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Juízes: até quando?

Por Pablo Reis

Juízes: até quando?
Foto: Divulgação

Eles tiveram um reinado longo, de quase 200 anos, por toda a Inglaterra, Irlanda, e até além do Reino Unido, desde que a Revolução Industrial, de 1760, começou a exigir dos trabalhadores que chegassem cedo aos seus turnos nas fábricas.

 

Os “acordadores” de pessoas eram um incômodo necessário batendo em janelas de clientes com suas longas varas de bambu na madrugada. Chamados “knockers-up”, eles ganhavam por hora e eram considerados imprescindíveis. Isso era comum até 1920, quando alguém teve a ousada ideia de substituir aquela verdadeira gincana humana por uma avançada tecnologia de automação. Hoje, chamamos o então objeto revolucionário de despertador.

 

Aconteceu com arrumadores de pinos de boliche, ascensoristas, lanterninhas de cinema, acendedores de postes e até vendedores de enciclopédia (lembram deles? vasta cultura geral e prestações que duravam até alguns anos). Com transição mais longa ou mais curta, com reações resignadas ou indignadas, todas essas funções sociais foram desaparecendo, de forma que um millennial de hoje poderia se surpreender com a menção a alguma delas: “Telefonistas???II isso era mesmo necessário?”

 

O que acontecerá quando os algoritmos, avançados como já estão, forem programados para analisar, simultaneamente, provas, relatórios, depoimentos, com a velocidade de mil magistrados por segundo? E se a isso for adicionada a possibilidade de avaliar dados biométricos de suspeitos, vítimas e testemunhas, registrando alterações de batimentos cardíacos e temperatura, comparando até as microexpressões faciais (imperceptíveis a olhar humano), criando a mais completa sentença já formulada em 30 minutos de cálculos avançados e frieza de bits. Alguém duvida de que, além de mais rápida, a decisão será mais justa, mais barata e muito mais eficiente?

 

Poderia ser considerada imune a simpatias, afinidades, ou - pior ainda - às constantes ameaças de corrupção. O avanço da ciência algorítmica é muito comentado para a medicina, até mesmo para a política. No campo da justiça, parece ainda ser um tabu. Não deveria.

 

Bits contra papéis

Grande parte da população enxerga a justiça brasileira como pilhas de papel, milhares de processos eletrônicos, aguardando numa fila em que oferta e demanda nunca chegarão ao mesmo nível, já que a sociedade não acompanha a criação de novas vagas na magistratura com a mesma rapidez em que cria novos problemas para serem resolvidos por força da lei.

 

Reportagem da revista Superinteressante de fevereiro de 2019 mostra que cada juiz brasileiro tem uma carga média de 6531 processos por ano e que para dar conta disso precisaria julgar 33 deles… por dia! Dados do Conselho Nacional de Justiça apontaram uma taxa de congestionamento de 73%. Ou seja, de 2009 a 2016, a cada dez processos que tramitavam no país, sete permaneciam sem sentenças.

 

Além disso, os 16,2 mil magistrados percebem, em média, R$46 mil mensais, valor acima do teto do funcionalismo público, que é de R$33,7 mil, por conta de gratificações e penduricalhos. O resultado é que o Brasil consome até 1,8% do PIB com a justiça, enquanto a Alemanha gasta 0,32%, o Chile usa 0,22% e a Argentina só dedica 0,3%. (clique para ler a reportagem da Superinteressante https://super.abril.com.br/sociedade/a-insustentavel-lerdeza-do-nosso-judiciario/ )

 

Já terceirizamos para aplicativos as decisões sobre nossos caminhos no trânsito, sobre a publicidade que nos será mostrada no smartphone, e, no limite, já temos drones que definem vidas humanas como possíveis alvos: inocentes ou culpados. Por que não adotar o mesmo com a justiça cotidiana, já que os algoritmos parecem tão infalíveis?

 

Imunes ao preconceito?

A revista Technology Review (www.technologyreview.com), publicação que existe desde 1899, de propriedade da mais respeitada faculdade de tecnologia do mundo, o MIT em Massachussets, publicou, no último 17 de outubro, artigo intitulado “Você Pode Fazer a Inteligência Artificial Mais Justa que um Juiz? Tente com nosso jogo do algoritmo de tribunal” (clique aqui para ler https://www.technologyreview.com/s/613508/ai-fairer-than-judge-criminal-risk-assessment-algorithm/).

