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Entrevista

Brasileiros não têm acesso ideal ao diagnóstico da Doença Celíaca, diz especialista

Por Marcos Maia

Brasileiros não têm acesso ideal ao diagnóstico da Doença Celíaca, diz especialista
Foto: Divulgação / Hospital da Bahia
Maio é o mês de conscientização sobre a Doença Celíaca, causada pela intolerância à proteína glúten, no Brasil. Contudo, de acordo com o coordenador da Gastroenterologia do Hospital da Bahia (HBA), Bruno Silva, apesar dos avanços nos estudos sobre a doença, o país ainda não atingiu um acesso ideal ao diagnóstico da intolerância alimentar. “Nós sofremos muito porque o acesso dos pacientes aos métodos de diagnóstico é muito difícil, principalmente para a população mais carente que depende, sobretudo do sistema público de saúde”, avalia. Em entrevista ao Bahia Notícias, o gastroenterologista destaca que o diagnóstico tardio pode levar a complicações mais graves. “Se a gente não diagnostica precocemente e trata de forma adequada o paciente com doença celíaca naturalmente pode vir a desenvolver quadros de carências nutricionais como anemia ou desnutrição”, explica. Durante a conversa, Silva explica melhor os sintomas, características da doença e os cuidados que o indivíduo diagnosticado deve ter com a alimentação.

O glúten é uma proteína presente no trigo. Existe uma similaridade desta proteína também em outros dois grupos de alimentos: o centeio e a cevada. Eles têm uma espécie de apresentação química muito similar. Quais os efeitos provocados pelo glúten no organismo do portador da doença?
A doença celíaca acomete o intestino delgado de determinados indivíduos, e é caracterizada pela intolerância ao glúten que ocorre em indivíduos geneticamente pré-dispostos. Nós consideramos que é importante haver uma pré-disposição genética, e mais nada, para que o indivíduo venha a desencadear, em contato com agentes do meio onde ele vive, uma resposta imunológica que irá culminar com o desenvolvimento da doença celíaca. Nesse caso o glúten é justamente essa proteína, essa substância, que quando faz parte da dieta de uma pessoa geneticamente pré-disposta acaba desenvolvendo essa doença. O glúten está presente em uma infinidade de alimentos aos quais estamos em contato diariamente. O maior exemplo são aqueles alimentos produzidos com o trigo, mas alimentos também produzidos com o centeio e sevada (até mesmo com aveia) também vão conter em sua composição o glúten. A proteína em contato com essas pessoas geneticamente pré-dispostas acaba desencadeando uma resposta imunológica que irá produzir as chamadas interventivas inflamatórias, vai também produzir as respostas imunes celulares, que vai começar a destruir as células do próprio intestino delgado, e com isso levando a um processo inflamatório crônico e que com o tempo irá culminar com a atrofia do intestino delgado. Esse é basicamente o mecanismo da doença. E depois que você cai nessa inflamação que causa atrofia, é levado as disfunções do intestino delgado, que é tão importante para a absorção dos nutrientes. Quando a pessoa já está com a doença instalada ela passa a ter problemas, não só diretamente relacionados com a ingestão do glúten, mas a ter dificuldade de absorver uma infinidade de outras substancias que acaba levando as pessoas a ter certo déficit nutricional.

As manifestações da doença variam de acordo com a faixa etária, certo? 
Certo.

Ok. Quais os sintomas e desafios do diagnóstico? Por que parece que existe a questão de diferenciar a doença celíaca com a sensibilidade ao Glúten. O senhor poderia esclarecer melhor essas questões?
A princípio, em geral, esse tema vem a se tornar cada dia mais importante por conta do grande número de informações que surgiram nos últimos anos a respeito da dieta rica ou pobre em glúten. Hoje em dia nós começamos a ver uma procura indiscriminada por uma dieta pobre em glúten. Geralmente, quando começa a surgir essa oferta de informações a respeito das dietas com glúten, começa a ter muitas informações errôneas que levam muitas pessoas que não tem intolerância ao glúten a restringir a proteína da sua dieta. Nós temos visto muito disso hoje em dia. Infelizmente, muitas vezes norteado por profissionais. Antes de responder a sua pergunta, eu gostaria de trazer alguns dados que consolidam o que eu disse.

A doença celíaca acomete indivíduos de qualquer idade. Porém, a prevalência dessa doença na população em geral varia em determinadas populações ao longo do mundo. Nós vamos ter determinadas populações que vão ter prevalência um pouco maior, e outras com a prevalência um pouco menor. No entanto, na média, se pudéssemos avaliar uma média global, nós mais ou menos chegaríamos a um percentual de 0,5% a 1% da população mundial portadora da doença celíaca. Esse número aumentou nos últimos tempos não porque a doença se tornou mais frequente, mas porque as ferramentas usadas para o diagnostico se tornaram mais eficientes. Da mesma forma a preocupação e circulação de informação também levou a comunidade médica, e outros profissionais da área de saúde também, a melhorar o rastreio e o diagnostico dessa doença na população em geral.

