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Entrevista

'O Dumping Social acarreta na precarização da relação de trabalho', diz procuradora do MPT

Por Cláudia Cardozo / Rebeca Menezes

'O Dumping Social acarreta na precarização da relação de trabalho', diz procuradora do MPT
Fotos: Divulgação / MPT-BA
Autora da ação civil pública que resultou em uma condenação de R$ 4 milhões da Trifil em Itabuna por dumping social, prática caracterizada pela redução de custos da empresa por meio do corte ou eliminação de direitos trabalhistas, a procuradora do trabalho Cláudia Soares explicou ao Bahia Notícias quais os impactos que ela pode causar na sociedade. Tema relativamente novo na esfera jurídica, o dumping social ainda é pouco citado em processos. Mas, para Cláudia, esse cenário deve mudar. "Essas questões são novas e estão sendo debatidas pela jurisprudência, nos tribunais e no MP, mas essa condenação reafirma a reação do direito em face da gravidade da conduta", afirmou. Ela conta que, além de atingir o trabalhador, a prática afeta diretamente a sociedade, porque passa para o Estado a responsabilidade pelos efeitos da atividade ilícita. "Para o trabalhador, o dumping acarreta na precarização da relação de trabalho, porque faz essa diminuição do custo de produção por meio do descumprimento da legislação trabalhista. Então o trabalhador passa a não receber horas extras, não vê implementadas as medidas de segurança e saúde no trabalho, não deixa o ambiente de trabalho seguro. O segundo impacto é sentido pela sociedade, porque a empresa passa a responsabilidade do descumprimento da lei para o Estado. Por isso, Cláudia defende que a condenação por dumping é necessária."É importante que haja essa firme reação do direito e do judiciário em face dessa prática de dumping social", conclui.
Bahia Notícias: O dumping social ainda é um tema novo e há poucas decisões aqui no Brasil. O que é essa prática e como ela fica caracterizada nas relações de trabalho?
 
Cláudia Soares: O dumping social é um conceito apreendido do direito econômico e concorrencial, para qualificar uma concorrência imperfeita, desleal. Essa prática foi prevista inicialmente no acordo de tarifas e comércio, que classificava como dumping quando uma ou mais empresas se associavam para exportar mercadorias por um preço inferior ao seu custo de produção e, com isso, eliminar as empresas que produziam produtos similares, formando um monopólio. A partir deste conceito inicial, hoje nós temos o chamado dumping social, que além dessa vantagem que a empresa tentou obter no mercado, descumpre também a legislação trabalhista e os direitos sociais fundamentais.
 
BN: Quais os impactos que essa prática trazem para o trabalhador e para o mercado local?
 
CS: A finalidade da empresa é obter essa vantagem concorrencial, mas para o trabalhador acarreta precarização da relação de trabalho, porque faz essa diminuição do custo de produção por meio do descumprimento da legislação trabalhista. Então o trabalhador passa a não receber horas extras, não vê implementadas as medidas de segurança e saúde no trabalho, não deixa o ambiente de trabalho seguro... Então o funcionário sofre o primeiro impacto dessa prática. O segundo impacto é sentido pela sociedade, porque a empresa passa a responsabilidade do descumprimento da lei para o Estado. Por exemplo: uma empresa que descumpre as regras de segurança possui altos índices de acidente de trabalho e de adoecimento ocupacional, e o Estado que vai suportar esse ônus através do SUS – onde ele vai buscar auxílio médico – e do INSS – que vai pagar os benefícios previdenciários.
 
BN: A empresa que pratica o dumping, além de sofrer uma ação do Ministério Público do Trabalho, pode sofrer alguma outra penalidade?
 
CS: Na Justiça do Trabalho nós postulamos uma indenização - que nós entendemos como a causa jurídica de um dano moral coletivo - e uma indenização que vai ter um fim pedagógico e punitivo, para evitar que a empresa repita a prática ilícita e sinta a reação do direito em face do ilícito. Mas além da esfera trabalhista, essa prática pode ser denunciada no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que é quem deve também fiscalizar essa prática desleal e, em casos mais extremos, a Organização Mundial do Comércio.
 
