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Marca Bahia Notícias Justiça

Entrevista

Gamil Föppel - Anteprojeto do Código Penal

Por Cláudia Cardozo / Clara Luz / José Marques

Gamil Föppel - Anteprojeto do Código Penal


Bahia Notícias: Quais são os problemas do atual Código Penal?
 
Gamil Föppel: Problemas existem diversos, não só no código, mas na legislação extravagante também. Porque a comissão [que elaborou o anteprojeto] não se destinava somente a rever o código, mas a rever todas as leis atuais. Acho que o maior problema é o anacronismo, de um código que foi pensado há 70 anos nos dias atuais. Então o código dispensa ainda uma atenção muito grande somente à pessoa, ao patrimônio. O código não se preocupa com riscos de natureza coletiva. Então, o código não tem, por exemplo, a tipificação do crime de terrorismo, dos crimes contra os direitos humanos e de manipulação ilegal de tecidos humanos. Eu acho que a grande preocupação que precisa haver em relação à reforma do código é dotá-lo de mecanismos e ferramentas para tutelar as atuais situações.
 
BN: A atualização do código, então, é o que necessita ser feito de maneira mais urgente?
 
GF: É. O código tem 72 anos. Mas não é só ele que trata de matéria penal. Existem outras leis esparsas, leis da década de noventa e deste ano, inclusive, que tratam de matéria penal. Essa é outra preocupação da comissão: de sistematizar o tratamento. De dar um tratamento coerente do que precisa realmente ser protegido.
 
BN: Como foi o trabalho da comissão no Congresso para elaborar esse novo código? Teve espaço para a opinião do cidadão? Houve audiências públicas?
 
GF: Houve algumas audiências públicas. Houve em Aracaju, no Mato Grosso, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Mas, além das audiências públicas, foi colocado um link no site do Senado para que as pessoas pudessem mandar as suas sugestões. Todas as sugestões mandadas foram rigorosamente analisadas. Além do que, toda e qualquer manifestação de grupo da sociedade civil organizado – religioso, social – foi analisada.
 
BN: E como foi o trabalho da comissão?

 
GF:
Fomos nomeados inicialmente 17 pessoas e duas pediram afastamento por questões pessoais. Ficamos, portanto, 15. Fomos divididos em três subgrupos com cinco cada um. Um para tratar da parte geral, uma para tratar dos crimes em espécie e uma para tratar da legislação extravagante. Havia reuniões temáticas dessas subcomissões e reuniões plenárias. Toda matéria aprovada foi deliberada nessa sessão plenária com os 15 membros presentes.

 
BN: Uma das críticas para o atual Código Penal é a disparidade de penas para diferentes crimes. Como o novo texto pode melhorar essa distorção?

 
GF: É uma outra das preocupações estruturantes. Preocupação com proporcionalidade. Só para dar um exemplo paradigmático: a falsificação de remédios tem pena de 10 a 15 anos e é rigorosamente a mesma pena para a falsificação de um cosmético. Então você falsifica um remédio para câncer e o tratamento para isso é a mesma que a falsificação de um sabonete. Aí alguém vai dizer: "mas falsificando um sabonete você pode gerar um problema para a saúde”, porque realmente pode gerar um problema para a pele, mas é muito menos factível que a falsificação de um cosmético gere um problema dessa ordem. Então, por conta disso nós fizemos uma proposta de cisão dos tipos. Ou seja: vai haver um crime de falsificação de remédios, com pena grave, e um outro para a falsificação de cosméticos e semelhantes. Então, hoje há uma desproporção entre o crime de roubo e o crime de homicídio. A pena mínima do roubo é muito parecida com a pena mínima do homicídio. Então foi sugerida uma redução da pena do crime de roubo. A preocupação é estabelecer quais são os bens que são mais importantes e tentar dotar de proporcionalidade. Então, no âmbito da administração pública, hoje, exigir uma vantagem indevida – compelir ao pagamento – é menos grave do que solicitar. Claro que as duas condutas são graves. Um servidor que solicita uma vantagem indevida tem um comportamento grave? Tem. Mas não é um comportamento mais grave do que o de quem exige no exercício das funções. E porque esses dois problemas foram criados? Porque desde que o código foi adotado em 1940, não se teve uma reforma sistemática de todo o código. Acontece uma situação de comoção, uma problemática pontual, aí faz-se uma reforma daquele artigo. Isso perde a harmonia, perde a estrutura em relação ao todo do Código Penal. Daí, porque houve a preocupação em reformular todo o código e todas as 117 leis  especiais que tratavam de matéria penal.
 
BN: Houve críticas também em relação ao aumento do controle do Estado sobre a vida da população. Juristas criticaram, por exemplo, que se fosse derrubada uma árvore que poderia cair na cabeça de uma criança a pessoa seria punida por crime ambiental. O senhor concorda com essas críticas?
 
