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Marca Bahia Notícias Justiça

Entrevista

'O governo brasileiro vendeu praticamente a alma', diz especialista sobre Lei Geral da Copa

Por Rebeca Menezes

'O governo brasileiro vendeu praticamente a alma', diz especialista sobre Lei Geral da Copa
Fotos: Claudia Cardozo
Alberto Camelier é advogado especializado em propriedade intelectual e sócio fundador do escritório Camelier Advogados. Graduado, mestre e doutor pela Universidade de São Paulo (USP), Camelier atua há cerca de 30 anos na área e conversou com o Bahia Notícias sobre as implicações da Lei Geral da Copa. Para ele, o texto cria um Estado de Exceção e uma jurisprudência perigosa. Além disso, beneficia a Fifa em detrimento de comerciantes e até mesmo da população brasileira. Por tudo isso, o advogado não tem dúvidas: Lei Geral da Copa é inconstitucional.
 
Bahia Notícias: A Lei Geral da Copa cria um Estado de Exceção no Brasil?
 
Alberto Camelier: Na minha opinião essa lei é inconstitucional. Porque no momento em que o Estado brasileiro, no afã de receber a Copa do Mundo, flexibilizou os princípios constitucionais. Isso causa um desequilíbrio e um Estado de Exceção. Quais foram os princípios constitucionais que feridos com a edição dessa lei? O princípio da isonomia, quando dá maiores benéficios para a Fifa em detrimento dos interesses brasileiros. Por exemplo: essa lei permite que a federação internacional registre como marcas de alto renome uma série de nomes que ela livremente elencou e entregou para o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) - órgão que registra marcas e patentes no Brasil - dizendo "essas são as marcas que eu desejo que sejam colocadas". No momento em que o país aceita isso e as registra rapidamente, como foi feito, fere o princípio da isonomia, porque todas as outras empresas brasileiras passam por um verdadeiro calvário para obter essa declaração, quando obtém. Também quebrou a isonomia em relação às taxas. A Fifa, pela LGC, foi liberada de pagar taxas para registrar. Esse tipo de registro custa em torno de R$ 43 mil, e foram registradas entre 40 e 60 marcas. Então deixou de recolher para o erário mais de R$ 2 milhões. Outra coisa: a organização tem a prerrogativa de obter da Justiça, com mais celeridade, medidas liminares de busca, apreensão e abstenção de uso de sinais de sentidos da Fifa. Então se alguém utilizar uma marca "Copa do Mundo", "Copa do Brasil 2014", "Campeonato Mundial de Futebol", ou o símbolo da taça em qualquer atividade comercial ou industrial, ela tem o direito de buscar, sem pagar taxas, o Judiciário brasileiro e obter uma decisão rapidamente, quando qualquer empresa brasileira leva anos para conseguir isso.
 
BN: Você disse que vê essa lei como inconstitucional, e já há uma movimentação do Ministério Público e da Ordem dos Advogados do Brasil na Bahia (OAB-BA) para pedir a inconstitucionalidade dela. Mas você não acha que está muito em cima para fazer esse pedido?
 
AC: Infelizmente, isso está correto. Já existe uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) proposta em Brasília, que tem que ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Mas a Copa do Mundo é daqui a alguns dias. Em dois meses já começou e terminou. Essa Adin não será julgada antes disso. Como não foi conferida nenhuma liminar em função dela, então as chances de ter eficácia são muito pequenas.
 
BN: Mas a Adin pode ser julgada depois que a copa passar?
 
AC: Pode.
 
BN: E se a lei for julgada inconstitucional, quais são as implicações?
 
AC: A inconstitucionalidade, quando declarada, retroage ao primeiro dia. Os efeitos da declaração de inconstitucionalidade vão desde a criação da lei. É como se ela não tivesse existido. Então, eventualmente, a Fifa terá que pagar as taxas e, se alguém foi processado sem o devido processo legal - já que a lei abrevia isso -, essas ações terão que ser rediscutidas desde o início.
 
