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O ócio e o negócio no Direito: uma breve nota musical

Por João Paulo Lordelo

O ócio e o negócio no Direito: uma breve nota musical

Conta-se por aí que a filosofia ocidental teria nascido na Grécia antiga por um motivo bem peculiar: o ócio. Essa palavrinha (“ócio”) carrega um aspecto tão negativo quanto uma outra bem próxima: “inútil”. Pois penso que são dois atributos que fazem falta aos profissionais do Direito (juristas?) de hoje e podem, inclusive, estimular os seus opostos: o negócio e a utilidade.

Como com baiano, tenho um apetite grande pela música e me orgulho bastante das contribuições da Bahia para a musicalidade brasileira. Mas estou atento: não serão poucos os leitores a torcer a boca ao ler a frase que acabo de escrever, sabedores do aparente declínio da qualidade da música popular produzida na Bahia e no Brasil. 

Afinal, o que terá acontecido com a nossa música?

Nasci no ano de 1986 e tenho perfeita lembrança das músicas (sobretudo carnavalescas) das décadas de 80 e 90. Eram fantásticas. Olodum, Araketu, Banda Mel, Caetano, Gil, Banda Eva, Luiz Caldas, Reflexos, Acordes Verdes... Sabemos de cor os “hinos” do passado e até hoje eles são rememorados – sobretudo no verão. E assim sempre serão. Músicas como “Meia-lua inteira”, “Margarida Perfumada” e “Prefixo de Verão” são impossíveis de serem esquecidas e certamente se perpetuarão até o fim da vida na terra – o choque entre a Via Láctea e a Galáxia de Andrômeda, já anunciado pelo chineses no ano passado. 

Quando chegarão os Novos Novos Baianos?

Essas poucas palavras podem gerar a impressão de um saudosismo irracional, ao estilo Meia-noite em Paris, de Woody Allen. Posso estar enganado, mas, no momento, penso que o mesmo mal sofrido pela música carnavalesca baiana chegou ao Direito: a transformação do ócio (em latim, “otium”) em seu exato oposto: “negotium”; em português, negócio. Em rara entrevista, Jimmy Page, um dos guitarristas mais consagrados da história, registrou algo muito interessante: na música, a criatividade vem sob forma de fagulhas. Tais fagulhas são perdidas num ambiente de “linha de montagem fordista”. É preciso rejeitar o negócio para que a criatividade se aflore, seja na música, seja fora dela. Talvez por isso, os Los Hermanos tenham optado por arranjar e gravar o fantástico álbum Ventura em um sítio isolado, no lugar de um estúdio comum.

A ócio não significa - nesse sentido da filosofia grega à musicalidade baiana – fazer nada. Ao indivíduo que, injustificadamente, não faz nada, há uma classificação distinta: sem-vergonha (para ser eufemístico). Dedicar-se, ainda que momentaneamente, ao ócio, é voltar-se à fagulha da criatividade, é esvaziar a mente dos afazeres e compromissos repetitivos e explorar algo fora da zona de conforto. É estudar despretensiosamente, ler filosofia e teorias de base, valorizar a pergunta antes da resposta, abrir-se ao conhecimento (a “abertura cognitiva” de Luhmann), à alteridade e à imaginação sem uma utilidade imediata. Perceba: quando uma coisa é útil, isso significa que o seu valor está fora dela. Clóvis de Barros Filho anuncia isso muito bem: estudo para passar em concurso público; passo em concurso para poder trabalhar; trabalho para poder ganhar dinheiro. Ora, nessa lógica, o valor do estudo está no concurso público, o valor do concurso está no trabalho, o valor do trabalho está no dinheiro. Nada do que foi citado vale por si mesmo. Curiosamente, o inverso ocorre com o que há de mais valioso: a felicidade. A felicidade não existe para outra coisa (você é feliz para que?). Ela é inútil, portanto. Maravilhosamente inútil.

O ensino jurídico parece seguir uma linha muito diversa daquela de antigamente. Na graduação, estuda-se para passar no exame da Ordem. Decoram-se precedentes e leis. Livros de autores consagrados não vendem mais como antes e, logo, não despertam o interesse editorial. Cada vez mais, os livros duram menos. A doutrina parece não importar - “todo mundo virou doutrinador”, dizem. Pontes de Miranda, Orlando Gomes, Caio Mario, Machado Neto, Barbosa Moreira, Calmon de Passos e até José Afonso da Silva não são mais lidos pela grande maioria dos graduandos. E mesmo os novos gigantes (Daniel Sarmento, Marinoni, Fredie Didier) aos poucos são substituídos, na graduação, por cadernos e “esquemas mentais” (está aí uma expressão mui estranha para mim).

O fetiche por precedentes (muitas vezes isolados) também tomou conta do ensino. Em uma semana, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) podem mudar radicalmente seu entendimento a respeito de determinado tema, sem qualquer compromisso. E toda a cadeia de profissionais e estudantes que lhe segue abaixo se reorganiza, até a semana posterior, quando tudo pode mudar de novo. E muda o tempo todo. O pior: essas mudanças são exaustivamente cobradas em provas de concursos públicos, às vezes por meio de precedentes isolados. É esse conhecimento que se espera de um jurista? 

Certa vez, numa audiência criminal, recebi uma excelente lição de um juiz. Ele havia rejeitado a denúncia que um outro membro do Ministério Público havia promovido contra alguém, pela prática de um crime contra a Administração Pública. O argumento da rejeição: princípio da insignificância. Quando o juiz me comentou isso, retruquei imediatamente: “mas o STJ não aceita insignificância em tais crimes”. Ele então: “perceba, se meu filho chegar aqui no meu gabinete e, com meu consentimento, levar uma folha de papel da impressora da Justiça para desenhar em casa, há algum crime contra a Administração? Ou isso é insignificante?”. Por trás da provocação, havia uma ideia muito clara: repetir precedentes (que mudam a todo instante!), sem qualquer reflexão, é um trabalho de quem não quer pensar. Pensar dar trabalho, exige tudo aquilo que falamos acima.

Mas há esperanças. Tanto na música como no Direito, há aqueles que reagem e fazem a diferença. Para encontrá-los, basta que sejamos, ao menos, ouvintes curiosos, à procura de uma melodia encantadora e forte o suficiente para arrancar de nós os merecidos aplausos.
 

João Paulo Lordelo
Procurador da República na Bahia
Ex-Defensor Público Federal
Mestre em Direito pela UFBA
Professor Universitário