Usamos cookies para personalizar e melhorar sua experiência em nosso site e aprimorar a oferta de anúncios para você. Visite nossa Política de Cookies para saber mais. Ao clicar em "aceitar" você concorda com o uso que fazemos dos cookies

Marca Bahia Notícias Justiça
Você está em:
/
/

Artigo

Racismo x injúria racial: distinções necessárias para o ‘caso Aranha’

Por Ilana Martins e Brenno Cavalcant

Racismo x injúria racial: distinções necessárias para o ‘caso Aranha’
Com os novos acontecimentos – denunciando e trazendo à tona velhos e repugnantes hábitos - que estamparam as primeiras páginas dos noticiários dos últimos dias do nosso país (ofensas ao goleiro Aranha, dos Santos Futebol Clube, bem como o episódio de foto publicada por casal de Muriaé/MG com comentários ultrajantes em página no Facebook), somados ao assassinato de jovem negro na cidade de Ferguson, estado de Missouri, nos Estados Unidos da América, retomam-se os velhos (e põe velhos nisso) debates sobre a odiosa discriminação racial que marca a Humanidade. Sim, Humanidade, afinal não é só aqui, em terraebrasilis,que temos estes tristes episódios.

Como a pretensão aqui não é discorrer sobre os aspectos sociais, históricos, patológicos e afins que envolvem o tema, restrinjamo-nos ao enfoque legal, mais especificamente, para evitar uma confusão que, comumente se faz, entre o racismo e a injúria racial. Isso porque, em que pese ambos bebam da mesma fonte, guardam traços distintivos altamente relevantes entre si. Senão, vejam-se.
Inicialmente, cumpre salientar que o termo “racismo”[1], no sentido  veiculado de forma coloquial, pode indicar um sem-número de crimes previstos no nosso ordenamento jurídico, pois advém da motivação do indivíduo que o leva à prática delitiva. Então, este “racismo lato sensu”abrange desde os homicídios praticados contra sujeitos discriminados, até os crimes menos ofensivos. Aliás, a bem da verdade, este termo engloba até mesmo os atos indelicados do dia-a-dia, que não têm a relevância necessária para justificar a intervenção penal, mas que preservam o mesmo gene tratado aqui, como piadas e brincadeiras de modo geral. Deste modo, é de se dizer quea utilização coloquial do termo gera confusões acerca do real enquadramento penal das condutas narradas, de modo que é preciso tecer algumas considerações sobre o tema.

Neste sentido, importante afirmar que, do ponto de vista técnico, o racismo tem um significado específico no Ordenamento Jurídico Pátrio. Tratam-se dos crimes previstos na Lei n. 7.716/89, que dispõe sobre os “crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor”. Esta lei traz condutas diversas que compõem o aqui chamado de “racismo strictu sensu” – este devidamente normatizado, como se vê – que pode ocorrer com o impedimento de acesso de alguém a restaurante, negativa de emprego no âmbito privado, recusa de aluno em unidade de ensino público ou privado,induzimento ao preconceito, todos em razão de raça ou cor, dentre muitos outros (são mais de vinte as condutas proibidas por tal lei!). A Lei de racismo tem fundamento na Constituição Federal, notadamente nos artigos 4º, inciso VIII e 5º, XLII.

Diferentemente dos crimes capitulados na lei anteriormente comentada, existe um delito peculiar no Código Penal Pátrio, que consiste na Injúria Preconceituosa, capitulado no art. 140, §3º, do Código Penal, que estabelece: Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:  Pena - reclusão de um a três anos e multa. Trata-se de uma modalidade mais reprovável da conduta de ofender a dignidade ou o decoro de alguém, porque, neste caso, o agente se utiliza de elementos de raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência para achincalhar a vítima, denotando o preconceito na conduta. O crime em comento foi fruto de duas alterações legislativas posteriores à entrada em vigor do código.

A injúria racial, modalidade de injúria preconceituosa, foi inserida em 1997, justamente por conta da desclassificação do crime de racismo para o de injúria simples, previsto no caput do artigo 140. Considerou o legislador que, pelo desvalor da conduta e do resultado que a ação de vilipendiar a honra de alguém por motivos de raça e cor possui, enquadrá-la na modalidade simples do crime violaria a proporcionalidade. O problema, a nosso ver, consiste no fato de que o legislador, ao diferenciar a reprovabilidade das condutas, excedeu-se, estabelecendo de forma totalmente desproporcional a pena da injúria preconceituosa, a qual, na sistemática atual, equipara-se ao homicídio culposo (não intencional).

