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Marca Bahia Notícias Saúde

Entrevista

"Trabalhadores e gestores não têm informação com esse olhar da diversidade racial", considera coordenadora do CTESPN, Ubiraci Matias

Por Bruno Leite

"Trabalhadores e gestores não têm informação com esse olhar da diversidade racial", considera coordenadora do CTESPN, Ubiraci Matias
Foto: Leonardo Rattes / GOVBA

Há quatro décadas na Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (Sesab), Ubiraci Matias acompanhou de perto todo o percurso do Sistema Único de Saúde (SUS), desde a sua construção, com 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, até os dias atuais, em que novos desafios estão sendo postos aos usuários, autoridades e demais partes envolvidas. 

 

Lotada na Diretoria de Gestão do Cuidado (DGC) da secretaria, é da equipe que integra a responsabilidade pela coordenação de processos de formulação, implantação, implementação e avaliação de políticas e programas estaduais de saúde que tenham como finalidade a qualificação e a ampliação do acesso à saúde, tendo em vista as chamadas linhas de cuidado.

 

Uma dessas linhas é da saúde da população negra, política de atenção que nasce da luta dos movimentos sociais aos quais a própria Ubiraci teve intensa participação, sendo ela uma das ativistas da delegação brasileira que foi à Conferência de Durban - encontro realizado em 2001, na África do Sul, que culminou na formalização de uma agenda mundial de combate ao racismo e todas as formas de discriminação racial.

 


Foto: Leonardo Rattes / GOVBA

 

Soteropolitana do Engenho Velho de Brotas, seu primeiro contato com a área se deu antes mesmo de fazer parte da equipe direta da pasta, quando era vinculada ao Centro de Referência Estadual de Atenção a Saúde do Idoso (Creasi), e fez movimentações por uma maior representatividade de pessoas negras nas fotografias de homens e mulheres da terceira idade que eram expostas nas dependências da unidade. "Não vi fotografias de pessoas negras ali. Só via idosos brancos", pontuou. 

 

Ela, que também é coordenadora de cursos na Escola de Saúde Pública da Bahia (ESPBA) e do Comitê Técnico Estadual de Saúde da População Negra (CTESPN), conta que foi a partir dali que surgiu o convite para integrar o quadro de servidoras da DGC, a fim de colocar em prática as diretrizes da política de atenção à saúde da população negra, que naquele momento estava sendo gestada. "Precisavam de alguém que tivesse expertise nessa área", relembrou a técnica em entrevista ao Bahia Notícias.

 

"Eu me vejo, exatamente, a partir dos meus preceitos ideológicos de que nós não somos iguais. Sou muito pautada na socialização do marxismo, então isso traz para mim uma reflexão muito grande de que o sujeito tem que ser tratado dentro das suas particularidades", contou, dando conta que foi devido a isso que foi convocada para a missão que executa hoje.

 

Quando conversou com a reportagem, em novembro, quando nos recebeu na sede da Sesab, estava sendo comemorado o mês da consciência negra, que nas palavras dela deve servir como um "momento de mobilização", a fim de diminuir a desigualdade entre pessoas negras e brancas, em detrimento de qualquer visão folclórica.

 

Para ela, alguns parâmetros de mudança e vias de ação são possíveis no contexto de racismo institucional e estrutural, um deles é a ênfase ao conhecimento, através de atividades de educação permanente de gestores e servidores no intuito de prepará-los para a execução de políticas públicas e no atendimento da população, com suas particularidades e complexidades. 

 

"A maioria dos trabalhadores e gestores não têm informação com esse olhar da diversidade racial que existe no estado da Bahia e no Brasil. Eles estão ocupados com questões extremamente técnicas", classificou Matias.

 


Foto: Leonardo Rattes / GOVBA

 

Como as políticas tocadas pela DGC se inserem no contexto da universalização da saúde pública brasileira?

No SUS, quando a gente constitui 8ª Conferência [Nacional] de Saúde, a gente debate a questão da equidade muito focada, objetivamente, no indígena e na população negra. Isso vem junto com o Sistema Único de Saúde [SUS]. No decorrer do tempo, na regulamentação, essa equidade foi deixada de lado e passou-se a trabalhar muito a intersetorialidade, a compartimentação do conhecimento, a questão da doença, e o SUS foi tomando uma dimensão de visão "hospitalocêntrica" que não é a base do sistema de saúde. Ele é pautado na atenção básica, que é onde se faz a prevenção. 

