Usamos cookies para personalizar e melhorar sua experiência em nosso site e aprimorar a oferta de anúncios para você. Visite nossa Política de Cookies para saber mais. Ao clicar em "aceitar" você concorda com o uso que fazemos dos cookies

Marca Bahia Notícias Justiça
Você está em:
/
/
Justiça

Notícia

TJ-BA quer mudar Vara de Crimes Organizados para núcleo sem juiz natural

Por Cláudia Cardozo

TJ-BA quer mudar Vara de Crimes Organizados para núcleo sem juiz natural
Foto: TJ-BA

No apagar das luzes do ano judicial de 2017 do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), uma proposta polêmica poderia ter sido aprovada: a de extinguir a Vara dos Feitos Relativos a Delitos Praticados por Organizações Criminosas para se criar o Núcleo de Garantias Relativas a Delitos Praticados por Organizações Criminosas (NUGorcrin). A Vara foi instalada em março de 2016. A propostade mudança, elaborada pela Comissão de Reforma do TJ-BA, foi apresentada na última sessão plenária do ano de 2017, realizada no dia 19 de dezembro. A emenda do texto, relatada pela presidente do TJ, desembargadora Maria do Socorro, passava batida em um bolo de resoluções administrativas coladas em votação. Quando anunciou o tema e já declarava aprovação por unanimidade, o desembargador Roberto Frank Maynard disse que seu voto era divergente. Segundo a desembargadora Telma Britto, o projeto não constava em pauta e nem no psique dos julgadores do tribunal. A desembargadora Lisbete Teixeira, relatora do projeto, disse que o texto foi criado a partir de um pedido de membros do Ministério Público, da Secretaria de Segurança Pública da Bahia e delegados da Polícia Civil, feito em uma reunião para discutir a atuação da vara, “detectando-se naquela oportunidade que a obtenção da tutela jurisdicional seria mais célere através de atendimento por meio do núcleo de garantias relativas a delitos praticados por organização criminosa, motivo pelo que foi constatada a desnecessidade da manutenção da vara, devendo por consequência ser extinta”. De acordo com o projeto, o núcleo vai auxiliar o funcionamento das varas criminais comuns, “para aprimorar as medidas cautelares e promover celeridade e eficiência aos procedimentos investigatórios criminais relativos ao crime organizado” e diminuir a sensação de impunidade. Ainda segundo o relatório de Lisbete, o núcleo terá abrangência na Região Metropolitana de Salvador e atende ao disposto na Lei Federal 12850/2013, que dispõe sobre os crimes de organização criminosa.


Desembargador Roberto Frank

O desembargador Roberto Frank, porém, discorda. Em seu voto, afirmou que o texto proposto ofende “previsões expressas como a do juiz natural em razão da previsão normativa dos magistrados”. Os três juízes responsáveis pelo núcleo seriam indicados pela presidência do tribunal, com aprovação do plenário. Maynard lembrou que a Constituição Federal prevê que “ninguém será processado, nem sentenciado, se não pela autoridade competente”, e não por um “tribunal de exceção”. “Esse princípio tem por finalidade evitar que a pessoa sujeita a procedimento de natureza persecutória seja subtraída de seu juiz natural, que traduz conceito jurídico de fundamental importância, vocacionado a impedir na abrangência de sua destinação tutelar a interferência na esfera de desempenho da atividade jurisdicional”, disse no voto. Outro ponto destacado pelo desembargador é que o núcleo, se existir, terá vinculo direto com a presidência, o que não está previsto na Lei de Organização do Judiciário, pois os núcleos tem caráter “eminentemente administrativo, segundo regimento dos órgãos auxiliares”. “Há no meu sentir um desalinho entre as funções judicantes e administrativas no texto, o que aflora ainda mais acerca da violação a princípios fundamentais do processo penal e levará, inexoravelmente, os procedimentos relacionados a organizações criminosas ao terreno das nulidades do processo penal”, reforçou. Em síntese, o núcleo seria competente para apreciar somente medidas cautelares de delitos cometidos por organizações criminosas, como busca e apreensão, receptação telefônica, quebra de sigilos, decretação de prisão preventiva, entre outras. Após isso, com o oferecimento de denúncias por parte do Ministério Público, os processos seriam redistribuídos para uma das varas competentes para serem instruídos. Nesta segunda fase, as medidas cautelares podem ser mantidas ou não. Para a relatora, contudo, o núcleo não viola o princípio do juiz natural, pois os membros do núcleo devem ser juiz de direito, titular de varas criminais e serem designados pela presidência. Lisbete considera que essa é a melhor situação para o contexto e de fácil aplicação, para melhorar o Poder Judiciário. Ela relatou que os processos que estão na vara atualmente estão parados e, até então, nenhum foi julgado.


