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Entrevista

‘É preciso acelerar’, diz pesquisadora sobre políticas de saúde para população negra

Por Francis Juliano / Fotos: Bruna Castelo Branco

‘É preciso acelerar’, diz pesquisadora sobre políticas de saúde para população negra
Foto: Bruna Castelo Branco / Bahia Notícias
Uma das doenças mais comuns entre a população negra é a Doença Falciforme (DF), ou anemia falciforme, uma enfermidade genética que impede o sangue de circular de forma adequada. No Brasil, Salvador é a cidade com maior incidência deste tipo de anemia. Um em cada 17 bebês soteropolitanos vêm ao mundo com traço falciforme. O controle da DF, entre outras questões, é uma das metas da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, instituída em 2009. Em entrevista ao Bahia Notícias, a professora de Saúde Pública do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Ufba, Clarice Santos Mota, considera que a evolução dessas políticas ainda é “lenta” na Bahia. Segundo Clarice, um dos saltos da gestão da Sáude em Salvador foi a criação dos Multicentros, que dispõem de um hematologista para o diagnóstico da DF. Na conversa com o BN, a pesquisadora detalhou ainda as representações do racismo institucional em hospitais e clínicas e disse que a qualidade da saúde da população está associada à qualidade social. “Nos últimos dez anos houve uma melhora nos indicadores sociais, mas isso precisa se acelerar, isso precisa continuar. Porque você não corrige os problemas de saúde sem corrigir os problemas sociais”, avaliou. Leia abaixo a entrevista na íntegra:
 

Bahia Notícias: Em 2009 foi instituída a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra no país. A partir daí os estados começaram a instalar comitês para implementar as mudanças. Aqui na Bahia existe um desses comitês. Como anda o trabalho do governo do estado nessa área?
 
Clarice Santos: Eu considero lenta.
 
BN: Como você observa a atenção ao paciente com anemia falciforme em Salvador?
 
CS: Até a gestão João Henrique você tinha centro de referência em cada distrito sanitário [Salvador tem 12]. Embora nem todas as unidades não funcionassem perfeitamente, tinha uma equipe com pediatra, nutricionista, psicólogo, assistente social para receber quem sofria da anemia falciforme. Qual era o grande problema dessa estrutura do período de João Henrique? Faltava um hematologista. O que tem acontecido hoje? Encontrar um hematologista é igual a encontrar agulha em palheiro. Aí você não tinha hematologista, e a pessoa ficava na carência. Ela tinha que recorrer ao Hemoba ou a Apae. Imagine que a pessoa more em um lugar distante, mas perto de uma unidade básica. Assim, ela não precisaria se dirigir ao Hemoba ou a Apae porque nem sempre ela pode ir para esses lugares. Se você tem uma criança que tenha a doença falciforme, que gera crises de dor, e precise passar duas horas de ônibus, é muito complicado. Além disso, na doença falciforme, o calor e o frio podem causar um agravamento do quadro.
 
BN: Mas o que a gestão atual fez?
 
CS: A implantação dos Multicentros. Nesses locais, além da equipe de atenção básica, tem um hematologista. Isso para a pessoa que tem anemia falciforme é fantástico. Isso melhora muito a realidade da pessoa. Porque hoje, o que a gente tem no multicentro é infinitamente melhor do que existia na gestão João Henrique. Embora, pode acontecer de a pessoa precisar de um hospital. Porque faz parte da doença crises mais graves. 
 
BN: Depois do diagnóstico com o hematologista, que se faz nesses multicentros, como é feito depois o acompanhamento dos pacientes?
 
CS: Esse acompanhamento é para a vida inteira. Precisa de um nutricionista, um pediatra, no caso das crianças, vacinas, tem um tratamento profilático de penicilina que é para evitar infecção, e os medicamentos que o medico passa, como ácido fólico. Mas, mesmo com todos os cuidados, podem ocorrer crises, como crises de dor, que tem um escala. Os médicos dizem: “Você começa tomando um analgésico básico em casa, tipo Tylenol. Não passou, vai para um analgésico mais forte, como Tylex. Se não passou a dor, vai para o hospital”. O que a gente percebe é que há pouca articulação do hospital com a atenção básica. Por que tem que haver essa articulação? Porque essa pessoa é uma só. Ela não é uma na atenção básica e outra no hospital. O ideal seria que os médicos que recebessem alguém da atenção básica tivessem acesso a tudo o que a pessoa fez com o hematologista, o remédio que toma, o histórico etc. Se todos trabalhassem como uma rede, o paciente seria tratado de forma integral. Porque ele pode ser cuidado na atenção básica, mas vai precisar de um hospital, e esse hospital não pode negar leito.
 

 
 
BN: Nessa conversa com o governador eleito, quais os planos que você vai propor?
 
CS: A gente já entregou para o assessor dele demandas que são importantes: primeiro, a questão da informação em saúde. É preciso que a anemia tenha notificação compulsória no estado. Se nós tivermos um sistema de informação que dê visibilidade à doença, a gente pode pautar isso do plano político. 
 
