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Case de Feira de Santana considerada ‘depósito’ de adolescentes não é interditada pelo Estado

Por Cláudia Cardozo

Case de Feira de Santana considerada ‘depósito’ de adolescentes não é interditada pelo Estado
Foto: Reprodução
Os adolescentes custodiados na Comunidade de Atendimento Socieducativo (Case) Juiz Melo Matos, em Feira de Santana, correm risco de perder a vida. O alerta foi feito pela promotora de Justiça Idelzuith Freitas de Oliveira Nunes, diante da situação de insalubridade e depreciação que se encontra a unidade. A promotora assina uma ação civil pública junta com a promotora de Justiça Jó Anne Costa Sardeiro, que requer que o Estado interdite a unidade, transfira os adolescentes e reforme a unidade, a fim de garantir dignidade e a ressocialização dos internos. O pedido foi acatado pelo juiz Waldir Viana Ribeiro Junior, da 1ª Vara da Infância,  no dia 16 de dezembro, que determinou a interdição da Case, sob pena de multa diária de R$ 5 mil. A decisão ainda não foi cumprida. Pela lei que regulamenta o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), o Estado deve garantir a estrutura para execução de todas as medidas socioeducativas para adolescentes que estão em conflito com a lei e praticaram atos infracionais. O Estado da Bahia é o principal réu da ação, junto com a Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SJDHDS), responsável pela Fundação Estadual da Criança e Adolescente (Fundac), que administra a Case. A unidade, atualmente, tem 50 internos, sendo que 15 estão cumprindo medida provisória – que pode durar até 45 dias, e 35 que cumprem medida socieducativa, que são revisadas a cada seis meses.

A promotora afirma que o inquérito foi instaurado no primeiro trimestre de 2014 para apurar as irregularidades no atendimento dos adolescentes que cumprem medida socioeducativa na Case Juiz Melo Matos, que funciona em condições sub-humanas, como a falta de condições de habitabilidade, salubridade e higiene, “em total desacordo com as determinações do Sinase, colocando em risco a segurança e integridade física dos internos”. O inquérito ainda é respaldado em pareceres técnicos da Divisão de Vigilância Sanitária, da Secretaria de Saúde de Feira de Santana, além do Corpo de Bombeiros e da Central de Apoio Técnico do Ministério Público, subscrito por engenheiros sanitaristas e civis. Os laudos indicam diversas irregularidades como, paredes e teto com infiltrações e mofo, instalações elétricas expostas, ausência de extintor de incêndio, ausência de projeto de combate a incêndio e pânico, fornecido pelo corpo de bombeiros, equipamentos de cozinha danificados, rede de esgoto danificada, ausência de depósito de lixo, banheiros sujos e que necessitam de reforma, ralos abertos, vasos sanitários e pias danificados, ausência de depósito de materiais de limpeza, falta de equipamentos para casos de emergência, ausência de plano de gerenciamento de Resíduos em Serviço de Saúde, ausência de lençol descartável, falta de médicos e enfermeiros, ausência de local específico para esterilização de material, materiais oxidados no centro odontológico. Sobre a água utilizada nas dependências da Case, o relatório aponta que a água oferecida aos internos provém de um poço, e que água para ingestão é armazenada em galões de água mineral sem lacre e tampados com copos descartáveis. O reservatório subterrâneo está com tampa danificada, sem tratamento, e sem bomba dosadora de cloro. A Vigilância Sanitária aplicou nove autos de infração na Case, e nenhuma melhoria foi realizada após a inspeção. Em outro laudo, é apontado que as camas foram construídas com material metálico, quando deveriam ser de alvenaria ou inox. Em janeiro de 2014, houve um surto de varicela na unidade, em decorrência das péssimas condições do local, que facilitou a propagação rápida da doença, que resulta em feridas na pele dos internos.

A conclusão dos laudos é de que há “risco à saúde dos internos ocupantes do imóvel sede da Case”, além de ser um risco também para os funcionários e colaboradores. “Sobredita situação, por si só, já simbolizaria, não só afronta aos ditames estabelecidos no Estatuto da Criança e Adolescente, mas, sobretudo, a um dos mais comezinhos princípios morais da sociedade, qual seja, o respeito ao ser humano em desenvolvimento”, diz a ação. “De todo o exposto, vislumbra-se não ser possível nutrir qualquer expectativa de alcançar os resultados almejados pelo Estatuto da Criança e Adolescente com a implantação de uma política de atuação estatal destinada a promover a responsabilização e a reeducação dos adolescentes, em uma instituição como a Case Juiz Melo Matos”, avalia as promotoras. Na ação, é requerida a desocupação da Case para que passe por uma reforma, dentro dos ditames constitucionais, e com observação das garantias legais previstas aos adolescentes em conflito com a lei. Segundo a Promotoria, a Case Juiz Melo Matos funciona em “condições inadequadas para desenvolver um programa socioeducativo”, descumprindo reiteradamente o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). “É a vida dos adolescentes que está em jogo”, diz Idelzuith Freitas.



