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Marca Bahia Notícias Justiça

Entrevista

Procuradora Edelamare Melo - Trabalho infantil na Bahia

Por Niassa Jamena

Procuradora Edelamare Melo - Trabalho infantil na Bahia
Fotos: Tiago Melo / Bahia Notícias
Edelamare Melo, procuradora regional do Trabalho e coordenadora do comitê gestor do Projeto Sinaleira – que resgata e faz trabalho de inclusão social e produtiva com crianças e adolescentes em situação de rua, sem atribuições de gestão administrativo-financeira –, conversou com o Bahia Notícias sobre os malefícios do trabalho infantil. De forma direta, Edelamare afirmou que a falta de vontade política não permite a erradicação do trabalho precoce na Bahia. “Ninguém quer encarar isso de frente, preferem fingir que não estão vendo e sublimar”, contou. De acordo com ela, as soluções para o problema já são conhecidas, falta apenas adotá-las. A procuradora aborda com segurança temas como racismo, preconceito e assistência a crianças em condições de vulnerabilidade econômica. Ela também fala da realidade de quem trabalha desde cedo para sobreviver.
 

 
Bahia Notícias – Quais são as diferenças entre o trabalho infantil realizado na cidade e o que é feito pelas crianças nas áreas rurais, em relação aos danos físicos, emocionais e psicológicos quais?
 
Edelamare Melo – O trabalho precoce afeta o sujeito de uma forma integral. Entretanto, o principal dano causado por essa exploração é na formação da cidadania. A relação de trabalho é de subordinação jurídica. Quando essa se inicia em uma idade muito tenra, ela se torna uma relação de submissão. Você transfere mais ou menos as regras que existem entre pai e filho, que é de obediência, para o mundo do trabalho. A criança não se situa na condição de empregado cidadão, mas, sim, submisso. Ela tem dificuldade de resistir à ordem e de se negar a cumprir aquelas que são indevidas. Imagine o indivíduo ser formado assim e entrar para o mercado de trabalho dessa forma? Sem falar que o trabalho precoce não permite um desenvolvimento intelectual porque você fica fora da escola. O jovem deixa de ter acesso a conhecimentos que vão possibilitar olhar o mundo de forma crítica. A educação passa a ser um problema porque ela o impede de lutar pela sobrevivência. Nos aspectos físicos ele afeta bastante porque o organismo da criança não tá preparado para suportar determinadas atividades que um trabalho demanda; como pegar em enxada no caso do trabalho rural por exemplo. Geralmente os meninos e meninas que estão nessa situação tem o desenvolvimento atrofiado.
 
BN – A exploração sexual, juntamente com tráfico de drogas, trabalhos em regime de escravidão e atividades que prejudicam a saúde integra a lista das piores formas de trabalho infantil. Qual dessas atividades tem maior incidência na Bahia?
 
EM – Em termos de números é o trabalho infantil doméstico. Mas hoje eu tiraria o trabalho doméstico e botaria o tráfico e a exploração sexual. O problema é que esses são invisíveis. Ninguém quer encarar isso de frente, preferem fingir que não estão vendo e sublimar. No Projeto Sinaleira, nós temos uma demanda de quase 600 crianças. É uma política pública aprovada pelo Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente. Logo, é uma política pública do Estado da Bahia. Mas quem é que se interessa por isso? Aí eu fico pedindo dinheiro para tudo, desde a comida ao carro para fazer visita domiciliar. Eu precisava bater nas portas dos políticos. Ninguém quer trabalhar com aquilo que é diferente. E o menino da rua é diferente. Ele está acostumado a ter a liberdade e a renda dele. Ele não obedece a regras, as regras dele são as regras da rua. É difícil você dar a ele uma formação dentro do possível, nos padrões exigidos de um curso de aprendizagem. Eles são analfabetos funcionais. Muitos não sabem ler e escrever, outros leem e não compreendem o que estão lendo.
 
BN – O Projeto Sinaleira visa tirar das ruas crianças e adolescentes que são exploradas e que estão em situação de vulnerabilidade e mendicância as reincluindo socialmente e fazendo com que entrem no mercado de trabalho de forma digna... 
 
EM – É. O objetivo é fazer a inclusão social e produtiva através de ações integradas de saúde, educação e assistência no mesmo espaço físico. Nós trabalhamos com meninos de 14 à 17 anos. São ações voltadas para crianças que tem um núcleo familiar totalmente desestruturado porque a mãe está na droga, porque o pai está no álcool... 
 

 
BN – E apesar das dificuldades, esse objetivo está sendo alcançado?
 
EM – Na primeira turma nós conseguimos sim atingir o objetivo. De 80 alunos nós formamos 54. Considerando quem são esses meninos e que muitos deles se estabeleceram em sua comunidade com projetos de empreendedorismo. Na segunda turma eu tive problemas de saúde e não pude estar a frente do projeto como eu gostaria. Ficamos sem espaço para trabalhar e o que conseguimos com a prefeitura era inadequado, precisava de reforma. O dinheiro que eu tinha era para resolver o problema da segurança. E ainda vieram me dizer que o projeto tinha que descer garganta abaixo dos secretários. Como assim? Se é obrigação do Estado brasileiro garantir a dignidade da pessoa humana e a da criança e do adolescente é prioritária, porque um projeto como esse tem que descer goela abaixo?
 
BN – Quais as mudanças a senhora acha que o governo deveria implementar para que o trabalho infantil pudesse ser erradicado no estado?
 
