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Entrevista

‘Não há como ter certeza absoluta’, diz presidente do MSF-BR sobre entrada do ebola no Brasil

Por Francis Juliano

‘Não há como ter certeza absoluta’, diz presidente do MSF-BR sobre entrada do ebola no Brasil
Foto: Reprodução / Leogump Carvalho
A maior epidemia de ebola de todos os tempos tem devastado a Guiné, Libéria e Serra Leoa, e vitimado mais de 4,5 mil, segundo os últimos relatos da Organização Mundial da Saúde (OMS). Para o presidente do escritório brasileiro da organização internacional Médicos sem Fronteiras (MSF), Mauro Nunes, a situação desses países se tornou ainda mais caótica pelo colapso dos sistemas de saúde locais. “Por causa do ebola, as unidades de saúde estão fechando na África e os profissionais estão ficando com medo”, diz Nunes em entrevista ao Bahia Notícias. Na conversa pelo telefone, Nunes, que é carioca com mãe adotiva baiana, detalhou como é feito o trabalho de profissionais do MSF contra o ebola, “não é para amadores”, opinou sobre a falta de espírito público de carreiras de saúde, “não é só formar o medico ou o enfermeiro, mas é preparar as pessoas”, e disse que apesar de o Brasil ter sido bem-sucedido no caso da suspeita (rechaçada) de ebola do guineano, afirmou que “não há como ter certeza absoluta” se o país vai poder controlar o vírus caso ele chegue ao território brasileiro. Veja a entrevista na íntegra abaixo: 
 

Mauro Nunes em atuação na Nigéria. Foto: Divulgação | MSF
 
Bahia Notícias: Como é o trabalho de profissionais de saúde no controle da epidemia do ebola?
 
Mauro Nunes: O tipo de intervenção no ebola é extremamente desgastante. Tanto do ponto de vista físico como do emocional. Você imagina trabalhar em um calor africano de 38°, 40°, ficar com aquele uniforme parecido com roupa de astronauta, duas luvas em cada mão, todo coberto, dentro de uma tenda de lona, sem poder sequer distrair e passar a mão no rosto para enxugar o suor? É muito complicado. As pessoas vão e passam de quatro a seis semanas, no máximo, e voltam. Você tem que estar em todo o tempo em estado de alerta. As pessoas se cumprimentam com “oi”. Não pode haver toque. Mesmo fora das unidades de tratamento. Você tem que lavar as mãos várias vezes, usar álcool. Tem que colocar os pés em cloro para sair e entrar em ambientes. Ou seja, é um estado de 100% de alerta durante 24h de seu tempo.
 
BN: Mesmo assim há baixas entre profissionais.
 
MN: Se não me engano, já perdemos entre oito e dez colegas. Trabalhar com essas pessoas, e vê-las morrendo. Isso assusta, não é? Todas elas morreram na África. 
 
BN: Quando algum profissional tem suspeita da doença, o que é feito?
 
MN: Toda pessoa que aparece com sintomas, imediatamente a gente faz uma investigação profunda para verificar como o profissional se contaminou. Até agora, nenhum se contaminou por quebra de regra de segurança ou prevenção. Quando eles estão no trabalho, ficam todos paramentados como os equipamentos de proteção individual e todo o treinamento que a organização proporciona. Depois do trabalho, eles vão para as suas comunidades. E ninguém anda com aquela roupa 24 h por dia. Até agora, os casos de contaminação que aconteceram ocorrem fora do centro de tratamento de pacientes.
 
BN: A roupa dos profissionais de saúde é segura?
 
MN: Totalmente segura. A roupa é um instrumento, mas ela tem que ser bem utilizada. Por exemplo, se você usa todo o equipamento, está bem protegido. Mas na hora que você tira a roupa e, por algum descuido, encosta uma das luvas no rosto ou em alguma parte do corpo, você pode se contaminar. Hoje, nós tivemos dentro dos nossos centros, em torno de quatro mil admissões. A gente já tem, mais ou menos, no centro mais de quatro mil pessoas suspeitas, dos quais 2,5 mil confirmados. Ali ficam mais de três mil profissionais, e você tem menos de uma dúzia de casos. Você vê que a proteção funciona. Mas nós todos somos seres humanos e ninguém está livre de cometer uma falha apesar de todo o treinamento.
 
