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Unificação das eleições: uma necessária defesa substancial da democracia

Por Hermes Hilarião

Unificação das eleições: uma necessária defesa substancial da democracia
Foto: Divulgação
Como consequência às recorrentes demonstrações da má gestão da coisa pública e, notadamente, aos escândalos de corrupção recentemente trazidos a público pelas autoridades fiscalizadoras e bastante difundidos pela mídia nacional, deflagrou-se considerável efervescência popular com o objetivo de demonstrar irresignação diante dos ocorridos.

Essa necessidade, sentida pelo povo, de significativa mudança na forma de atuação da classe política, conduziu à busca de uma solução capaz de fazer frente aos vícios de gestão trazidos à tona. Não foi por outra razão que surgiram os apelos pela chamada reforma política.

Trata-se, em verdade, de pedidos de reforma não só do sistema eleitoral, pelo qual o povo escolhe seus representantes, mas especialmente dos próprios políticos e de suas práticas, ou seja, tanto do ponto de vista procedimental quanto substancial.

É de se salientar que uma solução realmente eficaz passa pelo perene engajamento político da população, que possibilita melhores escolhas dos representantes, através do acompanhamento e fiscalização do processo político e dos políticos. Ou seja, mudança nas pessoas e nas condutas, não só no texto normativo. Impossível haver uma melhora substancial sem que o povo assuma sua responsabilidade no ambiente democrático, reivindicando e exercendo o poder que lhe é conferido pela lei e pela Constituição.

Indubitável que se tem percebido alguns pontos do sistema jurídico eleitoral merecedores de ajuste, a exemplo da possibilidade de reeleição dos chefes do Executivo nas três esferas da Federação, bem como o aprimoramento da transparência nos gastos eleitorais. Porém, é preciso ter cuidado para que em nome de um suposto aperfeiçoamento das normas eleitorais, não se alterem regras que instrumentalizam o exercício da soberania e permitem uma democracia cada vez mais participativa, ou seja, o embate entre o procedimento democrático e o valor democrático (substância).

Pois bem. O presente artigo, sem pretender esgotar o tema, tem por objetivo analisar uma das propostas de reforma política, qual seja a unificação das eleições à luz de valores substancialmente defendidos pela Carta Política de 1988.

Os defensores da coincidência das eleições sustentam, em síntese, quatro argumentos para que a proposta seja aprovada no Congresso Nacional, quais sejam: (i) com a unificação a Justiça Eleitoral reduziria seus gastos para organizar as eleições; (ii) haveria, de igual sorte, uma redução nos custos das campanhas para os partidos políticos e candidatos; (iii) as agremiações partidárias teriam mais facilidade para demonstrar seu programa e objetivos políticos, havendo, pois, coerência lógica no discurso apresentado aos eleitores, provocando o seu fortalecimento; (iv) o modelo atual, com eleições intercaladas a cada dois anos, prejudicaria as políticas públicas na esfera municipal, já que justo na metade dos mandatos municipais as eleições estaduais e nacional “paralisariam” a máquina pública.

São, inclusive, três as principais Propostas de Emenda à Constituição neste sentido, as PECs nº 32/2011, 71/2012 e 352/2013, de iniciativa, respectivamente, dos senadores Antônio Carlos Valadares (PSB-SE) e Romero Jucá (PMDB-RR), e do ex-deputado federal Cândido Vaccarezza (à época integrante do PT/SP), esta última, aliás, foi incluída na pauta da Sessão Deliberativa Extraordinária em 28/5/2015 às 12h, ou seja, na data de hoje a Câmara dos Deputados irá deliberar acerca da possibilidade ou não de se coincidir as eleições.

É preciso, portanto, que os congressistas ao debaterem essa proposta de emenda à Carta Política de 1988 não se olvidem infere-se que houve por parte do poder constituinte originário a precaução de ressaltar logo no preambulo da Carta Política de 1988 que o Brasil passara a ser um Estado Democrático de Direito.

Com efeito, todo o sistema político/eleitoral, com vistas a substancializar a égide da democracia, deve estabelecer regras que garantam uma máxima participação popular nas escolhas da República Federativa Brasileira, não sendo possível a adoção de medidas restritivas ou que distanciem o cidadão do debate político, poissomente aproximando o povo do centro de poder tornar-se-á possível diminuir o déficit democrático do país.