BN: Aqui no Brasil é recorrente esse tipo de prática?
 
CS: O descumprimento da legislação trabalhista, infelizmente, é recorrente, mas o dumping é analisado dentro de um contexto: quando se observa que a empresa tem a intenção de internalizar o custo do descumprimento da lei. Então se dentro da investigação nós observamos que esse descumprimento reiterado é uma opção voluntária da empresa, nós classificamos como dumping social. É recorrente, sim, identificar nas investigações essa prática na empresa. O que é novidade é a forma de se postular a indenização. Antes, o Ministério Público a postulava como parte do dano moral coletivo. Hoje nós postulamos o dano moral coletivo como causado pelo dumping social. Então na Justiça do Trabalho mudou essa intervenção e esse rechaço à prática, já que passa a recolhecê-la como nociva ao trabalhador, à sociedade e ao Estado, e começa a condenar as empresas a pagar essa indenização complementar.
 
BN: As decisões sobre isso ainda são bem raras na Justiça. A senhora atuou recentemente no caso da Trifil, que foi condenada a pagar R$ 4 milhões pela prática de dumping social. Como foi o processo de convencimento da Justiça sobre os impactos que essa atividade gera na sociedade?
 
CS: Especificamente no caso da Itabuna Têxtil, conhecida como Trifil, o MP já acompanhava a empresa desde 2005, 2006, e verificou que ela descumpria de forma reiterada as normas de saúde e segurança no trabalho. A companhia foi fiscalizada diversas vezes, com a recorrência dos mesmos problemas, como declaração expressa da empresa de que prioriza a sua propriedade ao invés de implementar esses direitos trabalhistas. Essa situação foi ajuizada sob a forma de uma ação civil pública e o juiz reconheceu expressamente, na sentença, que esse descumprimento era, sim, prática de dumping social e por isso a condenou a pagar R$ 4 milhões. Esse valor foi destinado ao Fundo de Promoção do Trabalho Decente (Funtrad), que é um fundo criado por uma lei estadual que faz ações promocionais de políticas públicas junto à Agenda do Trabalho Decente.
 
BN: Você tem acompanhado as decisões desse tipo no Brasil? Há alguma tendência dos magristrados de sensibilização sobre o tema?
 
CS: Eu não sei precisar, exatamente, quantas determinações do tipo foram tomadas no país. Hoje, nas ações coletivas, eu sei que exite quase uma dezena de decisões nesse sentido, em ações civis postuladas pelo MP em face de grandes empresas. Mas além desse tipo de processo, o ordenamento jurídico hoje abre uma porta para que o juiz, mesmo de ofício, fixe uma indenização suplementar que pode ser qualificada como do dumping social nas ações individuais dos próprios trabalhadores, quando o juiz entender que a indenização postulada individualmente não repara completamente o dano e que é necessário condenar a empresa a uma indenização suplementar em face à gravidade e à extensão do dano. Essas questões são novas e que estão sendo debatidas pela jurisprudência, nos tribunais e no MP, mas essa condenação reafirma a reação do direito em face da gravidade da conduta.
 
BN: Você acredita que essa prática ocorre com mais frequência em algum recorte regional ou socioeconômico? O descumprimento da legislação trabalhista é maior em cidades do interior, onde às vezes o poder público está um pouco mais ausente?
 
CS: Eu não visualizo essa vinculação do dumping com o interior, ou em cidades pequenas. Essa prática é disseminada. Na verdade, as condenações nas ações coletivas do MPT foram em face de grandes empresas, como montadoras de veículos, com grande porte econômico. Essas companhias se estruturam dessa forma, para internalizar os valores em detrimento do cumprimento da legislação, não porque não têm condições de cumprir a lei, mas sim pelo que chamamos de "delinquência" ou "oportunismo patronal". Eles fazem isso com o fim de obter vantagens concorrenciais, mas não se refere à empresa que não conseguem arcar com os encargos sociais trabalhistas, muito pelo contrário.
 