EM – A metodologia do projeto sinaleira. Ela é desenhada a partir do que o estado e o município têm de ações relacionadas à saúde, educação e assistência que não gere impacto no orçamento. Qual a dificuldade do governo de cumprir obrigações legais que já estão estabelecidas? Por isso que ele tem que descer garganta abaixo. A medida já existe, só precisa ser implementada. 
 
BN – Em geral, como é a aceitação e a participação no projeto das famílias desses adolescentes?
 
EM – As famílias buscam o projeto, porque ele tem um grande atrativo: a renda. Nós tínhamos os técnicos para trabalhar, o projeto tinha sido desenhado de uma forma que a saúde, a educação e a assistência eram trabalhadas de forma integrada e dinâmica. Mas, o menino que está na rua ele está acostumado a ganhar. Então era difícil manter eles lá só com a alimentação e o transporte e a gente precisava de um método eficaz de aprendizagem, teoria e pratica dentro de uma instituição de ensino. Então na hora que o Senai abriu as portas e deu a bolsa para os meninos, as famílias e os jovens começaram a procurar o projeto. E aí surgiu outro problema, tivemos que passar a educar financeiramente esses meninos.


 
BN – Uma das dificuldades enfrentadas pelo projeto é fazer com que crianças que tinham uma liberdade sem limites passem a respeitar regras. Como é a abordagem dos agentes na rua para que essas crianças aceitem participar do projeto?
 
EM – No primeiro momento a gente fez abordagem de rua. A partir do primeiro projeto as próprias famílias começaram a buscar espontaneamente o projeto. Hoj,e o Sinaleira é buscado porque ele oferece uma oportunidade de inclusão social e produtiva com um apoio técnico que não existe em nenhum outro. A questão de identidade é trabalhada lá, a questão de gênero, racial é trabalhada lá. É difícil, mas não é impossível quando se tem vontade política para fazer.
 
BN – O projeto também faz um trabalho voltado para a afirmação de identidade e resgate da autoestima. Qual a maior carência não material desses jovens e crianças quando chegam ao programa?
 
EM – A grande carência é a falta de amor. Eles têm dificuldade de amar porque eles não receberam amor e quando recebem é de uma forma inadequada. Porque até para fazer o bem tem limite. Muitas vezes você querendo dar uma educação muito permissiva ao seu filho você acaba jogando ele no mundo da droga.  A gente tem que ensinar esses meninos a respeitar limites.
 
BN – A senhora já deu declarações dizendo que o trabalho infantil é eminentemente negro e feminino. Pelo menos em Salvador a impressão que se tem é que a maior parte das crianças e adolescentes trabalhadores é composta por meninos. A que se deve essa diferença entre as estatísticas e o que vemos nas ruas?
 
EM – O trabalho infantil quando ela vai para o mundo da exploração sexual ele é negro e feminino. Quando é no mundo da droga ele é negro e masculino. O trabalho infantil no Brasil em geral ele tem cor. Ele é preto! Ele é negro! E afeta de uma forma mais dura a mulher. Por tudo que a mulher é enquanto ser. Você vê a maternidade precoce, os abortos... O homem ele tem muito mais facilidade de estabelecer as suas couraças colocar as suas capas e ir para o confronto. A mulher não, ela é muito mais vulnerável, mais fácil de ser subjugada pelo medo.
 

 
BN – A maioria das pessoas somente relaciona exploração infantil à pobreza a falta de estrutura familiar. Entretanto, pela lei, crianças que trabalham como modelos ou atrizes e muitas vezes tem uma jornada desgastante que compromete a infância entram nessa categoria?
 
EM – O Ministério Público tem uma cartilha direcionada para o trabalho infantil artístico. Nós já conseguimos vencer uma barreira porque antigamente os juízes davam alvará a torto e a direito. Já estamos mudando de mentalidade em relação a isso. O trabalho infantil artístico não é uma pior forma porque ele é consentido e acompanhado pelos pais, mas ele é muito ruim na medida em que antecipa uma fase de idade. Para mim é muito feio uma criança ou um adolescente vestido de adulto. É usar a inocência para vender uma marca.
 
BN – Em sua opinião, nessas áreas não há uma permissividade maior decorrente do glamour que cerca esses tipos de atividades?
 
EM – Com certeza. Mas nesse caso a atuação do Ministério do Trabalho é mais intensa basicamente no eixo Rio-São Paulo. Na Bahia, nós temos pouco disso.
 
BN – Segundo estudo divulgado pela OIT em 2010 a Bahia está em terceiro lugar nas taxas de trabalho infantil e ao contrário da maioria dos estados brasileiros a maior parte da mão de obra é agrícola e não urbana. A que fatores se devem estas estatísticas?
 
EM – Eu acho que com relação a questão da maior parte da mão de obrar ser agrícola eu posso dizer que sim e que não. Porque hoje as piores formas de trabalho e certos elementos que só tinham na capital, como as drogas, por exemplo, já chegaram às zonas mais agrícolas também.
 
BN – A senhora acredita que a cultura de país escravocrata dificulta a prevenção e o combate ao trabalho infantil no Brasil?
 
EM – Com certeza, se discriminam o adulto... a criança que vive na base do preconceito, do estigma em relação ao negro. Se você não consegue ver no adulto um igual, dar ao outro aquilo que gostaria que lhe fosse dado, como é que você vê essa infância essa juventude? Eu arrisco a dizer que 99.9% das pessoas que estão nas favelas são negras. Você chega lá no Sinaleira você vê um exército de negros, de mães negras, de pais negros, que passaram pela mesma coisa que os seus filhos estão experimentando.