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Marca Bahia Notícias Justiça

Entrevista

Tiago Ayres - Mestre em Direito Público

Por Cláudia Cardozo

Tiago Ayres - Mestre em Direito Público
Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e especialista em Direito Eleitoral, Tiago Ayres, explica os assuntos mais em evidência nesse período pré-eleitoral, quando chovem denúncias de infidelidade partidária e duplicidade de filiação. "[...] é falar em fidelidade partidária que todo mundo é remetido a ideia ou necessidade do mandatário ou do filiado ser fiel ao partido político. Mas eu penso que o mais importante do que se cobrar a fidelidade partidária dos mandatários aos partidos políticos, é cobrar fidelidade dos partidos a si mesmos", defendeu. Durante essa entrevista à Coluna Justiça do Bahia Notícias Ayres torna claro para o leigo como interpretar uma série de leis relacionadas à eleição e explica o que é o Sistema ELO. Confira a entrevista exclusiva. 

Bahia Notícias: O que uma pessoa que quer sair candidata a um cargo político nas eleições precisa fazer? É possível que ela se candidate sendo filiada a dois partidos?
 
Tiago Ayres:
Dentro dessa abordagem quanto aos requisitos que devem ser preenchidos para que um candidato possa se lançar em uma eleição é necessário consultar a Constituição Federal. E no que diz respeito ao tema da duplicidade de filiação, isso fica muito evidente, porque a própria Constituição Federal estabelece que, para o cidadão gozar do seu direito de se apresentar como candidato, é necessário que ele esteja filiado um ano antes da eleição que ele deseja disputar e a um determinado partido. E quando a Justiça Eleitoral aponta a chamada "duplicidade" ou "pluralidade de filiação" está querendo dizer que o indivíduo está violando a ideia de fidelidade partidária. Porque quem está filiado a mais de um partido não preenche a um requisito constitucional de filiação a um único partido, a uma só legenda. A própria lei dos partidos políticos estabelece que na hipótese do cidadão estar filiado a mais de um partido, ambas filiações serão anuladas. Se o indivíduo pretende ser candidato, ele precisa preencher esse requisito. E o que tem acontecido hoje na Justiça Eleitoral? A Justiça Eleitoral se vale do Sistema ELO [sistema de emissão instantânea de títulos eleitorais, criado pelo TSE]. Os próprios partidos alimentam esse sistema com informações a respeito das filiações dos seus filiados. E quando a Justiça Eleitoral identifica mais de uma filiação, ela comunica ao juiz eleitoral, que anula as filiações. É claro que antes de anular é dado o direito de defesa ao filiado.
 
BN: Como acontece a dupla filiação partidária?
 
TA:
Existem algumas ações que tentam inviabilizar a candidatura de alguns políticos. Não é raro acontecer do indivíduo, identificar um adversário em potencial, lançar o nome desse cidadão no Sistema ELO. Porque não existe nenhuma exigência legal no sentido de que, o partido que lançar o nome de alguém como filiado a sua agremiação deva apresentar a prova da filiação. Todo partido tem acesso ao sistema Elo e basta que ele entre nesse sistema e diga: 'olha, fulano está filiado ao meu partido'. Não há uma exigência de prova dessa filiação. O correto seria - inclusive isso tem sido discutido no Tribunal Regional Eleitoral da Bahia [TRE-BA] – cobrar-se dos partidos o envio das correspondentes fichas de filiação. Ora, se ele está dizendo que eu estou filiado ao partido X, ele tem que provar por meio de uma ficha de inscrição, subscrita, no caso, por este indivíduo, junto à Justiça Eleitoral.
 
BN:
E isso pode ocorrer por vontade da própria pessoa? Por exemplo: estar filiada a um partido e não participar mais das atividades dele e se filiar a outra legenda e até exercer cargos de direção?
 
TA:
Veja bem: do ponto de vista jurídico, o desejo dele é pouco relevante. O que interessa é se ele deseja participar da legenda X, ele deve permanecer nesta legenda e apresentar a esta legenda a sua candidatura. Mas se não for o seu desejo, ele deve migrar. Agora, essa migração, para acontecer, deve ser feito em observância a alguns requisitos, dentre eles, a comunicação ao partido que ele está abandonando, bem como à Justiça Eleitoral. Ele não pode simplesmente mudar e não comunicar à Justiça, bem como ao partido que ele está deixando. E é isso que tem acontecido. Atualmente, existem diversos processos dessa natureza em discussão na Justiça Eleitoral. Inclusive, se nós formos analisar a doutrina eleitoral, vamos nos deparar sempre com a lição clássica que tais processos são de ordens meramente administrativas. Isso porque você se vale da informação do Sistema Elo e, identificado a duplicidade, basta ao juiz anular as diversas filiações. Porque às vezes, a promiscuidade é sem freios. Então o que acontece? Você tem esses processos em curso no TRE-BA em que o cidadão é apontado como filiado a mais de um partido. Mas é necessário se entender que embora a doutrina aponte que tais processos são de natureza predominantemente administrativa, os efeitos que tais processos geram na esfera patrimonial do cidadão são enormes, são danosos. O quê que acontece? Isso vai repercutir exatamente na cidadania, no seu direito de se colocar como candidato. Se a Justiça Eleitoral, de maneira equivocada, reconhece a duplicidade de filiação, vai restringir um direito fundamental de ser candidato - o chamado jus honorum - a elegibilidade. E o que tem acontecido? Eu, por exemplo, tenho atuado em alguns casos, em que demonstrei à Justiça Eleitoral, que foi acolhido por unanimidade, que na maioria das vezes, há manipulação por partes de legendas, no sentido de inviabilizar a candidatura de um determinado cidadão.
 
