dançando, queriam estragar minha noite.

 

Não saí mais do Jaçanã, não. Na mente, a música: Moro em Jaçanã se eu perder esse trem que sai agora às 11 horas, só amanhã de manhã... 

 

Outro negócio: Bar e Café Emiliano. Segurando as pontas da cozinha, das coxinhas, dos pastéis e mais tarde até das refeições. No coração do Jaçanã, avenida Guapira. Depois, tive de segurar foi tudo: eu e os filhos mais velhos, Emilianinho e Picida, segurando a onda sozinhos. Emiliano acabou preso em 1962 por problema antigo: fora condenado em Monte Alto por sedução de menores, como era dito então, por ter se relacionado com uma menina menor de 18 anos. Rabo de saia. Cumpriu pena até 1964. Senti peso de ser mãe, ser pai, ser tudo. Só sabe quem experimentou.

 

A ambulância está sacolejando um pouco, às vezes cochilo. Bar acaba falindo, Emiliano faz um bico aqui, outro ali, até garagista de prédio de luxo foi, e termina taxista, e depois de um tempo, todos nós morando no Jardim Cabuçu, perto do Jaçanã, agora em casa própria, precária, de pau a pique, mas própria. Nem gosto de alembrar: era o rio Cabuçu encher, e a casa ficar embaixo d’água, um tormento.

 

De outras coisas também não gosto de recordar. Emilianinho foi embora, pediu para não procurá-lo, tempo de ditadura. Não sei, difícil comparar, mas acho que foi meu momento de maior sofrimento. Tive que viajar pelo mundo afora durante os quatro anos de prisão dele atrás de advogados e de tudo que fosse necessário. Mãe sofre.

 

Ninguém não é capaz de saber sofrimento de mãe, não. Por isso disse ser difícil dizer qual maior sofrimento. Que dor, tão profunda a dor com saída de Antônio Carlos de casa. Tinha apenas 16 anos, e resolveu ir embora. Como é que um menino sai assim cai no mundo e fica nas ruas sem proteção de pai e de mãe, da família?

 

Confesso, nem gosto porque mãe não deve de fazer isso, filho a gente deve dizer tudo igual, mas eu, em silêncio, digo: era o mais genial de meus filhos. Só não teve chance, não sei por que desgarrou-se.

 

Vou morrer sem decifrar o enigma de meu filho Cal. Nunca soube como ganhava a vida, e ganhava até bem, irmãos também não sabiam. Era uma vida louca. Morreu com 29 anos num acidente na esquina da avenida São João. Arrancaram um pedaço de mim. Meu luto mais doloroso.  Sofrimento pra nunca mais se acabar.

 

E veio a morte de Emiliano. Tinha só 62 anos. Uma tristeza imensa, dor profunda. Deixava a família bem menos risonha – era o mais alegre da casa. Sorria muito. Chorava diante do sofrimento mas dali a pouco estava a sorrir.

 

Mundo desabou, chorei como criança, demorou muito para a vida voltar à normalidade. Voltou. Os filhos cuidaram de mim. Vi Eliana a caçula se casar. Chorei a partida de Vera Lúcia pra Portugal, ela marido e filho. Os netos, netas, bisnetas, bisnetos, chegando e alegrando a vida. E assim seguia. Eu confesso: muito maior do que o meu, era o entusiasmo de Emiliano com os netos. Ganhou vida nova com a chegada deles.  Pena tenha morrido tão cedo, não tenha podido desfrutar dos tantos que chegaram.

 

Outra enchente no Cabuçu, perdi tudo, e os filhos resolveram providenciar aluguel de um apartamento, no Jaçanã. Morada muito melhor, muito melhor mesmo. Cuidei de jardim na nova morada, sempre gostei. Dança de salão, fui a aulas, aprender mais. Faculdade – é, riam não: Faculdade da Terceira Idade. Sozinha, só tinha 76 anos quando comecei, pegava o ônibus, depois o metrô, chegava.

 

Com minhas amigas de escola, fiz de tudo: projetos escolares, excursões, muitas viagens, festas, muitas festas. Parei só com essa maldita pandemia. Filharada se assustou quando antes do aniversário de 80 anos, comecei a emagrecer depressa, cheguei aos 40 quilos. Médicos me desacreditaram. Besteira deles: me recuperei logo. E minha festa dos 90 foi maravilha, dancei pra me acabar, já disse. 

 

Filhas, filhos me ensinaram essa coisa de política: estive sempre com Lula. Desgraça, o presidente de hoje. Tenho esperança: Lula vai voltar. E agora este tombo, e eu aqui nessa ambulância. Chegamos ao hospital. Logo, logo saio. Ih, não gosto desses equipamentos, não. Sei, todo mundo tem: falam de meus defeitos, sei que falam. Às vezes, mãe dura,exigente, mais do que devia. Nunca fui de mimar netos, me dizem. Tudo verdade. Mas, filhos, filhas, netos, bisnetos sabem de meu amor, não sabem?. Tenho meu jeito de amar – todo mundo é assim, não é verdade? Cada um tem seu jeito.

 

Não, não quero ficar aqui. É muito chato, muito incômodo. Voltar para minha casa – tudo que desejo. Não vou ficar. Lembrei agora da Fazenda Cascavel, montada no Tarzan, eu bonita, é, sempre fui bonita. Da charrete, puxada por cavalo bom, indo pra cidade. Ou no Studebaker novinho de Emiliano. Os vitrais tão coloridos da igreja de Monte Alto, aquele jardim lindo lindo em frente. As crianças brincando no pátio em frente de minha casa, pátio extenso para secar café. Lembro domadores de cavalos, ensinando-os a fazer coisa que até Deus duvida. Não, das misérias não quero lembrar, não. Teve coisas boas, penso nelas, melhor.

 

Não quero ficar aqui. Saí, fico não. Voar. Posso voar. E voo. Tirei todos aqueles fios, e voei. Aproveitei saída da enfermeira. De cima, enxergo o mundo. Aparece tudo pra mim como num filme, longo filme, de quase 100 anos – paisagens lindas, vejo filhas, filhos, netos, bisnetos, minhas amigas da Universidade, vejo Emiliano tão bonito, olho cada uma das fotos da família nas paredes de minha casa, e olhem: tenho muitas. Sinto-me livre, volto praquele lugar não, pássaro passarinho sigo avoando...

 

Maria Aparecida Barbosa da Silva morreu no dia 15 de julho deste ano, aos 95 anos. Mãe de Eliana, Edvard, Vera Lúcia, Antônio Carlos, Maria Aparecida, e minha mãe. Breve lembrança.