BN: Alguns países, como Senegal e Nigéria, zeraram o ebola. Como ocorre isso?
 
MN: Depois que aparece o último caso, a gente conta 21 dias e depois mais 21 dias. Ou seja, se conta 42 dias para considerar que o surto foi extinto naquele momento.
 
BN: O senhor já esteve nestes países afetados, ou vai ainda?
 
MN: Eu já estive. Fui chefe de missão na Nigéria durante mais de um ano, mas isso em 1998. Como estou na presidência do órgão aqui no Brasil, e é um cargo eletivo, de administração, você não pode estar em atividades do dia-a-dia. Porque a nossa função é monitorar e garantir que a organização siga dentro dos trilhos.
 

Foto: Divulgação MSF
 
BN: Os profissionais aqui no Brasil têm se manifestado a favor de colaborar para o controle do ebola na África?
 
MN: Nós temos alguns profissionais trabalhando, internamente e externamente. Mas não adianta a pessoa querer trabalhar: “ah, eu quero ir”, por boa vontade. Ela pode pôr em risco a própria vida, como a de outras pessoas. Por isso, para enviar qualquer pessoa, mesmo os nossos profissionais, é necessário que a pessoa tenha certa experiência e ainda assim é preciso passar por um treinamento. É como se diz: não é algo para amadores.
 
BN: Mas a organização precisa de profissionais, não é mesmo?
 
MN: O grande problema hoje é que os países querem mandar só doações. O dinheiro ajuda, mas não faz tudo. Não é suficiente construir unidades de saúde. Você tem que treinar, capacitar e enviar pessoas para cuidar. O Médicos sem Fronteiras está no limite da nossa intervenção. Não temos mais pessoas para mandar. A gente faz um rodizio. E é uma situação extremamente estressante, preocupante, de risco. A gente está mandando todo mundo que pode. A maioria dos países que tem unidades militares, que se prepararam para guerras bacteriológicas, tem todo esse treinamento e equipamento. Eles podiam está auxiliando nessa epidemia. Existe um progresso, mas ainda é muito lento.
 
BN: O senhor acredita que a formação do médico incentiva a participar de missões como essa do Médicos sem Fronteiras? Recentemente, nós tivemos uma polêmica com o programa Mais Médicos, onde houve recusa da maioria dos profissionais brasileiros em ir para cidades desassistidas. Pelo que a gente sabe, a remuneração de um profissional do MSF é modesta.
 
MN: Eu não gosto de discorrer sobre assuntos que não conheço tanto como falar de currículo de medicina. Eu sou enfermeiro e me formei em 1986. Mas eu acho que existem coisas que não são só da formação acadêmica. Eu acho que existe uma coisa de sociedade. Porque não é só formar o medico ou o enfermeiro, mas é preparar as pessoas. Infelizmente há uma tendência a não ter tanto desprendimento e vontade de ajudar o próximo. É uma visão social muito mais egoística, muito em prol do individual do que da coletividade.
 
BN: A participação brasileira na comparação com outros países em missões do MSF é pequena, média, grande?
 
MN: A gente tem até um número bom de profissionais brasileiros trabalhando. O grupo de psicólogos brasileiros na organização é o maior dentre todos os países. Agora, para entrar é preciso ter dois anos de experiência, e existem alguns fatores que limitam a participação que é a exigência, por questões de trabalho, do domínio do inglês e do francês.
 
BN: Como o senhor tem acompanhado o trabalho da Organização Mundial da Saúde e da própria ONU no combate ao ebola? Segundo a OMS, se nada for feito na intensificação do combate à doença, há uma previsão de surgir até 10 mil casos novos de ebola por semana. 
 
MN: Esse surto que a gente está vivendo é completamente imprevisível. Não tem como se prever. O que a gente sabe com certeza é que essa epidemia esteja bem distante do final. A OMS tem os cálculos dela, que não me cabe julgar, mas o que eu posso dizer é que a gente não pode lançar nenhuma previsão. 
 
