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Entrevista

'Médicos brasileiros não têm que se preocupar com concorrência', diz cubano que atua em Salvador

Por Francis Juliano

'Médicos brasileiros não têm que se preocupar com concorrência', diz cubano que atua em Salvador
Fotos: Francis Juliano/Bahia Notícias
Há quase dois meses em Salvador, o médico cubano Leonardo Perez, de 33 anos, diz que uma das principais causas da precariedade do sistema brasileiro é a falta de profissionais. Para ele, mais até que estrutura, é necessário um contingente que diminua a disparidade entre população assistida e gente capacitada para atender. “O Brasil tem 1,8% de médicos por mil habitantes. Cuba tem 6,7% de médico para cada mil pessoas”, comparou em entrevista ao Bahia Notícias. Em atividade na Unidade de Saúde da Família (PSF) Boa Vista do Lobato, no Subúrbio Ferroviário, o médico natural da província de Holguín, distante 700 quilômetros de Havana, já passou dois anos e meio em um programa semelhante ao Mais Médicos na Bolívia e quer trazer para cá a fama dos conterrâneos de ter controlado enfermidades que ainda persistem no Brasil, como esquistossomose, malária, sarampo, tuberculose e hanseníase (lepra), além dos índices de saúde da Ilha caribenha. “As taxas de mortalidade infantil e materna em Cuba são iguais às de países do primeiro mundo e nós queremos trazer elas para cá”, declarou. Chegado à Bahia através de um acordo entre a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e os governos brasileiro e cubano, o médico não revelou quanto um profissional de medicina ganha em seu país, mas disse que, da bolsa de R$ 10 mil paga pelo trabalho, sobra em torno de U$ 1 mil (ou R$ 2,3 mil) para ele. Sobre a possível permanência dos cubanos após os três anos do programa, Leonardo Perez rechaçou essa ideia, pelo menos no seu caso, e afirmou que os brasileiros não devem temer tal concorrência futura. “Acho que os médicos brasileiros não têm que se preocupar com isso”, opinou. Veja a entrevista abaixo. 
 
 

Fotos: Francis Juliano / Bahia Notícias

 
Bahia Notícias: Você atende aqui desde o começo de outubro na Unidade de Saúde da Família (PSF) Boa Vista do Lobato. Qual a avaliação que você faz desse período?
 
Leonardo Perez: Acho que tem sido muito importante não só para mim como para as pessoas que estão sendo atendidas. A população de Salvador tem uma das menores coberturas médicas do país, que é de 17%. Por isso, é importante esse trabalho que nós estamos fazendo aqui, não só para ajudar no tratamento das doenças, como de forma geral, porque a doença pode vir associada a outros problemas que podem afetar a família inteira da pessoa.
 
BN: Há informações de que, em Cuba, enfermidades ainda presentes no Brasil, como sarampo, tuberculose, hanseníase (lepra), coqueluche, esquistossomose, malária, além de parasitoses, praticamente foram controladas. O que o médico cubano pode trazer de conhecimento para solucionar o problema da recorrência dessas doenças brasileiras? 
 
LP: A questão é bastante complexa. Primeiro, é fazer a cobertura médica de todos os municípios. Porque a saúde não é feita somente com as condições que o Brasil tem e com dinheiro para restaurar postos de saúde e unidades de saúde. A saúde da população não se faz apenas com médicos. Então, nós achamos que podemos contribuir com a saúde do povo brasileiro e diminuir as taxas de mortalidade infantil, além de ajudar a mudar os hábitos e padrões de vida. As taxas de mortalidade infantil e materna em Cuba são iguais às de países do primeiro mundo e nós queremos trazer essas taxas para cá. Aqui no Brasil, e em Salvador, há muita gente com diabetes, hipertensão, coisa que em Cuba esse tipo de paciente é bastante controlado. Nós sabemos que são muitas pessoas que estão doentes e um bom controle das enfermidades vai dar a elas mais qualidade de vida. 
 
BN: Nesse tempo aqui no Subúrbio Ferroviário, quais foram as doenças mais frequentes?
 
LP: Tem muito paciente, principalmente, com diabetes, hipertensão, obesidade. Por isso que é importante não só tratar como também constituir uma base de apoio. Eles abriram as portas para gente e se nós não falarmos a verdade, eles não terão confiança em nós e a gente não tem como ajudar eles. Creio que até agora nós temos uma boa relação médico-paciente.
 
BN: Vocês passaram três semanas em treinamento. Qual foi o assunto priorizado neste curso?
 
LP: A preparação com a língua. Melhorar a pronunciação das palavras, melhorar a comunicação com as pessoas, porque o mais importante é entender as pessoas para que elas possam entender a gente também.
 
 
BN: Muitos médicos cubanos que vieram para cá já tinham alguma iniciação na língua portuguesa? Outra coisa, a língua trouxe algum problema na comunicação com os pacientes?
 
LP: Não, aprendemos aqui. Eu acho que a gente tratou de se esforçar para melhorar a comunicação. Alguns médicos têm alguma dificuldade, mas eu acho que a grande maioria faz uma comunicação com o paciente e dá para eles entenderem a gente e eles entenderem a nós. Ainda existe alguma dificuldade com a língua portuguesa, mas eu acho que nós vamos melhorar. O espanhol também é uma língua muito parecida com o português.
 
BN: Você já trabalhou em outros países em programas como o Mais Médicos?
 