Feitas as pertinentes observações isoladas sobre as condutas, importa diferenciar ambas. Como foi possível perceber, tratam-se de delitos autônomos, que possuem repercussões distintas para a prática jurídico-penal. É de se notar que, por vezes, o delito de racismo ocorrerá muito similarmente ao crime contra a honra subjetiva de alguém – a Injúria Racial, portanto. Então, como diferenciar um do outro?
Em primeiro lugar, as penas dos crimes de racismo são muito mais elevadas, o que já denota maior reprovabilidade dessas condutas em virtude do preconceito do agente e das consequências que causam no mundo real, quando comparadas à injúria racial. No caso do racismo, a principal característica consiste na segregação da vítima, que fica privada do exercício de Direitos em virtude das suas características pessoais de raça e cor. A vítima, nesses casos, é proibida de frequentar determinados locais, de exercer a sua profissão de forma adequada, de ter acesso à escolaridade somente em virtude do preconceito que motiva o agente. No que tange à injúria preconceituosa, por seu turno, há o vilipendio à honra subjetiva da vítima em virtude da cor. São coisas distintas, portanto. Ofender pessoas em virtude da raça ou da cor, como ocorreu nos casos do goleiro Aranha e do casal de namorados no Facebook, consiste em injúria racial e não em racismo, do ponto de vista técnico.
Por certo, ao privar o agente do exercício de importantes direitos fundamentais, por meio da conduta de racismo, o sujeito ativo também provoca um assaque à honra da vítima, pois demonstra o seu desrespeito e desprezo à dignidade desta. Nada obstante, o contrário não é verdadeiro: ou seja, ao realizar um ataque à honra, não haverá a privação do exercício de qualquer outro direito fundamental, excetuada a própria honra.

São condutas que, embora reprováveis, precisam ser diferenciadas a partir da análise técnica, sobretudo em virtude das suas consequências.

O “racismo strictu sensu” é considerado crime inafiançável e insuscetível de prescrição de acordo com o que dispõe o art. 5º, XLII, da Constituição Federal de 1988, enquanto que isto não se aplica, por impossibilidade de analogia in malam partem no Direito Penal Pátrio, ao crime de Injúria Racial. Em outros termos, os crimes de racismo não serão “esquecidos” pelo Ordenamento, por opção do legislador constituinte, permanecendo a possibilidade de punição a qualquer tempo. A injúria racial, por seu turno, segue a regra da prescritibilidade e esquecimento do fato criminoso. 

Além deste importante aspecto, tem-se que o crime de Injúria Racial, por força do que dispõe o art. 145, Parágrafo Único, do Código Penal, é processado por ação penal pública condicionada à representação. O racismo, previsto na Lei n. 7.716/89, por sua vez, é de ação penal pública incondicionada.
Ou seja, enquanto que, para o processamento da Injúria Racial, exige-se o cumprimento da condição de procedibilidade para o exercício do direito/dever de ação do Ministério Público (Federal ou Estadual), fazendo com que este dependa do oferecimento de representação criminal por parte da vítima, o MP independe do preenchimento desta condição para tomar as medidas de repressão ao crime que estão ao seu alcance.

Como se pode observar, a temática não foi exaurida nessas breves linhas, o que extrapolaria as raias do nosso interesse. Estas são apenas algumas considerações de maior relevância, acerca de um debate que – sabe-se – não restará sepultado, seja pela dificuldade que abrange, seja pela (infelizmente) incessante ocorrência de atos desta natureza. Talvez um dia, não precisemos manejar o Poder Judiciário para tratar de situações de tamanha desumanidade. Daqui até lá, porém, parece que muita água ainda há de passar por debaixo da ponte.



[1]
Importante ressaltar que, após o mapeamento do Genoma Humano, é impossível falar-se em raça humana, uma vez que inexistem diferenças genéticas que subsidiem a distinção humana em raças. Conquanto inexistam bases genéticas e biológicas para a referida distinção entre os seres humanos, o conceito de racismo permanece sob o prisma político-social, significando atos de segregação e preconceitos em virtude de caracteres específicos de um determinado grupo social. Neste sentido, imprescindível a leitura do acórdão do julgamento do Habeas Corpus82.424-2/RGS, no Supremo Tribunal Federal. 

 
Ilana Martins
Advogada
Doutoranda em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP)
Professora Adjunta da Universidade Salvador – Unifacs.

Brenno Cavalcanti
Advogado
Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBa)
Professor de Direito Penal da Unijorge.