 

É com a regulamentação que há uma divisão federativa e traz esse desenho da responsabilidade federativa, que é o governo federal, o governo estadual e governo municipal. Com essa visão tripartite, os estados ficam responsáveis pela alta complexidade e a atenção básica fica com os municípios. Foi nesse contexto que eu vivi e acho que é por aí que a gente precisa estar, na atenção básica e na gestão do cuidado, para melhoria da qualidade de atendimento a essa população que historicamente foi excluída. E aí entra não só a população negra, é a indígena, a cigana, os que estão privados de liberdade, a população LGBTQIA+, as pessoas em situação de rua e também todas as comunidades tradicionais. 

 

Nós temos uma lei nacional que estratifica as comunidades tradicionais de terreiro não só como religião, mas sim como um povo tradicional, que está na sua essência a sua religiosidade. Temos essa particularidade na saúde que trabalhamos com uma ideia de territorialização - que é uma outra política que no Brasil só a Bahia parece ter mantido.


Em 2001 você foi à Durban. Agora, mais de duas décadas depois, como você observa a questão racial no país?

Sim. Fiquei lá durante trinta dias, justamente para fazer esse movimento a nível internacional e, de uma certa forma, dizer que existe racismo no Brasil, porque até ali não tínhamos essa declaração do governo. Da mesma maneira, agora, há uma negação disso. Ele continua racista, apesar de ter declarado e assinado o resultado da conferência. 

 

A Bahia, por exemplo, é uma signatária da Década Internacional do Afrodescendente, até 2024. Quando se faz uma atividade pela Sepromi e as unidades - que são as secretarias - têm que fazer as ações de qualificação para seus usuários, seus funcionários em relação a questão racial é porque o estado assinou esse compromisso. Não é um folclore, a gente deixou e ser um. 

 

O Novembro Negro não pode ser tratado como um folclore. É um momento de mobilização para que a gente possa diminuir a desigualdade entre negros e brancos que ainda é muito forte. 

 

É perceptível a existência de um racismo estrutural em nossa sociedade. Como é que ele influencia o pensamento gestor no âmbito da saúde pública?

Ainda é muito incipiente a visão de gestão com relação ao combate ao racismo institucional e estrutural. Eu parto do princípio de que há uma desobrigação, mas também uma falta de informação. A maioria dos trabalhadores e gestores não têm informação com esse olhar da diversidade racial que existe no estado da Bahia e no Brasil. Eles estão ocupados com questões extremamente técnicas. Isso se dá porque na formação de uma escola, de uma faculdade, de enfermagem, medicina ou de qualquer profissional de saúde, até mesmo do professor, não teve a questão racial como instrumento de transformação pedagógica.

 

A política de educação permanente, que é obrigação do gestor, tem que ser implementada tendo em seu eixo principal o racismo estrutural e institucional para reforçar as políticas públicas. Porque se você não colocar técnicos com conhecimento para gerenciar essa política, fica difícil avançar.


Considerando agora esse atendimento na ponta: o racismo, de alguma maneira, cria barreiras que impedem o acesso ao sistema de saúde pública?

Existe um despreparo de profissionais, principalmente no quesito raça-cor. É obrigação do profissional que está na ponta, no posto de saúde, pegar a inscrição da pessoa que será atendida e estar preparado par interpelar o usuário no que diz respeito a sua cor e estar preparado também para a ignorância daquele usuário, porque na maioria das vezes ele não tem informação sobre isso. Em algumas situações perguntar ao paciente como ele se declara chega a ser uma ofensa, em outras a pessoa que está atendendo se omite por ter uma religião contrária e marca no formulário como "ignorado". Isso dificulta a destinação de recursos, de botar dinheiro na política de saúde da população negra. E acaba impactando no planejamento financeiro, de ações, de uma atenção básica mais qualificada. Consequentemente, se você tem essa ponta mais preparada, vai ter uma alta e média complexidade mais robusta. 

 

Em todo o Brasil, temos uma Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). Ela foi criada em 2006 e representa um marco nesse cuidado para um público específico e na mitigação das vulnerabilidades envolvidas. Qual o impacto dessa política em um território como a Bahia?

Impactou muito e continua a impactar. Ela tem se mantido porque gestores e trabalhadores precisam ter conhecimento e compreendam o que é essa política. Meu desejo é que cada unidade de saúde, tanto do município quanto do estado, tenha um núcleo de educação permanente.