Como eu disse, é importante que haja uma pré-disposição genética para desenvolver a doença. Existem também determinados grupos que tem uma chance maior de ter a intolerância, e nós temos certa necessidade, e certa obrigação até, de investigá-los. Não só logicamente aquelas pessoas que chegam ao consultório com sintomas que muitas vezes lembram a doença celíaca. Existem pessoas que são assintomáticas, mas que precisam também ser investigadas. Normalmente são aquelas pessoas, com parentes de primeiro grau portadores da doença. É importante que você faça um rastreio delas. É importante também que você investigue pessoas que tenham antecedentes como de doenças do sistema endocrinológico ou síndromes genéticas. Contudo, o nosso grande alvo são pessoas que apresentam algum grau de sintomatologia.

A sintomatologia pode diferir da população pediátrica para a população adulta. Nós podemos dividir, de uma forma geral, a forma clínica da doença celíaca da forma clássica, na qual o paciente tem os sintomas típicos da doença. E tem também a forma atípica, que surge naquele paciente que tem os sintomas que não representam a sintomatologia da doença celíaca. Na forma clássica, normalmente são pacientes com déficit nutricional que vem apresentando diarreia, distensão abdominal, dor abdominal, emagrecimento e perda de peso. Essa forma clássica é muito mais recentemente vista na faixa pediátrica. Os adultos podem apresentar esses sintomas. As crianças também costumam apresentar deficiência no crescimento e no desenvolvimento. Toda criança que apresente esses sintomas precisa ser verificada quanto a presença de doença celíaca.

Nem sempre a gente espera aquele quadro rico de sintomas. Às vezes a gente tem um quadro sintomatológico que pode apresentar determinados sintomas, e em outros casos esses sintomas não são visíveis. Já na forma atípica, que nós costumamos ver com maior frequência na população adulta, o médico vai investigar se o paciente desenvolveu ou vem desenvolvendo um quadro de anemia ou então um déficit de nutrientes ligados ao metabolismo do cálcio e da vitamina B. Muitas vezes esses pacientes podem desenvolver um quadro de osteoporose mais precoce. Não se espera que uma pessoa com 35, 40 anos de idade, tenha osteoporose. Então, muitas vezes a maneira clínica de apresentação da doença se dá justamente com essa forma atípica, com a ausência dos sintomas mais comuns. Existem também pacientes que apresentam uma forma silenciosa da doença, sem nenhuma dessas duas formas de sintomatologia, mas ele tem alterações laboratoriais e endoscópicas compatíveis com a doença de forma que não desenvolveram ainda o quadro manifesto da doença ainda.

O senhor acabou de falar sobre a questão da perda de peso acentuada e sobre manifestações assintomáticas da doença. Existem relatos de pacientes que relaram quadro de perda de peso excessiva, e uma grande dificuldade de em ser diagnosticado com a doença, e de como isso acabou acarretando uma série de problemas posteriores. O diagnóstico retardado da doença celíaca causa que tipo de sequela?
Houve avanços no processo de diagnóstico da doença, mas ainda não alcançamos um patamar desejado. Houve avanços em relação ao passado de médio prazo, no entanto não atingimos uma realidade desejável comparada a países mais desenvolvidos. Nós sofremos muito porque o acesso dos pacientes aos métodos de diagnóstico é muito difícil, principalmente para a população mais carente que depende, sobretudo do sistema público de saúde. O retardo no diagnóstico é um grande problema porque a doença celíaca começa com a intolerância ao glúten e termina muitas vezes com complicações, em certos casos, realmente graves. Se a gente não diagnostica precocemente e trata de forma adequada o paciente com doença celíaca naturalmente pode vir a desenvolver quadros de carências nutricionais como anemia ou desnutrição. Ele pode vir a desenvolver complicações graves como perfuração intestinal, muitas vezes precisando de cirurgias de urgência. Uma cirurgia dessa magnitude em um paciente desnutrido, com déficit nutricional, muitas vezes pode ter um desfecho que não é o mais satisfatório. Além disso, o paciente com doença celíaca quando não tratado de forma adequada, apresentam uma chance maior de desenvolver algumas neoplasias em relação à população geral. Como por exemplo, o linfoma, que é a mais temida delas. Esses pacientes podem desenvolver determinados tipos de linfomas, que são neoplasias do sistema hematológico, graves. O retardo no diagnóstico da doença celíaca é extremamente danoso para o paciente.