BN: E se ela não for considerada inconstitucional, não pode criar uma jurisprudência perigosa para o país?
 
AC: O grande drama é o precedente que se abre. As pessoas falam "ah, mas a LGC só vai durar até 31 de dezembro de 2014". Tudo bem. Mas criou um precedente. Logo, outros organismos internacionais, como por exemplo o Comitê Olímpico Internacional (COI), também podem querer uma Lei Geral das Olimpíadas, para que ninguém use os símbolos olímpicos. Abre precedente e isso é perigoso.
 
BN: Uma discussão foi aberta após citarem a proibição das baianas de acarajé na proximidade do estádio.  Inclusive, ela foi fomentada por causa da exclusividade de cervejarias durante o carnaval aqui em Salvador. Mas não seria ilegal essa determinação em um espaço público? Não iria de encontro com o direito de escolha do consumidor?
 
AC: É legal essa zona de restrição? Aliás, esse foi o nome que eles deram para os locais onde só se pode comercializar os produtos que forem patrocinadores do evento. Você tem que fazer um estudo histórico da coisa. No passado, a zona de restrição era no próprio estádio. Então ali dentro você tinha isso, já que não fazia sentido alguém fazer uma propaganda de cachaça, e outra empresa se infiltrar e vender a cachaça concorrente lá dentro. Porque aquele que comprou a cota vai ter seu direito lesado. Mas a LGC ampliou essa zona a partir do estádio para até dois quilômetros do entorno. Só que essa determinação resulta em uma área enorme, e vai pegar trechos de ruas principais. Então, a rigor, a região não pode ter nenhum tipo de propaganda - outdoor, cartazes, balões - e os comerciantes que estão ali dentro, em um primeiro momento, também não poderiam participar. Mas aí houve uma briga muito grande e o Congresso, pelo menos nisso, admitiu que não é justo fechar estabelecimentos que já estavam lá. Na minha opinião, essa zona de exclusão é exagerada, é muito ampla. Poderiam ter pensado no estádio e seu entorno de alguns quarteirões. E pouco importa. Se você vai ver a propaganda, será em qualquer lugar da cidade. Evidentemente, que se dê primazia aos patrocinadores perto do estádio. Agora eu soube dos problemas que ocorreram aqui no carnaval. Só poder consumir um tipo de cerveja nos cerca de 15 quilômetros do circuito, para mim, já é abusivo.
 
 
BN: A sua especialidade é a propriedade intelectual. Mas você acompanhou outros aspectos debatidos, como a questão do terrorismo?
 
AC: A parte do terrorismo já é uma questão de segurança nacional. A Lei Geral da Copa trata de outras coisas. O terrorismo é o crime contra o Estado, então o Brasil já tem uma legislação própria para evitar isso através de setores de inteligência.
 
BN: Mas com as manifestações no ano passado, essa definição acabou "afunilada", de certa forma. Alguns defendiam, inclusive, que quem participasse das manifestações deveria ser considerado terrorista.
 
AC: A LGC não chega a entrar nesse detalhes. Mas ainda assim. A legislação - que parece que ainda será editada - que captula as pessoas mascaradas como criminosas é discutível. Porque o fato de se estar mascarado não significa que você depredará alguma coisa. A questão é: o anonimato dá cobertura pra quem tem essa intenção ou não? Então a sociedade brasileira vai ter que escolher se restringe a liberdade, diminui o poder do cidadão em prol da coletividade ou não.
 
BN: Uma das propostas da lei é que as pessoas possam entrar no país somente com o ingresso do jogo, o que dispensa a necessidade de visto. Isso não poderia trazer riscos para a segurança nacional?
 
AC: O Brasil tem acordos multilaterais e bilaterais de entrada no país. Por exemplo, para ir à Argentina, eu não preciso de visto. Mas pelo simples fato de me apresentar na fronteira e me identificar, o fiscal tem condições de puxar quem sou eu. Então o governo brasileiro, talvez para facilitar a entrada e saída, e a permanência precária aqui por alguns dias, tomou essa atitude. Mas isso não impede que se cheque na base de dados quem é aquela pessoa. Aliás, é salutar que todos que não tenham visto sejam avaliados com mais cuidado.
 