Desembargadora Maria do Socorro

 Após os relatos, iniciou-se uma discussão no plenário do TJ-BA. A presidente Maria do Socorro pediu, então, que os colegas de Corte analisassem o projeto “com carinho”, por ser uma demanda “urgente”, sustentando que a “situação é dramática, inclusive no interior do estado”. “A criminalidade aumenta a cada dia e estamos sem suporte”. Os desembargadores Pedro Guerra e Nilson Castelo Branco pediram vista compartilhada e devem liberar os votos na primeira sessão plenária administrativa deste ano, que ocorre nesta quarta-feira (24). Alguns desembargadores anteciparam seus votos. O desembargador João Bosco acompanhou o voto de Roberto Frank e afirmou que o núcleo pode não resolver o problema dos processos não julgados. “O problema está justamente na instrução e na sentença, onde, segundo foi dito por vossa excelência, os processos não têm sido julgados”, afirmou para Maria do Socorro. O desembargador Júlio Travessa também foi com a divergência. “O Tribunal de Justiça da Bahia não pode criar tribunal de exceção. O principio do juiz natural veio para justamente impedir que sejam escolhidos os julgadores para determinadas causas. Nós não podemos escolher que vai julgar as causas, cabe ao legislador constituinte, que assim o fez, quando fez a competência, ou legislador ordinário”, asseverou. O desembargador Sérgio Cafezeiro também acompanhou a divergência. A desembargadora Regina Helena defendeu que “ou a gente relativiza a defesa, ou relativiza o combate". "É uma forma moderna que tem sido adotada por outros países para o combate contra [o crime organizado]. Quem vai julgar vai ser o juiz natural, não é o núcleo. O núcleo vai tomar apenas as medidas administrativas”. Ela ainda pontuou que nenhum juiz quer atuar na vara por ficar exposto e que, na Itália, um modelo parecido já é adotado. 


Lucas Carapiá

Para o advogado e mestre em Direito Penal, Lucas Carapiá, no país ainda não existe a figura do “juiz de garantias”, a não ser no projeto de reforma do Código de Processo Penal, que tramita na Câmara dos Deputados. “A existência de Juízos de Garantias, que se ocupem das medidas provisórias e, portanto, aplicáveis antes de uma fase de julgamento propriamente dita, já é prática comum em diversos países ocidentais, em especial na Europa Continental e na América do Sul. Ocorre que o modelo de juiz de garantias funciona nesses países de maneira diversa daquela que parece estar sendo proposta e discutida”, avalia. Ele diz que a função não se ocupa com questões como aplicação de “pena” e tampouco realiza juízos de culpa. “Trata-se de um magistrado que deve agir apenas quando provocado, no sentido de verificar se a medida cautelar requerida pela acusação, como uma prisão provisória, por exemplo, é legal e necessária. Ou seja, deve avaliar se há violação dos direitos do indivíduo que está sendo investigado e que, portanto, deve ser tratado como inocente, e é possível de ser deferida diante das peculiaridades do caso. O foco é garantir ao máximo a preservação das garantias constitucionais do indivíduo contra quem se busca a aplicação de medida constritiva antes do julgamento do processo. Daí o nome ‘Juiz de Garantias’", explica, completando que a função não pode ser vista “como um ator político que atue para interferir de qualquer maneira na suposta ‘sensação de impunidade’, seja lá de onde ela surja”. Além do mais, o especialista pontua que o cargo não pode ser criado sob o argumento de trazer celeridade aos julgamentos. “A função desse juízo não tem relação direta com a instrução processual e o consequente julgamento do caso. Na minha opinião, perceber um Juízo de Garantias de outra forma é deturpar o modelo aplicado na Europa Continental e na América do Sul, violando também a nossa Constituição Federal, pois criaria um juízo de antecipação de penas”, pontua. O advogado, que também é professor, afirma não conhecer o projeto do TJ na integralidade, mas entende que, a indicação de juízes para compor o núcleo pela presidência do tribunal fere a previsão do juiz natural. “Esse é um princípio que se aplica sempre, seja na fase pré-processual ou na processual. Para mim, o ideal é que os juízes de garantias sejam titulares do juízo respectivo, de modo que a eventual promoção, transferência ou remoção dos mesmos seja calcada em critérios constitucionais e legais, respeitando-se todas as garantias, em especial a inamovibilidade dos magistrados”, explana.