BN: Isso poderia ser uma espécie de perseguição política...
 

TA: É uma espécie de perseguição política, de modo que, o que se identifica nos casos concretos é, de um lado a informação do Sistema Elo, que alega que 'fulano está filiado a dois partidos', e a informação desse cidadão, no sentido de que não está filiado a esses dois partidos, mas somente a um. E como é que vai se resolver isso? Como superar esse conflito? Eu entendo que a fé pública, que evidentemente marca o Sistema Elo, não pode servir como um cinturão de isolamento, de modo que a Justiça Eleitoral fique impedida de corrigir equívocos que eventualmente existam nesse próprio sistema. Se o cidadão declara que está filiado ao partido X, somente cabe ao juiz, na verdade, na dúvida, mandar baixar o processo ao juízo de origem, e determinar que se ordene ao partido que afirma que esse cidadão está a ele filiado que comprove ao apresentar a ficha de filiação. O que não se pode é, na dúvida, inviabilizar o exercício de um direito fundamental, que é o direito de ser candidato.

 
BN: Na maioria dos casos é decretada a nulidade das duas filiações, não é?
 
TA:
O que se tem visto na verdade, é o estado da dúvida. O Sistema Elo diz: 'Tiago Ayres está filiado a dois partidos'. Eu digo: 'Eu só estou filiado ao partido X, portanto eu preencho o pré-requisito constitucional para ser candidato'. Como é que o juiz vai decidir isso? O juiz deve determinar que o partido apresente a ficha de filiação. Porque senão seria muito fácil. Imagina? O partido pode chegar e dizer assim: ‘olha, Cláudia está filiada a minha agremiação’. E isso seria suficiente. Ele tem que demonstrar a ficha de filiação.
 
BN: Mas na prática não é isso que os juízes têm feito?
 
TA: O TRE tem, agora, decidido nesse sentido. O TRE da Bahia tem dado um passo seguro nesse sentido. Inclusive, nos casos que atua, determinou a baixa dos altos para que o partido apresentasse a ficha de filiação. Eu digo sempre: ‘se no processo penal vale o princípio do "in dubio pró-réu", no processo eleitoral, deve prevalecer a máxima do "in dubio pró-eleitor". O direito constitucional de se colocar como candidato não pode ser relativizado por qualquer motivo. Há situações, inclusive, em que o próprio partido apresenta a duplicidade de filiação. O Sistema Elo acusa que eu estou filiado a partido X e Y e eu digo que estou filiado ao partido X, então ele obtém uma declaração do próprio partido Y, dizendo que lançou por equívoco o seu nome no rol de filiados. Ora, a essa declaração,em princípio, deve se reconhecer valor jurídico, porque eu não posso, ao mesmo tempo, reconhecer valor ao Sistema Elo e negar valor a uma declaração, argumento de que seria unilateral uma declaração obtida em cima da hora. De maneira nenhuma. O próprio Sistema Elo vive, se assegura das informações prestadas pelos próprios partidos políticos. A partir do momento que eu apresento essa declaração, e essa declaração não tem valor... Então, a ideia fundamental é essa, de que deve-se  prestigiar sempre o direito fundamental à elegibilidade.
 
BN: Qual a punição pode ser aplicada ao partido que comete a dupla filiação, caso se comprove que ele agiu de má fé?
 
TA: No caso de um partido que agiu desta forma, deve-se apurar e até tomar providências penais. Porque seria a hipótese até de se praticar fraude.
 
BN: Aqui na Bahia, tramitam cerca de 30 processos de dupla filiação. Essa ação é uma constante na política?
 
TA:
Nesse período de eleição é uma constante. Sempre há esse tipo de movimentação política. As lideranças ficam atentas àqueles que não preenchem os requisitos, porque querem inviabilizar a candidatura de seus adversários e vice-versa. Claro que os adversários, entre si, buscam restringir ao máximo, um número de possíveis candidatos, principalmente aqueles que têm força na circunscrição eleitoral.
 
BN: Por que no Brasil uma pessoa não pode sair candidata sem estar ligada a uma legenda?
 
TA: Isso é uma opção constitucional. Foi uma opção do nosso constituinte e não existe a possibilidade de se lançar candidato sem que esteja apresentado por um partido. Sobretudo dentro da lógica da fidelidade partidária, no sentido de que o mandato pertence ao partido e não ao candidato, não ao mandatário. Mais do que nunca, essa ideia foi reforçada e não há possibilidade alguma de um eleitor senão por meio de uma agremiação partidária.
 