GF: Olhe, houve uma redução significativa na quantidade de tipos penais. Hoje, o atual Código Penal tem 361 artigos. São 117 leis especiais. Seguramente,  nós temos mais de 2 mil artigos em matéria penal. A redação da comissão chegou a 543 artigos. É lógico que foram tratados condutas que tem importância hoje, condutas que a sociedade precisa ver protegidas hoje e que efetivamente não são. Hoje nós não temos tipificados, por exemplo - uma matéria que eu fui voto vencido na comissão -  mas que nós não temos tipificados a conduta de crime organizado. Nós não temos tipificado a conduta de milícias. Nós não temos tipificado o crime de terrorismo. As preocupações da sociedade com a segurança pública hoje, 2012, são diferentes da preocupação  da sociedade em 1940. Hoje não basta resguardar e tutelar a vida por meio do crime de homicídio. É necessário resguardar a vida das pessoas também pelo crime de terrorismo. Mas aí vão dizer: ‘o Brasil nunca teve tradição em ser vítima de terrorismo’. Mas se por acaso acontecer, nós não temos lei para tratar isso hoje. Eu discordo quando afirmam que houve um endurecimento do sistema punitivo. Muito pelo contrário.
 
BN: Alguns juristas dizem que esse código penal não trata apenas de você praticar algo mal, mas também quando você deixa de fazer o bem. Isso seria passível de punição?
 
GF: Isso não é só no nosso código. Há determinadas omissões que são penalmente relevantes. A omissão do socorro sempre foi crime. Há tantos outros crimes que são praticados diante da omissão, por exemplo, o servidor público ou o policial que presencia alguém praticando crime e nada faz. Isso não foi criado agora, isso já existia desde o código anterior. Sempre que existe um dever do sujeito agir, e o sujeito se omite, é obvio que pode ser tratado como crime diante da omissão. Acho que neste artigo que você citou houve uma repercussão, com uma crítica de que a comissão estava sendo politicamente correta. E o que seria ser o politicamente correto? Seria dotar a sociedade de mecanismo de controle e proteção, sem desprezar as garantias individuais, a garantia dos investigados. Aí, a autora parece que falava que não havia necessidade de incriminar a intimidação vexatória, que se usa a expressão inglesa Bulliyng. Existe a necessidade. Ela criticava, por exemplo, a perseguição opressiva, que é o crime de Stalking. Se hoje, uma pessoa com 17 anos for perseguida, assediada e constrangida por um ex-namorado, por exemplo, frequentemente, esse fato é atípico, você não tem como buscar proteção policial. Não é somente como dizem, de educação doméstica, até porque educação doméstica vem para evitar todos os crimes, como homicídio, furto, roubo. Quando a educação doméstica falha, e quando as outras esferas de controle falham, aí é interessante que a sistemática.
 
BN: Em relação ao Bullying, o quê o texto prevê exatamente sobre essa tipificação e como você pode provar que uma pessoa está sofrendo bullying?
 
GF: O crime não é o bullying, é intimidação vexatória. É constranger, perseguir, fazer uso de ameaça, e a prova pode ser feita por todos os meios permitidos. Por meio de prova testemunhal, por meio de filmagem,  por prova documental, como em todo e qualquer crime.
 
BN: E como ficam os pontos polêmicos como aborto, consumo de drogas e eutanásia?
 
GF: O aborto continua sendo crime, mas foram criadas as causas de justificação discriminante. O que é isso? Em determinadas circunstâncias, nós estamos sugerindo que o aborto está autorizado. O atual código só autoriza o aborto em duas circunstâncias: se houver estupro contra a mulher ou se houver risco para sua gestação. Nós agregamos outras hipóteses, como se houver feto anencefálico ou qualquer outro meio médico que demonstre a inviabilidade do feto – como o Supremo Tribunal Federal julgou recentemente. E até, que na comissão foi relativamente consensual, mas que fora gerou muita polêmica, em que há uma sugestão do abortamento até a 12ª semana de gestação, desde que haja laudos médicos ou psicológicos que aquela mulher não tem condições de exercer plenamente a maternidade. Isso é uma preocupação de segurança e de saúde. É lamentável quando as pessoas, as mulheres, querem praticar o abortamento, pratiquem o abortamento. A questão de saúde se agrava porque as mulheres não podem fazer isso em hospitais credenciados. As pessoas vêm com argumentos de ordem religiosa, e eu tenho a minha religião, mas nós não podemos trabalhar o direito penal a partir de fundamentos religiosos, de seus ideais religiosos. A preocupação é em solucionar conflitos e não criar outros tantos conflitos. É bem importante que as pessoas saibam que aborto continuará sendo tratado como crime, se o anteprojeto virar projeto, e o projeto for convertido em lei. Somente haverá um aumento nas causas de justificação. Em relação ao consumo de drogas, também não é tratado como crime o ato de consumir. Vai continuar sendo crime o tráfico de entorpecentes. O ato do consumo pode gerar outras sanções, como advertência. E a eutanásia é tratada como crime autônomo, com a pena abrandada em relação ao homicídio. Além disso,  foi prevista a hipótese de perdão judicial se as circunstâncias do fato demonstrarem que a pena é desnecessária, como alguém que agiu com sentimento piedoso em relação ao filho, a mãe, por exemplo. Foi criada a hipótese de dispensa de pena nessas circunstâncias. Há um tipo autônomo de eutanásia, com pena menor e a há a possibilidade do juiz aplicar o perdão judicial, a depender da circunstância.
 