BN: Quais são os direitos dos funcionários de empresas que mantêm essa prática? Eles têm que pleitear ações individuais ou já estão no escopo da ação civil pública?
 
CS: Em regra, as ações civis públicas postulam as obrigações de caráter coletivo ou difuso. Então, na maioria das vezes, o trabalhador não vai sentir um benefício econômico direto da ação proposta. O dumping social tem várias causas: descumprimento do horário de trabalho, não pagamento das horas extras, não implementação das medidas de segurança... E não necessariamente aquele funcionário vai ter uma compensação financeira. Isso será analisado caso a caso. Mas se ele se sentir lesado, pode ajuizar uma reclamação trabalhista individual, não pela prática de dumping, mas pela lesão a direito individual seu, que compõe seu patrimônio jurídico, como recepção de hora extra, descanso semanal que não foi usufruído, o pagamento de salários abaixo do piso...
BN: Como essa prática é identificada? O que leva o MP a instaurar um inquérito?
 
CS: O inquérito geralmente não é instaurado pela prática de dumping social. Ela é identificada no contexto da investigação. Então não difere muito de outras apurações do MP. Nós temos diversos deveres no curso da investigação: a ética, o cuidado com a informação, a busca pela verdade... Quando há o descumprimento reiterado de vários direitos sociais fundamentais, aí é identificado como dumping social.
 
BN: Foi isso que aconteceu no caso da Trifil?
 
CS: Exato. Houve descumprimento da legislação trabalhista, em especial à que trata de segurança e saúde no trabalho.
 
BN: O MP também pode firmar Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) nesses casos?
 
CS: Na verdade, o MP sempre busca a composição. Nós sabemos que a solução consensuada, negociada do conflito é sempre melhor do que uma decisão unilateral imposta por um terceiro que não tenha proximidade com o conflito como nós temos. O MPT tentou, de forma incessante, e chegou a firmar um TAC com a empresa em 2007 e mesmo com o desumprimento nos reunímos novamente e tentamos firmar novos acordos para cumprimento voluntário, mas ele foi negado. Por isso nós tivemos que ajuizar a ação.
 
BN: Quais são as medidas adotadas de forma preventiva para evitar esse tipo de prática? Você acredita que as multas e condenações servem como exemplo para outros casos?
 
CS: Nós temos instrumentos preventivos, mas eu não sei dizer sobre a eficácia dessas ações porque quando o dumping é idenficado, a fase de prevenção já foi superada. Então como a constatação só se dá no aprofundamento da investigação, é difícil se pensar nesse tipo de instrumento.
 
BN: Há possibilidade de recurso no caso da Trifil? Como os tribunais superiores têm encarado essa prática?
 
CS: Foi proferida a sentença em primeiro grau, condenando a Itabuna Têxtil ao cumprimento de 33 obrigações de fazer e não fazer, além da condenação do pagamento de R$ 4 milhões. Ainda cabe recurso. Inclusive a empresa já entrou com recurso ordinário e o MPt também, pedindo o aumento da condenação para R$ 15 milhões. Como é um tema novo, é difícil prever como o Tribunal vai enfrentar essa decisão. Mas creio eu, pelas decisões tomadas pelo TRT5 – um tribunal que tem enfrentado bem as novas questões postas em discussões – que ele vai confirmar a condenação e fixar sua jurisprudencia no sentido de vedar e rechaçar essa prática de dumping social.
 
BN: O dumping tem sido muito identificado na Bahia?
 
CS: Além dessa, eu tenho conhecimento de outra ação ajuizada pela Procuradoria Regional do Trabalho em Juazeiro, em face também de grandes empresas. É um tema novo, que surgiu poucas vezes nos tribunais. Mas eu acredito que o caso da Trifil representa um grande marco no estado em relação à implementação dos direitos sociais dos trabalhadores. É importante que haja essa firme reação do direito e do judiciário em face dessa prática de dumping social.