BN: A gente falou das estruturas do Estado e do Município, das estruturas públicas. Em nível de sociedade civil, o Movimento Negro, por exemplo, tem pautado essa luta?
 
CS: Tudo que a gente conquistou foi a partir da pressão do Movimento Negro. Claro que teve uma boa vontade do presidente Lula, mas foi preciso pressão. E continua. Os movimentos sociais têm sido importantíssimos. Porque eles vão cobrar, vão fiscalizar, fazer denúncias.
 
BN: Você acha que a população negra tem assumido mais o protagonismo nessas ações de cobrança e de denúncia em relação à saúde pública?
 
CS: Você vê mesmo pelo IBGE. O número de pessoas que se declarou negra aumentou muito. Houve um processo de conscientização da sociedade e as pessoas estão se declarando preto ou pardo com mais ênfase.
 
BN: Na prática, quais são as facetas desse racismo institucional na saúde pública?
 
CS: Muitas vezes estão nas entrelinhas. Por exemplo, uma pessoa negra chega na emergência sentindo dor no hospital, aí alguém fala: “deixa, negro aguenta sentir dor. É isso mesmo”. Tem um trabalho, defendido no ISC, que comparou mulheres que chegam com aborto espontâneo em unidades de saúde, tanto brancas quanto negras. As brancas, automaticamente, alguém interpretava como se tivesse aborto espontâneo. Já em relação às negras, as pessoas interpretavam como se o aborto fosse provocado. Como se dissesse: “Aí, olha, engravidou de novo”. Por isso, deixam no corredor, deixam sangrar, perder o útero, e por aí vai. Eu já entrevistei um menino com 21 anos, que tinha traço falciforme, e não a anemia falciforme, que o médico determinou que ele fizesse vasectomia. O médico faz isso sem parar para pensar que o rapaz poderia ter dois, quatro filhos, sem a doença, e constituir uma família. Sem falar em mulheres que tiveram que fazer laqueadura, ligar as trompas, sem o próprio consentimento, só porque tinha traços falciformes.
 

 
BN: Essa realidade ainda é recorrente? 
 
CS: Infelizmente ainda acontece. E isso não é só no Brasil. Na Índia tem médicos que chegam a recomendar aborto só porque a pessoa tem traços da anemia falciforme. Só pela possibilidade de 20% de anemia falciforme.
 
BN: As universidades baianas incorporam esses estudos em seus cursos?
 
CS: Na Ufba há alguns grupos que trabalham com o tema, na Escola de Enfermagem, na faculdade de Odontologia. Eu acho que a Ufba tem feito muita coisa, apesar de não ter gerado ainda impacto nos currículos de saúde, que ainda não discutem racismo. Isso vai demorar um pouco. Nesse assunto depende muito de um professor aqui, outro ali, que quer discutir.
 
 


 
BN: Além da anemia falciforme, existem outras doenças que também afetam a população negra, como diabetes, hipertensão, câncer de próstata. Para essas enfermidades, há uma melhor oferta de serviços?
 
CS: Para diabetes e hipertensão existe um programa, chamado Hiperdia, que já está bem mais consolidado do que projetos para anemia falciforme, por exemplo. Já tem muito mais respaldo, até porque essas doenças têm uma prevalência maior. Mas também a gente não pode desconsiderar os fatores sociais envolvidos. Eu como antropóloga não acredito que essa prevalência se deva a uma diferença genética entre as pessoas. Tem muito mais a ver com as condições sociais que a população negra vive do que a fatores genéticos. Por exemplo, em uma unidade de saúde da Liberdade, a gente entrevistou várias mulheres que tinham pico de hipertensão quando havia tiroteio na rua. É claro que, se você mora no lugar onde há tiroteio e tem uma tendência a pressão alta, você não vai ficar bem.  Se o marido está desempregado, é claro que a diabetes vai se agravar. Nos últimos dez anos houve uma melhora nos indicadores sociais, mas isso precisa se acelerar, isso precisa continuar. Porque você não corrige os problemas de saúde sem corrigir os problemas sociais. Por isso que a gente fala tanto em qualidade de vida.
 
BN: Onde é que as políticas de saúde para a população negra devem ser mais priorizadas. Na básica, média ou alta complexidade?
 
CS: Em saúde coletiva, a gente estuda que 70% dos problemas de saúde podem ser resolvidos na atenção básica. Se você tem uma criança com dor de barriga que ocupa um leito no HGE [Hospital Geral do Estado], vai chegar acidentado e não vai ter lugar. Você precisa de uma atenção básica que funcione 24 horas, com cobertura alta. A cobertura de Salvador é uma das menores do Brasil. Até o final da gestão de João Henrique estava 13%, e eu soube recentemente que na gestão atual, a cobertura está em 33%. Isso é baixíssimo. Você vai em Fortaleza são 80% de cobertura na atenção básica. Outro problema em Salvador é a baixa cobertura do programa Saúde da Família (PSF). Essa equipe do PSF é fundamental porque tem um agente comunitário, tem uma enfermeira, tem atendimento domiciliar.