BN: O projeto também prevê a criminalização da homofobia?
 
GF: O código, na verdade, prevê a inquilinação das discriminações de toda e qualquer espécie, como discriminação de origem, de cor, de raça e também de identidade e orientação sexual. Então não é um crime específico como homofobia. O crime é de discriminação e de intolerância que envolve todo e qualquer tipo de discriminação.
 
BN: Outra polêmica do texto é o endurecimento das punições contra ofensas ao direito autoral ao criar um tipo penal para o plágio. Como o texto pode proteger o direito autoral em uma era totalmente digital?
 
GF: Na verdade, isso não é uma inovação do código. O atual código já trata dos direitos autorais. Inclusive, a redação que é sugerida ela até protege uma pessoa que faça uma cópia, por exemplo, para uso pessoal. A preocupação que existiu aqui é com a violação do direito autoral com fim comercial. Mas isso eu volto a dizer: não é uma inovação do anteprojeto. O atual código já trata e protege os direitos autorais.

BN: A senadora Lídice da Mata sinalizou que boa parte dos artigos do anteprojeto do Código Penal podem cair. Existe a possibilidade dos juristas que criaram o anteprojeto realizarem alguma ação para impedir isso?
 
GF:
Veja bem, nós somos chamados para fazer um anteprojeto. Nós não somos uma instância revisora do que o Senado vai fazer.O Senado vai tomar isso como um estudo preparatório e é óbvio que cabe ao poder Legislativo escolher as condutas, acolher as sugestões e o que ele quer repassar. Nós não devemos entrar com qualquer tipo de medida judicial para obrigar com que eles façam ou deixem de fazer alguma coisa. É uma sugestão que foi pensado por 15 pessoas, com todas essas audiências, com todas sugestões, com toda fundamentação que é necessária, mas se, por exemplo, alguém quiser tirar uma tipificação, se o legislador entender por bem tirar a tipificação, nós não temos como fazer nada em relação a isso.
 
BN: Nem se articular para promover algum tipo de pressão junto a imprensa ou a entidades representativas?
 
GF: Nós podemos continuar manifestando as nossas opiniões por meio de artigo, por meio de redes sociais, fazendo contato com a sociedade civil, mas nós não temos uma ação direta, judicial, para poder fazer com que esse anteprojeto vire projeto e o projeto seja convertido em lei.

 
BN: Você considera que existe no anteprojeto um ponto chave que não deveria ou poderia cair e que, obviamente, pode cair no Senado?
 

GF: Há pontos que eu diria que são estruturantes. Há essa preocupação com os bens jurídicos coletivos por meio desses crimes que eu falei, terrorismo, crimes contra os direitos humanos... Eu não imagino, sinceramente, até porque o Brasil é signatário de tratados internacionais em que se obriga a reprimir esses crimes. Eu não imagino que simplesmente esses crimes sejam reprimidos do projeto. Lógico que uma ou outra adequação haverá. De toda matéria que foi discutida, nada interessou tanto a sociedade quanto o abortamento. Eu não tenho certeza se vão aceitar as sugestões que foram feitas. Mas eu diria que a preocupação maior são esses bens jurídicos novos e uma preocupação sistemática com o código, de dar um tratamento sistemático ao código. Preocupa-me, por exemplo, se sugerirem alterações de pena meio que ao sabor das vontades. Por exemplo, a pena de furto hoje é de um a quatro anos de prisão. Nós estamos sugerindo a redução da pena máxima do furto de quatro para três anos para ter uma proporcionalidade em relação ao roubo. Então, se alguém pegar a pena de três anos e passar para seis, vai ficar desproporcional para o roubo. Aí perde essa harmonia que foi algo tão perseguido com tanta preocupação pela gente.
 
BN: Se você levar em consideração a questão do aborto, a bancada evangélica do senado já desconsiderou essa proposição. Vocês levaram em consideração os próprios questionamentos dos senadores para tipificar esses crimes?
 
GF: Nós levamos em consideração todos os questionamentos dos senadores, mas também de toda a sociedade civil. Agora, em momento algum nós fizemos alguma coisa pensando naquilo que poderia ser aprovado ou que poderia ser reprovado. Nós fizemos aquilo que julgamos mais importante para a sociedade. Se os senadores vão encampar ou rechaçar este ou aquele outro ponto, a nós não compete dizer isso. Em nenhum momento alguém disse 'não vamos tratar o abortamento desta forma porque a bancada evangélica vai se posicionar contra'. Em nenhum momento se falou 'vamos tratar a matéria ambiental desse jeito que a bancada ruralista vai se posicionar contra', ou 'não vamos tratar da maioridade [penal] porque a bancada dos direitos humanos vai se posicionar deste ou daquele outro jeito', entendeu? A preocupação era fazer um diploma adequado para os dias atuais, de debater isso e fundamentar. Isso tem fundamentação, tem explicação e continuar a discussão com os órgãos legislativos para prestar os esclarecimentos necessários.