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Harmonia, caos e o Direito

Por João Paulo Lordelo

Harmonia, caos e o Direito
Em meados de agosto de 2014, ela resolveu marcar de se encontrar com uma antiga amiga, em um bar que pouco frequentava em Brasília. Já ele estaria no Distrito Federal por apenas quinze dias, para participar de um curso de iniciação na carreira. Era uma sexta-feira. Ele estava cansado e não pretendia sair após o curso. Ela estava igualmente cansada, mas havia marcado com a amiga de encontrá-la no bar. Ela foi. Ele também, motivado por alguns colegas, que ligaram, avisando que já se encontravam lá. Ele chegou atrasado, sentando na penúltima cadeira, restando a última desocupada. Ela chegou depois dele, junto com a amiga. Faltava (a ela) uma cadeira. De todos os lugares por onde seus olhos passaram, apenas em um havia uma cadeira vazia: ao lado dele. Ela então caminhou até o local, cutucou-lhe e disse: “por favor, essa cadeira está ocupada?”. Ele: “não”. Ela então puxou a cadeira e sentou-se na mesa exatamente ao lado dele. Um amigo dele, sentado à sua frente, perguntou-lhe: “não falar mais nada?”. E emendou à amiga dela: “perdoe a falta de educação de meu amigo, mas vocês gostariam de sentar conosco?”. Ele, então, dirigiu-se a ela: “verdade, quanta grosseria de minha parte! Por favor, sentem-se aqui conosco”. Hoje, passados alguns meses, ele e ela estão juntos.
           
O que nos revela a história narrada? Para ela, o desenrolar dos fatos revela como as coisas na vida são harmônicas: como todas as circunstâncias se sucederam de maneira impecável para que hoje estejam juntos. Para ele, todo o acontecido revela o lado caótico (não-harmônico) da vida: se qualquer causa tivesse sido alterada, ele não conheceria ela - se ele tivesse desistido, se ela tivesse chegado mais cedo, se o amigo dele não tivesse comentado nada... O resultado seria bem diferente. Para ele, a causalidade e a casualidade. Para ela, a harmonia.

Razão e caos, harmonia e desarmonia são faces de uma mesma moeda. Se podemos constatar a beleza e a harmonia do ciclo das águas, também é possível conhecer o lado caótico das tempestades. Se o sistema solar parece um grande átomo – cujo núcleo é o sol -, o choque entre a galáxia de Andrômeda e a Via Láctea, em bilhões de anos – algo já calculado pelos chineses -, é o apocalipse anunciado: o caos.



No Direito, que, obviamente, também é um dado da vida, o mesmo acontece. Na doutrina em geral, o Direito (na forma – ordenamento jurídico - ou no conteúdo) é concebido como algo coerente e, portanto, harmônico, fora de todo e qualquer caos. O questionamento que faço é: essa pretensão é útil/benéfica/verdadeira?
 
No Direito Constitucional, a grande maioria dos autores segue uma linha mais parecida com a dela – de harmonia e equilíbrio – e não a dele – do caos. Curiosamente, o ato de enxergar na vida algo que deve ser, acima de tudo, harmônico e equilibrado, esquecendo-se do seu caráter (também) essencialmente caótico, conduz a um caminho marcado justamente pela desarmonia. É o que ocorre com os direitos fundamentais.

Vejamos de perto a disciplina do direito à saúde no Brasil. A Constituição de 1988 delineia o chamado Sistema Único de Saúde (SUS), dispondo que a saúde é um direito fundamental, a cargo da União dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, devido a qualquer pessoa, independentemente de sua renda. Com base nisso, de acordo com o modelo constitucional, qualquer pessoa – pobre ou rico - tem direito a qualquer medicamento, transplante, exame ou tratamento. Ora, em qualquer país do mundo – até mesmo nos “inigualáveis” Canadá ou Noruega – esse modelo é impossível de ser concretizado. Isso vale não apenas para a saúde, mas também para a previdência, a assistência e diversos outros direitos fundamentais.A título de exemplo, seja aqui ou na França, quando uma regra da previdência é alterada para racionalizar os benefícios, a insatisfação popular é absoluta.
 
Os direitos foram longe demais?

Essa é a pergunta formulada por Stephen Holmes e CassSunstein, na obra TheCostofRights: whylibertydependson taxes (em português: O Custo dos Direitos: o porquêde a liberdade depender da tributação).