 

O texto usa o exemplo do aplicativo chamado COMPAS, já em execução pelo sistema judicial americano. Ele foi projetado para definir se um acusado fica na cadeia ou em liberdade até ser julgado. Para isso, o robô vasculha todos o histórico do réu para definir se ele apresenta grande ou pequeno risco social.

 

Os dados sobre raça e gênero, por exemplo, foram abolidos por lei do programa, de forma a que não fosse possível fazer associações discriminatórias. Mesmo assim, a reportagem mostra que os negros são desfavorecidos nas decisões propostas pelo algoritmo. A publicação vai além e coloca um teste online para qualquer um avaliar a eficiência do modelo. Por mais esforço e boa vontade que o usuário tenha, os resultados não parecem justos.

 

Quando bem ajustados, os robôs podem ser os mais precisos em questões de dosimetria de penas, geralmente zonas sensíveis em sentenças judiciais. Podem ser uniformizadas, padronizadas, em sistemas que não levem em consideração questões subjetivas.

 

O World Government Summit, entidade com mais de 4000 líderes, de 150 países, que se reúne a cada ano em Dubai já presta atenção nessas possibilidades. No encontro de 2018, um artigo da escritora britânica Briony Harris questionava se a Inteligência Artificial poderia substituir um juiz no tribunal. (clique aqui para ler https://www.worldgovernmentsummit.org/observer/articles/could-an-ai-ever-replace-a-judge-in-court )

 

Máquinas de previsão de crimes

Na China, centenas de robôs já são usados para solucionar mais de 40 mil tipos de litigâncias. As máquinas fazem parte de um processo de transição para o que chamam de “smart justice”. Funcionam, sobretudo, para comparar veredictos do passado com as questões do presente. Há, inclusive, algoritmos segmentados, especializados em leis comerciais ou trabalhistas. A inteligência artificial também serve para bisbilhotar publicações em redes sociais das partes envolvidas, em busca de algum tipo de contradição.

 

O artigo de Harris informa que a megapotência oriental conta com 120 mil juízes para atender a 19 milhões de processos a cada ano. O ex-chefe para Assuntos Políticos e Legais do Partido Comunista garantia que em pouco tempo o governo implementaria sistemas de “machine learning” para prever onde crimes e desordens poderiam ocorrer. “A Inteligência artificial pode executar tarefas com uma precisão e velocidade inalcançáveis por humanos, e aumentará drasticamente a previsibilidade, acurácia e eficiência da gestão social”, declarou Meng.

 

Isso porque ainda não estamos falando da revolução quântica: a forma quase espiritual de computação ultra avançada, anunciada neste mês de outubro pelo Google, capaz de descobrir em 3 minutos as respostas que o mais veloz e potente computador do nosso tempo precisaria de 10 mil anos para alcançar. Com mais essa variável, a questão deixar de ficar no âmbito do “se” e passa a ter a moldura do “quando”.

 

Antes mesmo dos juízes, minha própria profissão de jornalista já está fadada ao ostracismo, como se fossem levas inteiras de LPs sendo esnobadas pelos CDs na década de 90. Certamente, o jornalismo poderá ser exercido em sua integralidade por algoritmos que percorram em segundos toda a bibliografia disponível sobre um tema, chequem a veracidade das últimas declarações, indexem várias versões da mesma história, enviem um zap pedindo uma resposta a uma figura pública e vasculhem os arquivos online com todos os dados de transparência de governos.

 

Após executar como 100 metros rasos esse périplo digno de maratona para um humano, a máquina vai produzir um texto com entendimento direto, sem margem a duplas interpretações, sobre o assunto em alguns minutos. Ou vai transmitir o assunto para uma âncora de tv virtual, com expressões e vozes humanas, modelada em computação gráfica 3D, tudo sob supervisão de um editor… que também será um conjunto de bits.

 

E alguém poderá ser considerado culpado por isso?

 

*Pablo Reis é escritor e jornalista, gerente de Conteúdo e Inovação do Grupo Aratu de Comunicação

 

*Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do Bahia Notícias