Desse modo, é forçoso convir que a coincidência das eleições, seja a cada quatro ou cinco anos, enfraquece os pilares democráticos, na medida em que haverá um espaço de tempo muito elástico entre uma eleição e outra. O povo ficará cada vez mais distante dos debates políticos e das escolhas do país, especialmente porque somente exercerá o seu direito constitucional ao voto a cada quatro ou cinco anos.

Por outro lado, impende destacar que a soberania popular, tal como expressa no art. 1º da Constituição Federal, não se resume à titularidade do poder, mais do que isso, impõe aos entes estatais, primeiro uma submissão à vontade popular e segundo que o povo efetivamente participe das decisões políticas.

Ocorre que, de forma velada, existem propostas de alteração da Constituição em curso no Congresso Nacional que diminuem o grau de legitimidade dos atos estatais, pois enfraquecem o diálogo entre o povo e os seus representantes. É o caso, como se disse, das Emendas Constitucionais que visam unificar as eleições municipais, estaduais e federais.

A unificação vai na contramão da história... O distanciamento do povo com os seus representantes legais, que hoje já é um problema crônico, tende a se agravar. Até porque, na ótica da antropologia, se pode dizer que “nessas condições, exacerba-se o distanciamento social entre as classes dominantes e as subordinadas, e entre estas e as oprimidas, agravando as oposições para acumular, debaixo da uniformidade étnico-cultural e da unidade nacional, tensões sociativas de caráter traumático”[1].

 E tudo isso coincide, também sob os olhares antropológicos, com a ausência de verdadeiro espirito democrático no Brasil. Aliás, “a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas”[2].

A superação do atual modelo de escolha, com o fim das eleições a cada dois anos, distancia a sociedade do campo decisório adequado, diminuindo, consequentemente, a abrangência da soberania popular. Com um só ferro passa despercebido pelas origens antropológicas do povo brasileiro, de sua democracia, e adota como modelo um sistema baseado na sociologia dos ausentes, como se possível, carente de uma perspectiva da teoria crítica, com a unificação solucionar um problema multicausal.

Por óbvio que formalmente o povo continuará exercendo sua soberania e escolhendo os seus representantes a cada quatro ou cinco anos. No entanto, a soberania não ocupa no cenário constitucional meramente uma posição procedimental para legitimar os desígnios estatais.
Defende-se, frise-se, no presente texto, uma visão substancial dos métodos democráticos e dos pilares constitucionais insculpidos na Carta Magna de 1988. Assim, a adoção de um modelo substancial constitucional exige uma mudança paradigmática da forma como se interpreta e aplica a Constituição.

Ressalte-se que não se está a negar a importância do procedimentalismo, ao revés, deve haver um acoplamento entre os dois modelos (procedimental e substancial). Vale dizer, é salutar e imprescindível que do ponto de vista procedimental o constituinte tenha consagrado na Carta de 1988 que todo o poder emana do povo e que o Brasil constitui uma República Federativa e Democrática de Direito, porém, de igual forma, é indispensável que as demais normas do sistema jurídico promovam a concretização desses axiomas, não apenas pela sua supremacia (art. 60, CF), mas também pelo fortalecimento do tão sonhado Estado Democrático.

Mas não é apenas esse valor constitucional que está em risco.  

Tal medida põe em risco o republicanismo, no seu aspecto substancial, pois, a despeito de prevê eleições periódicas, haverá um distanciamento entre o povo e os seus representantes, já que estes só serão reavaliados apenas em quatro ou cinco anos. A realização de eleições a cada dois anos, frise-se, permite que o cidadão faça um juízo crítico a respeito da sociedade em que vive e promova as mudanças que entender necessárias. Até porque, os mecanismos republicanos devem proporcionar uma máxima participação popular e não sua redução, como pretende a proposta em debate.

Além disso, tem-se que a coincidência das eleições constitui, em verdade, uma violação ao sistema federativo previsto na Carta de 1988, uma vez que atinge diretamente a autonomia política dos Municípios.

Ora, com a coincidência dos pleitos eleitorais, haverá uma sobreposição das discussões nacionais e regionais em relação aos debates que interessam à comunidade municipal, assim, a eleição municipal perderá sua autonomia, pois ficará atrelada a conjuntura política Estadual e Federal.