Penso que sim.

Holmes e Sustein vão além: para eles, a “irresponsabilidade” do  governo em superproteger os direitos conduz a uma negligência da população em relação a seus deveres/obrigações.Será verdade? Por que isso acontece?
 
A resposta parece ser relativamente simples. Se perguntarmos a qualquer brasileiro se ele acha correto que o direito à saúde seja universal, gratuito e amplíssimo – do jeito como previsto na Constituição – certamente teremos como resposta algo como: “claro” ou “lógico”, em tom de exclamação. E o legislador não é muito diferente de nós: ele também acredita que uma sociedade sem essa forma de saúde pública é marcada pela desarmonia, uma sociedade demasiadamente caótica. Não nos parece concebível, em uma primeira vista, imaginar um país em que uma pessoa enferma não tenha direito – gratuito – a um medicamento ou tratamento que possa salvar sua vida. Pensar diferentemente disso é demasiadamente caótico, desarmônico. A humanidade se imagina, sob o ponto de vista ideal, harmônica e coesa.
 
O resultado dessa pretensa harmonia é o outro lado da mesma moeda: o caos. Como o Estado (num sentido amplo) não possui recursos para custear as demandas relativas à saúde de todos, muitos optam por ajuizar ações perante o Poder Judiciário, para que um Juiz force o Estado a fornecer o medicamento/tratamento. E o Juiz, assim como o legislador, pensa igual a nós: entende que a vida deve ser harmônica, e não caótica. Como resultado, quase todas as demandas que envolvem medicamentos têm pedidos julgadosprocedentes, forçando-se o Estado a cumprir todo tipo de pretensão no âmbito da saúde. É o caos: uma única liminar em uma ação individual é capaz de comprometer toda uma campanha de vacinação de uma cidade. Não são poucos os pacientes que custam milhões por ano ao Estado, em razão de medidas liminares. Não são poucos os que, literalmente, furam a fila de transplantes, exames e tratamentos, em razão de liminares. Imagine, por exemplo, que seu avô esteja em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) lotada de um hospital e tenha que ser retirado, em razão de uma vaga obtida por outra pessoa, através de uma medida liminar deferida na Justiça. É o caos. Imagine que seu filho precise de um transplante de córneas e, em razão de uma liminar obtida por um terceiro, seja preterido na fila. Caos.
 
Todo direito tem um custo. Mesmo os direitos civis e políticos – chamados de direitos “negativos” – custam muito ao Estado. Nenhum direito é exclusivamente negativo. O direito à propriedade exige aestruturação da Polícia, bem como céleres procedimentos judiciais para julgamento das ações possessórias/petitórias. Isso custa muito caro. O direito ao voto exige a aquisição e manutenção de urnas eletrônicas, agentes públicos e toda uma Justiça dedicada a isso: a Justiça Eleitoral. Demanda também a estruturação de um órgão de fiscalização: o Ministério Público Eleitoral, cujas funções são exercidas por membros do Ministério Público Estadual e do Ministério Público Federal. É tudo muito caro e, por óbvio, a contanunca vai fechar. Nunca haverá um sistema de saúde gratuito, integral e de qualidade para todos no Brasil, pelo simples fato de isso ser materialmente impossível. Aliás, até mesmo nos Estados Unidos, o país mais rico do mundo e com os melhores índices de desenvolvimento humano (IDH) o sistema de saúde enfrenta sérios problemas.
 
A grande lição que podemos tirar disso tudo é a seguinte: a pretensão de alcançar, a qualquer custo, a harmonia, pode nos conduzir a um ambiente bastante caótico. No Direito, as promessas constitucionais economicamente impossíveis – e, portanto, descumpridas -, em detrimento da racionalização e estabelecimento de prioridades fiscalizáveis e economicamente aferíveis, fazem nascer, em cada um de nós, um desleixo em relação aos nossos deveres (como na famosa “teoria das janelas quebradas”). A busca pela harmonia leva ao caos.
 
O caminho ideal parece ser o sentido oposto: devemos, antes, reconhecer o caos como algo inerente à vida humana para vivermos da forma mais harmônica possível. Nem ele, nem ela. Eles. Nós.


João Paulo Lordelo
Procurador da República
Ex-Defensor Público Federal
Mestre em Direito (UFBA)
Professor Universitário