 

A PNSIPN nasce de um esforço da sociedade civil organizada, de gestores e outras pessoas ligadas a essa agenda da saúde. Qual o papel dessas iniciativas em prol dessa política ainda hoje, depois da implementação?

Nosso papel até janeiro é resistir. Temos que resistir até a posse do presidente Lula, principalmente os movimentos sociais. Todo o povo brasileiro que quer uma democracia, que quer reestruturar o país que perdemos nesses últimos quatro anos, vai ter que resistir. E de várias formas. Se unindo, principalmente, mesmo na diversidade de opinião. 


Quais são as ações ou os mecanismos disponíveis para a promoção da saúde da população negra?

A primeira coisa que eu disse e vou repetir, porque para mim é fundamental, é a formação do trabalhador. Se não fizer isso não existe ação que possa ter impacto. Você tem que ter qualificação. Aí entra também a oferta de emprego e renda, educação sanitária, entre outras políticas públicas de melhoria de vida para essa população que historicamente está excluída. 

 

É necessária a estruturação de políticas da atenção básica em todos os níveis, dialogando intersetorialmente de forma integrada com os programas. Nesse contexto existe a constituição de legislações, como o programa de combate ao racismo institucional, a implantação dele, a política de saúde da população negra, a política de assistência religiosa e o plano plurianual. 

 

No ano de 2019 a gente conseguiu, por exemplo, no estado da Bahia, instituir no quinto compromisso [do plano plurianual] a promoção da equidade e humanização no cuidado da saúde da população historicamente excluída e estigmatizada, tendo como iniciativa apoiar tecnicamente os municípios no desenvolvimento de ações de atenção à saúde da população negra. Quando a gente chega em 2022 o governo estabelece, no seu terceiro compromisso do seu programa de saúde, potencializar a Rede de Atenção a Saúde (RAS), porque sem ela a gente não vai conseguir resolver a questão da regulação, que é um problema para a Sesab. 

 

Então, o terceiro compromisso ele avança. E avança de tal maneira que quer aprimorar as ações. E estamos nesse processo, através da política de anemia falciforme, da política de pessoas com albinismo - duas doenças prevalentes na população negra -, mas com muita dificuldade porque a gente depende dos municípios para que eles deem assistência. 

 

No início de 2020, 784 profissionais do SUS foram qualificados na atenção à saúde rural. Os profissionais que participaram daquela formação passaram a ver os usuários de uma maneira diferente. Outros 1267 profissionais de saúde receberam capacitação na atenção da saúde da população negra. Não é pouca coisa para a estrutura que a gente tem nos municípios, ainda incipiente na compreensão da educação permanente e do racismo institucional.


Muito se fala sobre a anemia falciforme, sobre a diabetes tipo 2 e até mesmo a hipertensão, mas as mulheres negras são as maiores vítimas de violência obstétrica. De qual maneira a política de saúde para a população negra dá conta de tal dimensão, relacionada com o processo de assistência médica?

Tem uma rede de parto e puerpério. Dentro dela a gente tem aprimorado também a qualificação dos trabalhadores e trabalhadores. Existem propostas objetivas, junto com a estimulação do parto normal. Temos uma área técnica dentro da DGC que trabalha com a saúde da mulher e com o parto e puerpério, no controle das maternidades, que tem feito muita conscientização.


No âmbito da saúde da população negra, como é que a estratégia do estado tem dado atenção aos agravos relacionados com a saúde mental?
O município é quem é responsável pela atenção básica da doença mental. O estado é responsável pelas clínicas de tratamento e emergência. O Hospital Especializado Juliano Moreira e as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) são alguns dos equipamentos disponíveis. O município tem que estar preparado e ele recebe dinheiro do governo estadual e federal para isso, quando ele se torna de municipalização plena.

 

A população carcerária no brasileira, atualmente, é composta por aproximadamente 820,6 mil pessoas. Deste total, 67,4% são negras. E o cuidado com a população carcerária, como é que fica aqui na Bahia?

Temos uma área técnica. Estamos em um processo de transição, que está demorando, houve mudança agora, que é para a Sesab tomar conta da saúde dentro do sistema carcerário. Até então, essa é responsabilidade da Seap [Secretaria de Administração Penitenciária]. 

 

Como está a implementação da PNSIPIN entre os 417 municípios da Bahia?

Só um [município implementou a política]. Falo com tranquilidade. É Lauro de Freitas.