BN: Como você acredita que deve ser a postura do Judiciário e dos advogados durante o evento?
 
AC: Os advogados devem tomar cuidado com os usos de símbolos da Copa. Por exemplo, se uma farmácia ou supermercado fizer uma campanha do tipo "compre aqui e ganhe ingressos", estará errado. Porque a LGC proíbe expressamente venda ou doação de ingressos relacionados a algum estabelecimento comercial. Se não houver autorização da Fifa, a pessoa que faz isso comete um delito penal. Olha a gravidade. É crime. Então os comerciantes devem procurar seus advogados para saber o que pode e o que não pode. Uma dica é procurar o site da própria federação internacional, que disponibiliza uma aba com o que pode ou não. É como se fosse um manual. Então é bom que os advogados estejam cientes dessa lei para bem orientar seus clientes. Quanto ao poder Judiciário, ele está obrigado a dar celeridade às questões da Fifa. Eu acho isso muito ruim. Porque a legislação é feita para atender a população. E a Fifa é uma entidade privada internacional. Então pra mim, o governo brasileiro vendeu praticamente a alma para trazer a Copa. E no momento que vende a alma, assina qualquer coisa. Quando se vê as exigências da Fifa, você cai de costas. Tem coisas lá do arco da velha. E a LGC é um espelho dessas exigências. Então o INPI não receber as taxas é crime de lesão à pátria. Qualquer microempresário tem que pagar, mas a Fifa, que é multimilionária, não. Então não tem nem sentido. É claro que para atrair um evento desse porte, o Brasil deveria fazer algumas concessões. Mas o que foi feito foi um exagero.
 
BN: Não seria, então, necessária uma campanha de conscientização, principalmente para os pequenos comerciários, que muitas vezes não têm nem noção dessas implicações?
 
AC: Eu acho que é obrigação do governo brasileiro, já que assinou uma lei tão dura. Para pra pensar: a vida inteira tivemos campeonatos estaduais e nacionais aqui, e ninguém é obrigado a respeitar todas essas regras. Como na Copa, a lei é uma exceção, o governo deve fazer um alerta para que tenham cuidado para não ferirem esses direitos conferidos à Fifa, e elencá-los.
 
BN: Mas se há essa proibição de uso dos sentidos da Copa, não se pode criar a sensação que a cidade está alheia ao evento? Por exemplo, um shopping de grande porte, que não tiver autorização, não poderia citar o Mundial. Não criaria uma situação estranha?
 
AC: Se um grande shopping quiser cobrir o local de verde e amarelo, fazer alguma ação em relação ao evento, precisa de autorização da Fifa para não cumprir as penas da lei. Ficou uma coisa estranha mesmo, porque todo mundo vai ter que fazer o pedido, e isso não significa que ela concederá a permissão. Como é que há um evento desse porte na sua cidade, e você não pode se referir a ele? É um paradoxo. Então infelizmente a lei está posta, e a intenção é essa: evitar que as pessoas ganhem dinheiro em cima da Fifa. Tudo bem que uma pessoa não deve lucrar às custas do outro, mas como ficou, o texto é geral demais.
 
BN: Há mais alguma coisa que seja importante frisar quanto à LGC?
 
AC: Sim. Uma representante do Escritório Municipal da Copa do Mundo nos disse que a Prefeitura de Salvador tenta um acordo para autorizar a venda de acarajé e outras coisas da Bahia na zona de restrição dos estádios. Eu a alertei que eles devem ter cuidado, pois a lei não faz nenhuma distinção. É crime se alguém fizer. Então como a prefeitura não tem poder de revogar uma lei federal, isso deve ser bem costurado. Evidentemente que o crime só será processado se houver queixa, que parta da Fifa ou dos patrocinadores oficiais. Então eu reforço que precisa-se tomar cuidado para evitar a penalização desnecessária.