O tratamento da doença se restringe a parar de comer glúten, mas a proteína está em quase tudo que se consome. O que pode substituir o glúten na alimentação do paciente diagnosticado?
Após ser vencida a dificuldade do diagnóstico, a gente vai entrar em uma dificuldade ainda maior que é o tratamento e acompanhamento desse indivíduo. Basicamente, a pedra chave do tratamento da doença celíaca é a dieta estritamente ao glúten por toda a vida. Associado a isso, nós precisamos também levar em consideração algumas medidas que considero importante. Como eu falei muitas vezes os pacientes já chegam diagnosticados com complicações da doença, por não terem um diagnóstico prévio. Complicações como a anemia e carências nutricionais, que também precisam ser corrigidas. Nesse caso, entram suplementos, medicações, para poder corrigir o déficit nutricional desses indivíduos. Não se trata de uma medicação específica contra a doença celíaca, mas de tratamento quanto às complicações. O acompanhamento com um nutricionista experiente também é fundamental. Outra coisa que considero muito importante é a adesão do paciente a um grupo de apoio formado por outros indivíduos diagnosticados com a doença. Isso torna o paciente mais motivado a aderir a determinado tratamento. A partir daí eles conseguem trocar ideias, experiências com profissionais, compartilhar receitas. A doença celíaca não é uma alergia alimentar, isso precisa ficar bem claro. Criou-se um mito de que hoje em dia todo mundo quer fazer dieta sem glúten, e isso me entristece muito. Principalmente, quando essas orientações partem de profissionais formados que colocam em prática essas medidas sem uma base científica. A doença celíaca é uma intolerância alimentar, ela não é uma reação alérgica que normalmente se dá por uma reação imunológica. Ao contrário disso, ela é uma intolerância alimentar.

Por fim, acho que vale a pena ressaltar a diversidade de alimentos que são permitidos, e que devem fazer parte desse plano de substituição. Existem cereais como o arroz, o milho, a farinha de mandioca ou o fubá. Nada disso tem glúten. Alimentos tipo lipídeos, como os óleos, margarinas em geral também não tem glúten. Todas as frutas, sucos produzidos de maneira natural, não costumam ter glúten. Os laticínios como leite, manteiga, queijo e derivados também não costumam ter (é recomendado ter cuidado com alguns queijos que podem levar farinha de trigo no seu preparo). As hortaliças, leguminosas, folhas, raízes também não, carnes em geral. São alimentos extremamente ricos. A variedade de alimentos que são permitidos para os celíacos é bem abrangente. Cabe ao portador da doença descobrir esse variado cardápio alternativo que existe, e aderir de forma definitiva para ter um tratamento eficaz.

Sempre que se fala de doença celíaca é importante falar que nós gastroenterologistas, não recomendamos a suspensão do glúten da dieta sem que exista uma comprovação de que o indivíduo tenha de fato a doença. Muitas vezes isso é um grande problema. É muito frequente atender no meu consultório pacientes com a suspeita da doença celíaca que já chegam com a suspensão do glúten da dieta.

Definitivamente isso vai atrapalhar o trabalho porque no momento em que o glúten é suspenso da dieta o paciente começa a normalizar os exames que justamente levam ao diagnóstico. É preciso ter as alterações que caracterizam a doença celíaca para poder fechar o diagnóstico. Se você suspende o glúten da dieta, e o paciente está há algum tempo sem ingerir a proteína, normalmente o diagnostico naquele momento vai falhar e os exames vão dar negativos. Muitas vezes, se o paciente suspendeu o glúten há algum tempo, é necessário reintroduzir o glúten a dieta, e esperar algumas semanas, às vezes meses, para que as alterações voltem a aparecer nos exames.

Em relação à contaminação cruzada: O indivíduo diagnosticado com a doença não pode ter contato com a menor partícula de glúten nos alimentos. Quais os cuidados que o paciente deve ter para evitar o contato com a proteína?
Isso é extremamente importante porque depois que se começa o acompanhamento, a orientação nutricional, nem todos vão responder ao tratamento. E aí, quando se investiga melhor, percebemos que uma grande parcela daqueles que não responderam ao tratamento, na verdade estão tendo a infelicidade de estar consumindo algum alimento, ou praticando algum comportamento alimentar, que acaba levando a contaminação com as partículas do glúten. Às vezes, é necessária a mínima quantidade da proteína para desencadear a doença. Hoje já existem leis federais em relação a isso, para que os rótulos dos alimentos indiquem a existência de glúten. Outra coisa importante é ficar atento a forma de preparo dos alimentos em casa. Pequenas quantidades de glúten podem contaminar a dieta e dificultar o tratamento. É extremamente importante que os utensílios de preparo dos alimentos dos celíacos em casa sejam separados (panelas, raladores, colher de pau, liquidificador etc.) para justamente evitar essa contaminação. E outra coisa é ter cuidado com alimentos que não possam ter a procedência garantida porque eles poderão provocar contaminação inadvertida e levar a um processo de não resposta ao tratamento.