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Marca Bahia Notícias Justiça

Entrevista

Selma Santana - Promotora de Justiça Militar e Professora da UFBa

Por Victor Carvalho.

 

 

Coluna Justiça: Dra. Selma, qual a sua opinião a respeito da mudança de entendimento do STJ quanto a Lei Maria da Penha?
Selma Santana:
Essa mudança, do ponto de vista objetivo, ela retrata um dilema que a sociedade hoje vive entre a contraposição de um direito individual e um direito coletivo. Hoje quando você pensa na agressão que as mulheres sofrem, elas não constituem mais um grupo minoritário. Parece que nessa última estatística do IBGE, nós temos cidades brasileiras em que o contingente feminino é muito superior que o contingente masculino. Então, falarmos que o grupo feminino é minoritário, isso já é uma coisa ultrapassada. Até porque do ponto de vista da criminalidade, as estatísticas revelam que muitos mais homens são assassinados, muitos mais homens morrem em razão de acidente, como por exemplo, os de trânsito que as mulheres. Na verdade, o contingente feminino é muito maior.

CJ: Mas apesar do contingente ser maior, fisicamente, a maioria das mulheres sofrem certa desvantagem.
SS: Há todo um condicionamento cultural remanescente, claro que não é igual a 5, 10 anos atrás, que de alguma forma, ou por condicionamento cultural ou por dependência econômica que a mulher ainda tenha do marido, ou então dependência emocional, dependência psicológica, ela se coloca em uma situação de fragilidade. Sem falar a própria relação de fragilidade física que já tem em relação à mulher. Então, o que nós temos visto? Isso não acontece só aqui no Brasil não, em países de primeiro mundo nós também avistamos isso. Evidentemente que a gente percebe isso muito mais em países subdesenvolvidos dentro de um continente como o nosso.  As agressões são diárias. Dizem que, no Brasil, uma mulher é agredida por minuto, então todo dia nós vemos mulheres agredidas, mulheres mortas. E não podemos desconsiderar as cifras ocultas. Muitas não chegam a comunicar as agressões, justamente com vergonha, com medo de o companheiro a agredir de novo, com medo de ela perder aquela pessoa que a mantém. Então, é uma realidade. Aliás, o ser humano, nesse momento, ele está muito agressivo. Homem com homem. Homem com mulher. Mulher com mulher. E isso também se projeta dentro da casa.

CJ: Levando em consideração essa violência, o que leva a Lei Maria da Penha não ser inconstitucional frente à idéia de isonomia, igualdade, perpetrada na Constituição?
SS: É exatamente essa situação de vulnerabilidade. É o mesmo argumento que justifica a criação de cotas. Então, se eu analiso o princípio da igualdade, muitas vezes para você dar um tratamento igual, você tem que previamente dar um tratamento desigual. É por essa linha. Então esse argumento de que é uma lei inconstitucional, porque vai de encontro ao Princípio da Isonomia , isso é uma interpretação muito fechada do princípio da isonomia. Não é assim. Porque são casos raros e até pitorescos que você vê nos jornais de homem agredido por mulheres. É pitoresco até. Mas se você for ver o inverso, se você for ver as ocorrências registradas diariamente nas Delegacias das Mulheres, você encontra outra triste realidade.

CJ: Essa modificação de opinião do STJ poderia trazer uma sensação de impunidade para os agressores?
SS: Não de impunidade, porque de alguma forma eles teriam algum ônus. Mas, por exemplo, esse ônus não seria um ônus que os desestimulasse a praticar novas agressões. Mas a punição desestimula a agressão? Ela isoladamente não. Porque, na realidade, é todo um contexto cultural, todo um contexto histórico. Mas certamente um indivíduo que causa uma lesão corporal em uma mulher, que causa uma tortura psicológica nessa mulher, com agressões verbais e humilhações, se ele souber que ele vai pagar apenas cesta básica ou prestar serviço à comunidade, porque que não deixar isso acontecer?

 



 

 

CJ: No caso de você optar uma medida restritiva de liberdade, como a prisão, isso poderia ter a capacidade de deixá-lo mais agressivo, considerando as condições dos presídios atuais?
SS: A questão da crise no sistema penal é uma coisa muito maior. Evidentemente que você pensar em presídio, você pensar em um ambiente carcerário, isso também não seria a solução. Mas com o que você vai trabalhar? Você vai trabalhar com posturas ideais, você vai trabalhar em cima do caos penitenciário que a gente vive ou você vai trabalhar com uma necessidade urgente de desestimular a agressão à mulher? Então, na realidade, nós trabalhamos com fatores caóticos, não com fatores ideais. Até porque a solução, ela não é composta por um fator único. Nós vivemos em uma sociedade caótica, com fatores que se colidem, com fatores que são fatores corrompidos.

CJ: A senhora gostaria de acrescentar mais alguma coisa?
SS: Eu queria acrescentar que eu fico horrorizada com a postura da sociedade brasileira em ignorar, desprezar e afastar qualquer sentimento de empatia com a vítima do crime. Sobretudo quando essa vítima é mulher, quando essa vítima é homossexual. Então há um completo desprezo, há uma completa ignorância em relação a isso. Nós já assistimos, em vários países do mundo, momentos humanitários de resgate à vítima. Mas no Brasil a resistência é muito grande. Muitas vezes a pessoa diz assim: “a vítima é a pessoa que estava no lugar errado, na hora errada”. Quer dizer, ela é a culpada, porque está no lugar errado e na hora errada. E enquanto isso, os processos de vitimizações primária, secundária e terciária continuam a acontecer.

CJ: Qual seria o motivo para haver esse desprezo à vítima e uma proteção até excessiva quanto ao criminoso?
SS: Primeiro pelo encanto e pelo impacto que o crime causa à sociedade. As pessoas ficam, é até um sentimento mórbido, as pessoas ficam chocadas, curiosas com o crime e até com a figura do criminoso como um indivíduo que teve coragem, um indivíduo irreverente, um indivíduo que infringiu, teve coragem para infringir as normas da sociedade. E esse sentimento de empatia acontece justamente porque ninguém quer se ver na situação da vítima. Não digo que estamos na contramão dos movimentos mundiais, porque já temos alguns eventos pequenos. Já temos, por exemplo, a lei de juizado especial, a própria Lei Maria da Penha, uma modificação mínima que teve no Processo Penal, que permite que o juiz, na sentença condenatória, fixe uma indenização à vítima. Esses fatos são muito pequenos, quase insignificantes com relação a todo o movimento social e mundial no sentido de trazer a vítima para ser também protagonista do processo.