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Entrevista

'Primeira vacina do bebê': Especialista reforça que nenhuma fórmula substitui leite materno

Por Renata Farias

'Primeira vacina do bebê': Especialista reforça que nenhuma fórmula substitui leite materno
Foto: Renata Farias / Bahia Notícias

Padrão ouro na alimentação infantil. Essa é a classificação da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) para o leite materno. As duas entidades recomendam a amamentação imediata após o nascimento e o aleitamento materno exclusivo até os seis meses de vida do bebê. Após o primeiro semestre, deve-se incluir alimentos nutritivos como complementação ao leite. Posteriormente, até os 2 anos de vida da criança, o leite materno deverá servir como complemento à alimentação. "Qualquer outro leite que for usado em substituição ao leite materno vai fugir desse padrão ouro. As fórmulas que existem no mercado são à base de proteína de uma outra espécie e há uma tentativa de adaptá-las para os seres humanos filhotes, os bebês. É óbvio que essa adequação é muito difícil de ser feita e uma fórmula jamais vai trazer os fatores imunológicos, que só estão presentes realmente no leite fresco da própria espécie", afirmou a pediatra e neonatologista Ana Paz. Além de alimento, o leite materno funciona como a primeira vacina do bebê, já que transfere anticorpos necessários para proteção. No entanto, apesar de todas as vantagens apresentadas, o Brasil não investe no incentivo à amamentação. De acordo com a OMS, o país registra investimento de menos de US$ 1 por bebê, quando o recomendado é de US$ 4,70 (clique aqui). Para a consultora internacional em aleitamento materno e responsável médica pelo Banco de Leite do Instituto de Perinatologia da Bahia (Iperba), há uma série de ações de baixo custo que poderiam ser adotadas nesse sentido. "Por exemplo, por que não se investir nos bancos de leite humano? Na Bahia inteira só temos seis bancos de leite, em Salvador são dois. Ao invés de pagar fórmula para bebês de mães com HIV, por exemplo, por que não esses bebês terem direito a ter o leite da própria mãe pasteurizado ou então de um banco de leite?", questionou. Ana explicou que a tecnologia empregada em bancos de leite é extremamente barata e dominada pelo Brasil, usada como exemplo para outros países. A especialista ainda falou sobre as recomendações para mães durante o período de amamentação, uso de medicamentos, desmame e outros benefícios do leite materno.


A OMS apontou hoje que apenas 38,6% dos bebês brasileiros de até 6 meses são alimentados exclusivamente com leite materno. Quais os prejuízos para as crianças que têm outros alimentos introduzidos nesses primeiros meses?

Considerando que a OMS, a Unicef e o Ministério da Saúde consideram o leite materno como padrão ouro de alimentação, qualquer outro leite que for usado em substituição ao leite materno vai fugir desse padrão ouro. As fórmulas que existem no mercado são à base de proteína de uma outra espécie e há uma tentativa de adaptá-las para os seres humanos filhotes, os bebês. É óbvio que essa adequação é muito difícil de ser feita e uma fórmula jamais vai trazer os fatores imunológicos, que só estão presentes realmente no leite fresco da própria espécie. Toda a questão de proteção contra doenças não estará presente na fórmula, enquanto o leite materno funciona como uma vacina para a criança.

 

Nem mesmo água ou outros alimentos devem ser inseridos?

Não podem porque a quantidade de água que tem no leite materno é enorme, então ela sacia completamente a criança nos seis primeiros meses de vida, sem ter necessidade de acréscimo de nenhum outro líquido, mesmo nos países mais quentes. Sobretudo a porção que sai primeiro do peito é muito rica em água, justamente para saciar a sede da criança.

 

Há algum tipo de rotina de alimentação para o bebê nesse período?

Eu costumo brincar que o bebê não aceita engolir o relógio. Quando estava na vida intrauterina, ele se alimentava livremente porque estava se alimentando via cordão umbilical, vindo do sangue da mãe. Nos seis primeiros meses deve ser mantida uma livre demanda, ou seja, uma amamentação guiada pelo bebê conforme a necessidade dele. Se o bebê nasceu no tempo certo e é saudável, ele não precisa ser acordado para mamar. No momento que ele acordar e começar a se movimentar é a hora de alimentar o bebê. Não é necessário esperar ele chorar, porque isso é um sinal tardio de fome. Quando está com muita fome, a gente não come bem, porque fica nervoso, pode acabar tendo uma digestão ruim. O ideal é que o bebê seja alimentado antes mesmo de chorar.

