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'Era crime você ficar na rua e ser preto', diz historiador sobre início do futebol baiano

Por Matheus Caldas

'Era crime você ficar na rua e ser preto', diz historiador sobre início do futebol baiano
Ypiranga x Bahia na déc. de 30 | Foto: Reprodução / Infantes Aurinegros
Considerado o esporte mais popular do Brasil, o futebol pode ser utilizado como referência para apontar alguns elementos da sociedade, como o preconceito. Na Bahia, a criação e a fundação do Ypiranga, em 1906, pode ser usada como exemplo para como os negros eram discriminados em uma época não muito distante da abolição da escravatura. O historiador Matheus Buente, que produziu sua monografia sobre o assunto enquanto estudou na Universidade Católica do Salvador (Ucsal), relembra a época. “O Ypiranga é fundado por trabalhadores do porto. Todo mundo jogava lá, do chefe ao estivador. Não havia essa distinção de raça. É o clube que tem essa vanguarda no Brasil. Falam muito do Vasco da Gama, do Rio de Janeiro, mas eles só fizeram isso em 1914. Com a diferença de que o Vasco não é fundado nessa perspectiva. Era um clube elitista como todos os outros”, contou Buente. A elite da época tentou de todas as formas uma repreensão das camadas mais pobres do período. “Acho que a questão dos negros jogarem incomodou muita gente. A elite queria se diferenciar, porque era um esporte europeu, veio da Inglaterra. Aí vinha o negão fazendo a mesma coisa e jogando bola no mesmo lugar. Isso incomodou e começou a ser enquadrado como crime de vadiagem”, disse Buente. “Praticar esportes não era crime. Era crime você ficar na rua e ser preto”, emendou. Nessa época, as partidas eram disputadas no Campo da Pólvora – ou Campo dos Martyres.
 

Buente explica sobre o processo de popularização do esporte na Bahia| Foto: Luiz Fernando Teixeira / Bahia Notícias
 
Antes da fundação do Ypiranga, a Liga dos Desportos Terrestres, responsável por mediar e controlar a prática esportiva na capital baiana foi criada por membros da burguesia baiana da época. “A burguesia fundou a primeira liga em novembro de 1904. Era a liga que, controlada pela burguesia, era considerada como oficial. No entanto, havia muitas outras ligas na cidade”, explicou Paulo Leandro, mestre em cultura e sociedade da Faculdade de Comunicação (Facom) da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Em sua tese, ele escreveu a produção “Ba-Vi: da assistência à torcida. A metamorfose nas páginas esportivas”, que conta um pouco da história do futebol e, em alguns trechos, ele trata sobre a questão negra no futebol baiano. Dentre os dissidentes da Liga dos Desportos Terrestres, estava o Ypiranga, um dos clubes mais temidos nas três primeiras décadas do século XX, apesar de não jogar o campeonato “oficial”. “O pior para a burguesia é que os pretos jogavam muito. As adversidades faziam o negro amadurecer mais rápido. O mesmo se deu no futebol. O pobre era safo e levava isso para o campo”, pontuou Leandro. A inclusão de excluídos da sociedade em seu plantel foi essencial para construir essa supremacia do Ypiranga, frequente vencedor do Campeonato Baiano e do Torneio Início durante a fase amadora do futebol baiano. Nesta fase, o Vitória era um dos clubes elitistas que não tinham boa aceitação das camadas mais carentes da população. O Bahia, por sua vez, ainda não havia sido fundado. No entanto, o Tricolor é uma junção de dois times que também compunham a elite soteropolitana da época. “O Vitória é um clube inglês, com o cricket, e tem aquela coisa de clube social. O Bahia é uma junção do Bahiano de Tênis e a Associação Atlética da Bahia. Eram clubes de ricos. Mas na década de 30 [quando o Tricolor foi fundado, em 1931], o processo de popularização já estava quase completo. Praticar esportes não era mais crime”, contou Buente. Durante esse maior processo de popularização, um jogador negro se destacava no Ypiranga. O meia-central Popó, considerado o maior ídolo da história do clube, foi bicampeão baiano com o aurinegro da Vila Canária. Ele atuou com a camisa ypiranguense entre as décadas de 20 e 30. Seu desempenho chamou a atenção de personalidades baianas como Jorge Amado e Irmã Dulce, que se declararam fãs do “Mais querido”. 

 
Popó é um grande ídolo do Ypiranga | Foto: Divulgação / Ypiranga
 
Na obra “Bahia de Todos os Santos”, o escritor baiano reservou uma das passagens ao Ypiranga e a Popó. "No futebol baiano não há nenhum clube de tão gloriosa tradição quanto o Ypiranga, o time de Popó”, escreveu. Irmã Dulce, por sua vez, já contou que ia ao Campo da Graça quando criança para assistir partidas do time amarelo e preto. “Meu jogador preferido era o Popó. Era um escuro com as pernas assim. Se ele fosse vivo, acho que hoje ele era Pelé. Ele era danado na bola”, falou numa entrevista à TV Bahia, na década de 80. Para Emerson Ferretti, presidente do aurinegro, essa vanguarda na aceitação de negros na equipe é um fato a ser comemorado pelo futebol brasileiro. “Eu acho isso um diferencial. Mostra o que o Ypiranga é desde o inicio. Um clube que não tinha preconceitos. Tanto é que foi o clube de maior torcida na primeira metade do século passado. Acho isso fundamental. É uma parte rica do clube”, comemorou, além de admitir que a diretoria tem dificuldades em encontrar outros fatos históricos do clube.