LP: Eu trabalhei na Bolívia dois anos e meio.
 
BN: Dá para fazer algum comparativo das condições que você encontrou na Bolívia com as que você tem encontrado aqui em Salvador?
 
LP: Acho que é muito parecido. Na Bolívia, nós atendíamos pessoas que tinham muita carência e que procuravam uma atenção médica mais especializada. No Brasil, nós vamos fazer a mesma coisa que é atender a população mais precisada.
 
BN: Uma das queixas das entidades médicas brasileiras que se manifestaram contrárias ao programa, é que o trabalho dos médicos, principalmente dos cubanos, configuraria um trabalho escravo. Qual a sua opinião sobre isso? 
 
LP: Eu acho que é uma questão de ponto de vista. Nós temos obedecido até agora a um programa de solidariedade com os países, não somente com o Brasil. Nós temos médicos em mais de 36 países, inclusive na África. Não é obrigatório para nenhuma pessoa cubana, nenhum médico cubano, ir para outro país trabalhar.  É por vontade própria. Eu digo que somos escravos da solidariedade. Eu vou falar um dado. O Brasil tem 1,8% de médicos por mil habitantes. Cuba tem 6,7% de médico para cada mil pessoas. Então, Cuba tem a possibilidade de poder oferecer médicos para trabalhar em outros países. Eu acho que o Brasil aproveitou a oportunidade e o benefício é mútuo, não só para os governos, mas para as populações de ambos os países.
 
BN: Quanto é que um médico cubano recebe lá em Cuba em moeda brasileira?
 
LP: Eu não tenho calculado agora como está a relação [do peso] com o real, mas eu acho que o Brasil é o país mais caro da América Latina. Então, não podemos comparar o Real com as moedas de países como Cuba, Bolívia, Chile, Argentina. No Brasil, um televisor pode custar o dobro de um na Bolívia. 
 
 
BN: Mas é um bom negócio para médicos cubanos entrarem em programas como esse?
 
LP: Eu acho que o dinheiro em qualquer parte do mundo é uma motivação para as pessoas. Mas o Brasil é uma experiência muito importante para nós. Muitas pessoas no mundo inteiro querem vir para o Brasil para conhecer esse país. Eu estive no Pelourinho e lá eu vi muitas pessoas que são da Europa, por exemplo. E por quê eles vieram? Porque querem conhecer também o Brasil. Para nós é uma grande oportunidade vir para cá, à parte do dinheiro. Nós temos duas oportunidades aqui. Uma: ajudar as pessoas, como fizemos na Bolívia, na África; a outra: conhecer a cultura do Brasil que é muito conhecida no mundo inteiro.
 
BN: Se fala muito no acordo entre o Brasil, a Opas e o governo de Cuba, e no salário pago aos médicos cubanos. Da bolsa de R$ 10 mil, quanto é mesmo que fica para vocês desse montante?
 
LP: Em real, eu não sei, mas acho que aproximadamente US$ 1 mil.
 
BN: Sobre o atendimento de novo. Fala-se muito que o médico brasileiro tende a ser mais distante no contato com os pacientes, em comparação com o médico cubano, por exemplo. Na sua visão, existe mesmo essa diferença?
 
LP: Eu sei pelas pessoas, mas não pelo que vejo na unidade [Boa Vista do Lobato]. Aqui trabalham comigo três médicos brasileiros e eu acho que o trato deles com os pacientes está dentro do normal, é bom. Acho que a diferença entre médicos brasileiros e cubanos não fica no trato e sim na quantidade, porque Cuba tem mais que o Brasil. 
 
 
BN: Mas lá você tem essa orientação de estabelecer um contato mais próximo, de sentar bem perto, do lado dos pacientes e ouvi-los mais demoradamente?
 
LP: Sim. Lá essa relação é priorizada. Não só com os pacientes, mas com as famílias dos pacientes. Esse termo internacional “rapport” é para explicar essa forma de estar perto do paciente, que o paciente olhe no olho da gente, para fazer com que nós sejamos parte da família deles.
 
BN: O prestígio do médico cubano em Cuba é parecido com o que o médico brasileiro tem aqui?
 
LP: Não. Eu notei que no Brasil, no sul do país, um médico comprou uma ilha. Em Cuba, nenhum médico tem ilha (risos).
 
BN: Já foi levantado por um médico mais independente daqui de Salvador que os profissionais brasileiros temem a permanência dos estrangeiros, o que tornaria os postos de trabalho mais concorridos para eles em um futuro próximo. Essa preocupação procede? Você pensa em ficar no Brasil depois dos três anos do programa?
 
LP: Eu não penso em ficar, mas eu acho que os médicos brasileiros não têm que se preocupar com isso. Aqui, no Mais Médicos, há gente de Portugal, Argentina, Chile Bolívia, então, como é que eles vão fazer concorrência em um programa que dura três anos. E eles sabem que nenhum médico estrangeiro pode vir para o Brasil trabalhar sem fazer o Revalida. Além disso, eu acho que não vamos ficar aqui porque o Brasil está formando seus próprios profissionais. 
 
BN: E sobre o Revalida, qual a sua opinião sobre esse exame para avaliar profissionais estrangeiros que desejam trabalhar no país?
 
LP: O conselho médico do Brasil tem essa organização, mas eu não saberia dizer. Mas a família da gente fica em Cuba e nós temos expectativa de voltar porque lá é mais importante para nós, afetivamente.