 

A amamentação é indicada até os dois anos de idade, com outros alimentos a partir dos seis meses. Por que é importante continuar após os seis meses?

Está muito claro na literatura internacional que o principal alimento no primeiro ano de vida do bebê é o leite materno. Após os seis meses, ele não é suficiente o bastante para nutrir a criança, então são introduzidos outros alimentos – como cereais, proteína de origem animal e vegetal, frutas e verduras –, mas o leite deve ser mantido como fonte importantíssima de proteína e, sobretudo, de proteção. O leite materno é dose independente no que diz respeito a proteção. Alguns profissionais de saúde até dizem erroneamente que, depois do primeiro ano de vida, o leite materno não tem mais sentido nenhum e que virou água. Isso é pura ignorância. O leite de vaca não vira água, assim como o nosso também não. Quanto mais a criança mama, mais proteção ela vai ter. Mesmo depois dos seis meses, a criança vai receber pelo leite materno muitas proteínas, vitaminas e gordura. A recomendação da OMS é de leite materno exclusivo até os seis meses e com introdução de outros alimentos até os dois anos ou mais. Esse “mais” fica a cargo da mãe decidir com o bebê, porque o desmame também precisa ser uma coisa tranquila e programada. Não pode ser abrupto e também não se deve mentir para a criança que o leite acabou, por exemplo. Deve ser negociado.

 

Ainda há fatores positivos em continuar a amamentação? Tem alguma indicação para o desmame?

Esse prazo até dois anos foi estabelecido porque é o período em que o bebê é lactente. A partir dos dois anos, ele é um pré-escolar. Assim como as outras espécies não precisam de leite quando adultas, as crianças também não precisam mais de tanto leite. O período que ele precisa de leite para nutrição e manutenção dele é realmente até os dois anos. A partir daí, se quiser eliminar o leite da dieta da criança, isso pode ser suprido com outros alimentos.

 

Então não há prejuízo em continuar amamentando?

De forma nenhuma. No entanto, existem também as questões emocionais que devem ser trabalhadas. Muitas vezes a mãe não desmama a criança já grande por uma questão dela, não por dificuldade do bebê. Isso deve ser tratado de uma forma individualizada.

 

Há algum tipo de regime alimentar que a mãe deve seguir para aumentar a produção ou para um leite de maior qualidade?

O componente mais variável do leite é a gordura. Esse é o único componente que a gente pode manipular um pouco. Por exemplo, se o bebê é prematuro e precisa de um leite mais gordo, a gente pode oferecer gordura de boa qualidade para essa mãe, como azeite de oliva, óleo de coco para que ela melhore. Os demais componentes não variam tanto. Mesmo que a mulher seja desnutrida, a natureza vai tirar tudo da mãe para dar ao bebê. Não é necessária nenhuma dieta especial, a mulher apenas precisa se alimentar bem. Ela precisa comer, pelo menos, umas 500 calorias a mais por dia, que é o que ela vai gastar na amamentação.

 

A maioria das mães quer emagrecer depois do parto. É possível fazer dieta com esse objetivo enquanto se está amamentando?

A mãe que amamenta de livre demanda geralmente perde peso e rapidamente, porque amamentação é uma malhação. As mães às vezes perdem peso rápido até demais quando estão em amamentação exclusiva. O que não faz perder peso é quando acontece a complementação com outros alimentos. Você bloqueia a livre demanda e não tem um gasto energético tão grande.

 

Foto: Getty Images

 

Há especialistas que afirmam que a amamentação exclusiva funciona como método contraceptivo. Isso é real? Qual a relação entre esses fatores?

Isso é um método chamado de lactacional. Durante o período em que a mãe está amamentando exclusivamente, sem ter horário fixo, são mantidos os níveis de prolactina, que é o hormônio que produz o leite. Até que a mulher não tenha menstruado e esteja em amamentação exclusiva, de livre demanda, ela tem uma boa proteção. Não é um método absolutamente seguro, mas há uma boa proteção.

 

Há algum problema em manter o uso de pílula contraceptiva ou outros remédios?

Poucas medicações são contraindicadas. Existe um manual do Ministério da Saúde que é publicado no site e é bem útil nesse sentido (veja aqui). Com relação ao contraceptivo especificamente, é necessário usar algum à base apenas de progesterona. Ela não deve usar contraceptivos conjugados, porque o estrógeno baixa a produção de leite.