BN: Como é que se tratam os pacientes nos locais de atendimento?
 
MN: Um dos grandes problemas é o transporte dos pacientes. Se você não transportar os pacientes para unidades de isolamento, essas pessoas vão ficar disseminando o vírus na comunidade. Por isso é necessário fazer uma mobilização comunitária para explicar os sintomas e os cuidados a serem tomados. Tem também a questão dos corpos. Uma das fases mais agudas de transmissão da doença é quando o paciente morre. Então, se for fazer aquela coisa tradicional de velório, de abraçar a pessoa, a tendência é que a doença se espalhe igual a fogo no mato seco. 
 

Foto: Divulgação MSF
 
BN: O senhor prevê que tenhamos pessoas contaminadas por ebola no Brasil em curto espaço de tempo?
 
MN: É como eu disse. É imprevisível. Você vê que nos Estados Unidos, que é um país desenvolvido, já teve casos. Agora, quando vai chegar, se vai chegar, é tudo uma questão de estarmos atentos. Nesse caso do [africano que fez exames e deu negativo o teste para o ebola], acho que a condução do governo adotou medidas apropriadas. 
 
BN: Como o senhor avalia a exposição do guineano? Houve manifestações de racismo contra ele nas redes sociais atribuindo o problema da doença à questão raciais.
 
MN: Tudo é uma questão de informação. Porque nossa colega norueguesa que se contaminou é branca. Nossa colega francesa é branca. Além de outras pessoas que tiveram a doença e que não são negras.
 
BN: Como o senhor classificaria a gravidade dessa epidemia?
 
MN: Essa epidemia é a maior de todos os tempos. Mas é bom que fique claro que o ebola não é uma coisa nova. O que aconteceu antes é que eram epidemias em áreas rurais, afastadas, e foram epidemias que foram de certa forma facilmente controladas. Agora, como a epidemia chegou aos grandes centros urbanos, por isso essa magnitude.
 
BN: Agora, isso não mostra desleixo do Ocidente e dos países desenvolvidos em se preocuparem com a doença enquanto ela ficou restrita na África?
 
MN: Quando essa epidemia começou em março, soamos o sino e avisamos que tínhamos uma epidemia. A presidente internacional do MSF já foi quatro vezes até a sede da ONU fazer discursos implorando que a comunidade internacional se sensibilizasse. É impossível para uma organização como a nossa dar conta de uma epidemia em quatro países. Mas somente agora, em outubro, é que começam a ter promessas e enviar pessoas.
 
BN: É possível controlar o ebola em um breve tempo?
 
MN: É possível sim. Se houver uma intervenção com vontade, se houver uma mobilização, se houver insumos, pessoas, profissionais, é possível controla-la. Caso contrário, ela vai crescer de forma exponencial como está crescendo. Mas uma coisa é preciso se destacar. É todo o entorno. Por causa do ebola, as unidades de saúde estão fechando na África. O ebola é uma doença grave, mas tem outras doenças que precisam ser controladas, como a malária, asma, diabetes, acidente, tem vacinação. As unidades estão fechando, os profissionais estão ficando com medo. Porque dentro de um centro de tratamento de ebola você está todo paramentado, você sabe quem está recebendo. Mas em um posto de saúde você não sabe se quem está chegando com febre, tem uma gripe, ou ebola. E nesse contato você pode se contaminar. Muitos profissionais de saúde morreram. Por isso que o sistema de saúde desses países está colapsado. Tem pessoas morrendo de malária, porque não tem atendimento.
 
BN: Aqui na Bahia, há informação de que o Estado tem comprado roupa para profissionais em um eventual risco. Em escala nacional, estamos preparados para conter o vírus?
 
MN: Já existe movimentação neste sentido. A maior prova é esse caso [do guineano]. Pelo que pude acompanhar, foi feito um bom manejo do caso. Acredito que se fosse positivo, a gente teria uma boa intervenção. Mas isso não quer dizer tanto. Não tem como ter certeza absoluta. Porque os Estados Unidos pareciam ter um sistema adequado e ocorreram casos. A Espanha, a mesma coisa.