Vale ressaltar, que no período eleitoral a população é convocada para debater temas de interesse da circunscrição do pleito, com a finalidade de escolher as melhores propostas. Em contrapartida, a unificação das eleições enfraquece esse debate político por desviar a atenção do eleitor sobre os assuntos municipais, uma vez que as questões regionais e nacionais gozam, por natureza, de maior visibilidade, inclusive nos meios de comunicação.

Não obstante, com intuito de ampliar o debate, mesmo considerando que a unificação das eleições é uma medida antidemocrática e inconstitucional, impende expor as fragilidades dos fundamentos que a sustenta, com escopo de demonstrar os poucos avanços ou quase nenhum que essa medida trará para o sistema eleitoral.

Sabe-se que, em período eleitoral, a Justiça Eleitoral é encarregada não apenas de prestar tutela jurisdicional no que toca a matéria eleitoral, mas possui também o poder-dever de organizar, operacionalizar e fiscalizar o pleito.

Contudo, o imenso aparato estatal destinado a conferir legitimidade e lisura às eleições ainda é flagrantemente insuficiente para tanto. É patente a permanente necessidade de aumentar a estrutura da Justiça Eleitoral, até porque, para que se tenha ideia, esta possui o dever constitucional de conduzir com eficácia 5.570 eleições municipais (de Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores), 26 eleições estaduais (de Governador, Senadores, Deputados Federais e Deputados Estaduais), uma eleição distrital e a eleição nacional (de Presidente da República).

Pergunta-se, neste contexto, o que ocorreria com a coincidência das eleições? É óbvio: um enorme aumento do trabalho a cargo do Estado, ao menos nos anos de eleição. Assim, se já é complexo atender a seus desígnios institucionais, respondendo às demandas judiciais e administrativas para execução das eleições, não restam dúvidas que a Justiça Eleitoral terá dificuldades para satisfazer a demanda que só tende a aumentar, majorando, portanto, os custos estatais.  

Outro argumento utilizado em defesa da unificação das eleições, é que com a referida proposta os partidos políticos e os candidatos diminuiriam os custos de suas campanhas eleitorais. Isso porque, as campanhas direcionadas à municipalidade, estado e união seriam veiculadas conjuntamente, havendo, em alguma medida, rateio de gastos.

O argumento da redução dos gastos eleitorais não deve prevalecer, pois os preços dos produtos utilizados nas campanhas são regulados pelo mercado e regidos pela regra da oferta e da procura, sendo assim, ao aumentar a procura, logicamente, vão se elevar também os preços das mercadorias. Há uma tendência natural de mercado que esses produtos e serviços tenham seus preços elevados, pelo aumento da demanda, encarecendo, portanto, as campanhas políticas.

Observe, ainda, que há uma relação simbiótica entre o povo e os partidos políticos, pois, se de um lado, àqueles são detentores da soberania popular, do outro, as agremiações representam a concepção ideológica de um determinado grupo da sociedade civil. Ou seja, os partidos políticos constituem não apenas um mecanismo de acesso ao poder, mas, de igual sorte, um dos campos adequados para que a comunidade discuta os temas de relevância para a sociedade em que vivem.

Nessa perspectiva, os prejuízos democráticos com a unificação das eleições não alcançam apenas o povo, mas igualmente as agremiações partidárias. As eleições a cada dois anos têm o papel de oxigenar as prioridades sociais, na medida em que permitem a população e os partidos a discutirem assuntos relacionados à saúde, educação, economia, emprego e renda. Temas que, infelizmente, ganham uma maior visibilidade e relevância com a proximidade das eleições.

Tabuladas tais considerações, por coerência ideológica e metodológica, entende-se que a proposta de coincidir as eleições afronta a soberania popular, na medida em que a enfraquece e diminui o seu alcance, afastando, consequentemente, a sociedade do seio politico e institucional. 
 

*Hermes Hilarião é Advogado Eleitoralista, Subprocurador-Geral do Município de Alagoinhas/Ba, Especialista em Direito Eleitoral (FUNDACEM – Unibahia), Especializando em Direito Público (Faculdade Baiana de Direito), Diretor de Relacionamento com o Interior do Conselho Consultivo de Jovens Advogados da OAB/BA e Professor de Direito Eleitoral (Escola Superior de Advocacia – ESA).

 
 



[1]
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p 23.
[2]HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 18.