O juiz Waldir Viana Ribeiro Junior, na decisão, afirma que os pareceres técnicos chamam a atenção pelas irregularidades apontadas. Segundo o magistrado, a administração da Fundac “mostra-se adepta da filosofia popular que preconiza ‘nada é tão ruim que não possa ser piorado’”, e que mesmo após as inspeções da Vigilância Sanitária, os peritos do MP se depararam com a mesma situação. “Nada, absolutamente nada, havia sido feito para o resguardo da saúde e segurança dos adolescentes, ou, ao menos, minorar os riscos”, diz o juiz. “O pouco caso da Fundação mantenedora da unidade é escancarado”, afirma Waldir Viana na sentença. Fotografias acostadas nos autos comprovam que no refeitório, onde se exige maior apreço pela higiene, a situação é ainda pior. O julgador diz que os ralos abertos da cozinha, por exemplo, são “um bom convite a baratas, ratos, e outros insetos que durante o período noturno devem se refestelar em lauto banquete proporcionado pelo Estado”. “Noto que a gestão não se dignou nem a mudar a errônea forma de manipulação de alimentos, que continuam sendo descongelados em temperatura ambiente, mesmo repreendida pela Divisa meses antes”, observa. Sobre a água, o magistrado nota que ela é coletada em poço clandestino, sem qualquer tratamento para consumo, e sentencia que, portanto, “não há água potável”. Além do mais, ele diz que os internos não podem ser alojados em “celas”, como ainda estão sendo submetidos na Melo Matos. “O retrato da situação da Case Melo Matos é grave. A unidade está longe, na verdade, muitas léguas dos ditames basilares estabelecidos no microssistema jurídico que rege o tema ‘adolescentes em conflito com a lei’”, analisa.


A promotora de Justiça Idelzuith Freitas diz que o Ministério Público da Bahia tentou, por três vezes, firmar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) das irregularidades com o Estado, mas que as tratativas não obtiveram sucesso. Nas reuniões, o Estado demonstrou que contratou a empresa Volque através de licitação para reformar a unidade. A obra, contratada sobre a cifra de R$ 2,6 milhões, deveria ter sido executada em 240 dias e ter sido entregue em junho de 2014. Entretanto, está parada, e o projeto base não atende aos requisitos para sanar as irregularidades apontadas nos relatórios. A promotora diz que alguns aditivos no contrato já foram realizados, mas que a construtora alega que um serviço depende de outros para serem realizados, e desta forma, a “obra ainda está no início quando já deveria estar findada”. O argumento utilizado pelo Estado para recusa em assinar o TAC, segundo Idelzuith Freitas, é de que se precisa de “mais tempo para executar a obra, de que não tem como executar”. “A gente sentiu uma falta de sensibilidade, de diálogo, da Fundac com a extinta Sucab. A Fundac atribuía responsabilidade a Sucab, e a Sucab a Fundac, e fica nesse jogo de empurra”, diz. “Recurso existe de grande expressão para reformar a unidade. O Estado tem como acelerar a obra. O problema não é recurso, é gestão de obra”, frisa. Ela adianta que a demora na execução da obra pode desencadear uma ação de improbidade administrativa contra os gestores públicos responsáveis pela Case, se houver indício de mal uso de verba pública. A promotora também lembra que ainda pode ser celebrado um TAC entre o MP e o Estado enquanto tramita o processo, e que se for cumprida, extingue-se a ação.

A Fundac, nos autos, afirma que licitou e contratou empresa para executar as obras de reforma que pudessem sanar os vícios estruturais apontados e adequar o prédio às condições mínimas de higiene, salubridade e habitalidade exigíveis. Mas ficou comprovado que a obra “não contemplava em nada os pontos objeto das infrações higienicosanitárias detectadas”. A Volque, também intimada a se pronunciar, confirmou as irregularidades apontadas no inquérito não foram contempladas no projeto inicial licitado e que só poderia cogitar incluí-lo na obra em caso de aprovação dos aditivos contratuais. Diante de toda situação, o juiz determinou a interdição da Case Juiz Melo Matos, com transferência dos internos em 72h, sob pena de incidirem em crime de desobediência, considerado como ato de improbidade, sob pena de multa diária de R$ 5 mil. A Promotoria, ao Bahia Notícias, afirmou que não tem conhecimento se o Estado foi notificado da decisão, pois ainda não recebeu o retorno da carta precatória expedida para o juízo da Infância de Salvador, para que o Estado tomasse conhecimento da sentença, e assim cumpri-la. Mas diz que o Estado já interpôs um agravo para pedir a reforma da decisão de primeiro grau. Uma das razões para demora na intimação, segundo a promotora, pode ser o recesso forense de fim de ano. Ela assegura que há possibilidade de transferência nos custodiados para outras unidades, como Zilda Arns, ou a Case recém-inaugurada, em Camaçari, que apresenta vagas disponíveis.

A promotora ainda destaca que Feira de Santana recebe muitos adolescentes do interior, como das cidades de Barreiras, de Vitória da Conquista, da região do extremo-sul, e que essas transferências para local distante é uma afronta a legislação brasileira. “A lei garante que eles têm que cumprir medida no local mais próximo de sua residência. É uma afronta legislação, porque o processo seria de ressocialização, e exige que haja participação da família, e essa participação fica comprometida”. A Promotoria ainda considerou que a Case Juiz Melo Matos “pode ser considerada um depósito – pois outro nome não há para tanto – de adolescentes em circunstâncias de cumprimento de medida socieducativa, segregados provisória ou definitivamente em ‘celas’ insalubres e precárias”.  “Basta fazer uma visita à unidade, para se constatar que naquele local a dignidade do jovem está sendo desrespeitada, porquanto atualmente sequer as mínimas condições estão sendo oferecidas”, indica. A Case foi construída em um prédio antigo, com vergalhões oxidados, e que podem ser utilizados como objeto de agressões mútuas entre adolescentes ou dirigida a monitores. O parquet ainda elenca que as omissões do Estado descumprem tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, como Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, Convenção dos Direitos da Criança e as Regras Mínimas da ONU para Proteção dos Jovens Privados de Liberdade.