 

As substâncias não são levadas para o bebê?

A quantidade é muito pequena, não vai prejudicar o bebê. O leite materno funciona como um filtro, então a dosagem que vai passar para a criança é realmente muito pouca.

 

A OMS avaliou como crítico o investimento do Brasil em amamentação, que é de menos de US$ 1 por bebê. Como um valor maior poderia ser investido nessa área?

Eu citaria inúmeras ações e que não são de elevado custo, até porque o leite materno não custa absolutamente nada, a não ser boa vontade, energia, empenho e desejo. Por exemplo, por que não se investir nos bancos de leite humano? Na Bahia inteira só temos seis bancos de leite, em Salvador são dois. Ao invés de pagar fórmula para bebês de mães com HIV, por exemplo, por que não esses bebês terem direito a ter o leite da própria mãe pasteurizado ou então de um banco de leite? São bebês que nascem também imunodeprimidos, então eles não podem receber o leite materno devido à contraindicação. É necessário investir em propaganda e em estímulo para se estudar mais o tema. As pessoas acham que aleitamento é lugar comum e pouco se interessam em estudar. Qualquer dificuldade, por mínima que seja, os próprios profissionais sugerem o desmame. Existe uma cultura de se estudar pouco o aleitamento materno. Sobretudo eu digo, sem medo de estar errada, que os médicos estudam pouco. Precisamos formar mais especialistas nesse assunto. Aquilo que o médico diz ao paciente, ele acredita que está certo, então ele não vai levar a sério se o próprio médico desacredita. É preciso também diminuir a propaganda da indústria, porque é realmente muito pesada. É altamente rentável produzir leite. Para se ter uma ideia, uma criança consome uma lata de leite a cada dois dias e meio. Isso é muito bom para gastar dinheiro. Assim como o governo investe em vacinas, ganharia muito se investisse no aleitamento. Por que não começar a ensinar sobre aleitamento nas escolas primárias, por exemplo? Passar noções de que nós somos mamíferos. Quando você vai no shopping, acha várias bonecas com chupeta e mamadeira. A criança já cresce com essa cultura de que ela deve receber um leite que não é da própria mãe. Isso merece uma ação do governo.

 

Falando em bancos de leite, há alguma diferença para a criança, com relação principalmente a anticorpos e nutrientes, se ela recebe leite da própria mãe ou de outra mulher?

O leite do banco de leite é pasteurizado. Depois da pasteurização, o leite se torna estéril, o que mata 100% das bactéria patogênicas e 90% das bactérias que são saprófitas. É óbvio que alguns componentes do leite diminuem, sobretudo aqueles de proteção. Ainda assim, esse leite é melhor do que um leite industrializado por ser da mesma espécie. O ideal é que um bebê prematuro, por exemplo, receba leite da mãe dele, que também é prematura. Dessa forma, o leite está adequado para aquela idade. Se a mãe está impossibilitada por algum motivo e ele recebe o leite de uma outra mãe que também teve um bebê prematuro vai ser melhor. O investimento em bancos de leites é necessário, não há nenhuma justificativa para Salvador ter somente dois bancos de leite. A gente já supre com dificuldade as próprias unidades, que são o Iperba e a Maternidade Climério de Oliveira. A gente não tem leite para dar para nenhum lugar. Porém a tecnologia é extremamente barata. O Brasil tem a maior rede de bancos de leite do mundo, nossa tecnologia é mundialmente conhecida pela eficácia e baixo custo. Pessoas de fora vêm fazer tratamento no Rio de Janeiro, na Fiocruz, sobre bancos de leite. O custo operacional de um banco de leite é realmente muito baixo em comparação ao benefício que ele traz.

 

O leite então se adequa ao desenvolvimento da criança?

Sim, essa também é uma grande vantagem do leite materno. Para os primeiros sete dias do bebê, o primeiro leite é chamado de colostro e é muito rico em proteína e pouco rico em gordura, além de ter muito valor imunológico. Depois vem o leite de transição, que é menos amarelinho e vai de sete a 15 dias, já tem outras características. A partir daí, ele já tem características diferenciadas. Em uma única mamada, a primeira porção do leite é mais cheia de água e depois mais gordurosa. Se uma mãe tem um bebê prematuro, uma das coisas que se pode fazer para ele ganhar peso é desprezar a primeira parte e oferecer a mais gordurosa. Ele vai tomar uma porção menor, mas bastante gorda.