BN: O que um político que não se enquadra no princípio da fidelidade partidária está susceptível?
 

TA: Eu gosto sempre de fazer uma provocação. Eu penso que é falar em fidelidade partidária que todo mundo é remetido a ideia ou necessidade do mandatário ou do filiado ser fiel ao partido político. Mas eu penso que o mais importante do que se cobrar a fidelidade partidária dos mandatários aos partidos políticos, é cobrar fidelidade dos partidos a si mesmos. É o que chamo de fidelidade de partido. O partido ser fiel a si mesmo. Porque é muito fácil você importar os institutos sem que haja adaptações a nossa realidade. É claro que o Brasil precisa e espera que haja partidos fortes, partidos que sejam fiéis a suas bandeiras, das suas convicções, e é evidente que também queremos que os cidadãos respeitem essas bandeiras partidárias. Agora, antes de se exigir essa fidelidade ao mandatário, o partido tem que ser o primeiro a dar exemplo e nós não vivemos uma realidade em que os partidos são fiéis a si mesmos. A todo o momento os partidos se traem. A resolução 22.610 estabelece que aquele que migrar de um partido para outro sem justa causa perderá o mandato. O partido de origem no qual se está filiado pode buscar na Justiça o mando de volta porque, em tese, ele abandonou. Mas é necessário que se justifique se está configurado ou não essa justa causa. Recentemente eu atuei em um caso em que um eleito mudou de um partido para outro exatamente porque o partido originário não cumpria com o seu próprio estatuto. Por exemplo: diversos estatutos dizem que os partidos devem realizar palestras, seminários, debates, discutir as ideias e as ideologias do partido e poucos partidos fazem isso. E nessa hipótese você identifica uma justa causa. Se um partido não cumpre seu próprio estatuto, eu posso mudar de estatuto. Eu posso sair desse partido e ir para outro. E isso, inclusive, foi reconhecido pela Justiça Eleitoral. A fidelidade partidária deve ser pensada em outra perspectiva, aliás, deve ser pensada nas duas perspectivas. Mas essa última, de fidelidade de partido, tem sido pouco explorada. O que é uma pena.


BN: O que tem sido feito para melhor o Sistema Elo, já que apresenta esses problemas?
 
TA:
O TRE recentemente, até por ocasião de uma sustentação oral que fiz, ele atinou para a necessidade de se elaborar uma espécie de projeto de resolução a ser encaminhado para a Presidência Regional Eleitoral, e essa presidência, encaminhar para a Presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para que confeccione uma resolução que trate do tema. Em que sentido? Exigindo dos partidos que apresentem as fichas de filiação e que não apenas lancem no sistema os nomes dos filiados. Mais do que a mera informação, essa informação deve vir devidamente respaldada pela ficha, que é o elemento mínimo probatório.
 
BN: Esse sistema unificado permite o cruzamento de dados e acesso a filiação de outros partidos? Ou é um sistema individual?
 
TA:
É um sistema ao qual tem acesso os partidos políticos, mas quem administra é a Justiça Eleitoral.
 
BN: Como deverão ser as eleições municipais de 2012 já com a validade da Lei da Ficha Limpa?
 
TA:
A Lei da Ficha Limpa, eu tenho dito sempre, é uma das grandes conquistas para consolidação do Estado Democrático de Direito. Eu costumo dizer que é uma revolução paradigmática. Porque se você parar para refletir, exigia-se a moralidade, a probidade, apenas no exercício do mandato. O cidadão lograva êxito nas urnas e depois exercia o cargo, e daí, cobrava-se dele lisura, retidão no exercício da atividade pública. Acontece que com essa lei, essa exigência, passa a existir desde a origem - é o que eu chamo de filtragem de origem - porque não basta você comprovar sua vida pregressa regular no exercício do mandato, mas desde o momento que você deseja ser candidato. Observe que o rigor da Lei da Ficha Limpa é maior. A Lei da Ficha limpa, Lei 135/2010, alterou a Lei 64/90 para ampliar o prazo de inelegibilidade em regra - em regra - de três para oito anos. Então veja que hoje a dificuldade é muito maior para que um cidadão possa se lançar candidato.
 
BN: Muitos candidatos podem ser barrados nesse pleito?
 
TA: Houve aquela polêmica em 2010 quanto à aplicação da lei e o TSE, lamentavelmente, entendeu que a Lei da Ficha Limpa deveria ser aplicada desde aquela data em que foi publicada - o que foi um grande equívoco, porque geraria uma enorme insegurança jurídica. A Constituição Federal é clara ao dizer que a lei que alterar o processo eleitoral tem vigência imediata, mas aplicação somente nas eleições subsequentes. Então, nós temos os famosos planos da validade e da eficácia. Por melhor que seja essa lei, o seu valor não autorizaria a relativização de um princípio tão caro que é o princípio da anualidade ou anterioridade eleitoral. Isso foi corrigido a tempo pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de que ela só deveria ter validade para as próximas eleições. Então, a Lei da Ficha Limpa irá incidir sobre aqueles que queiram se submeter à condenação por órgão colegiado ou até mesmo daqueles que uma sentença transitou em julgado ficará inelegível.