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Tragédia na Fonte Nova completa 10 anos; familiares ainda procuram culpados

Por Ulisses Gama / Matheus Caldas / Leandro Aragão

Tragédia na Fonte Nova completa 10 anos; familiares ainda procuram culpados
Família de Anísio Marques ainda sofre com a perda | Foto: Ulisses Gama / BN

No imaginário ideal para torcedores do Bahia, o dia 25 de novembro de 2007 marcaria o fim do calvário tricolor. Seria a data que, na história, cravaria a saída do clube da Série C, então última divisão nacional. Contudo, o resultado de 0 a 0 contra o Vila Nova-GO entrou para a história como o dia do acesso não comemorado. Isso porque, há exatos 10 anos, sete pessoas morreram ao caírem de uma altura de 20 metros, quando parte da arquibancada do anel superior da Fonte Nova cedeu. Uma década depois, o Bahia Notícias relembra o fato e homenageia as vítimas - Márcia Santos Cruz, 27 anos; Jadson Celestino Araújo Silva, 25 anos; Milena Vasquez Palmeira, 27 anos; Djalma Lima Santos, 31 anos; Anísio Marques Neto, 27 anos; Midiã Andrade Santos, 24 anos, e Joselito Lima Jr, 26 anos. 


Parte de arquibancada cedeu na antiga Fonte | Foto: Reprodução / TV Bahia

 

O BN fez uma visita à antiga casa de Anísio Marques Neto, na avenida San Martin, em Salvador. Lá, os irmãos da vítima, André e Daniela, e a mãe, Maria Neuza, nos receberam. Nas paredes, fotos e referências de Anísio. Na casa, apenas uma referência ao Bahia: uma cortina branca, com o escudo do clube estampado. A ausência de menções ao Tricolor evidencia a mudança de vida que a família passou após a tragédia. “Tem minha filha que é Bahia doente e outro filho que é outro doente pelo Bahia. Por meu prazer, ninguém iria mais para negócio de jogo. A gente pare filho, mas não controla. Me sinto muito emocionada. Não consigo nem falar, pois dói muito”, conta dona Maria Neuza, que revela ter tido problemas de saúde após a morte do filho no acidente.

André, por sua vez, carrega em seu íntimo a dor da perda do irmão. Ele diz ter deixado de lado o gosto pelo futebol e confessa que não consegue nem passar perto da Arena edificada no local da antiga Fonte. “Quando passo na frente dessa nova Fonte Nova, sinto que vou ficar lá dentro. E, ao mesmo tempo, sinto revolta de não ter ninguém para falar: ‘Olhe, o erro foi de tal pessoa’. É como eu disse no início: quem tem mais, chora menos. Essa é nossa vida. Fazer o que? O que nos resta é viver e esperar que a justiça divina chegue na hora certa”, lamenta.


Anísio abraça dois dos três filhos. Caçula nasceu no ano da tragédia | Foto: Ulisses Gama / Bahia Notícias


‘Quem tem mais, chora menos’: esta foi uma frase repetida sistematicamente por André durante a entrevista. O luto é potencializado ao lembrar que, 10 anos depois, não há nenhum responsável identificado pela queda da arquibancada. “Quem morreu, morreu. Já se construiu outro estádio, outro patrimônio. Ainda ninguém foi culpado, responsabilizado... Nenhuma empresa foi responsável pelo ocorrido. Isso foi devido à falta de manutenção deles lá, não sei de onde é. Isso ficou esquecido. Resta só a dor e a lágrima da saudade”, desabafa.

O discurso de André é compartilhado pela irmã Daniela. A saudade se mistura com revolta quando ela fala de Bobô, diretor-geral da Superintendência de Desportos do Estado da Bahia (Sudesb) à época, e atualmente deputado estadual pelo PCdoB. A autarquia era responsável pela administração do estádio. Para ela, por ser ídolo e campeão brasileiro com o clube, ele deveria ter sido mais prudente ao liberar partidas com grandes públicos no local. “Sou torcedora do Bahia, mas estou muito triste com o que aconteceu. Bobô sendo diretor da Sudesb na época. Por ganância colocou gente que não podia colocar. Ele botou acima do limite. A Fonte Nova estava com a estrutura velha, acabada. E ele, com a ganância de ganhar dinheiro, passou do limite”, sugere. 

Ela ainda cobra que o campeão brasileiro com o Bahia, em 1988, seja responsabilizado. “Bobô está livre e vivo. Meu irmão está lá debaixo da terra. Muita gente que sofreu também está debaixo da terra. Não deu em nada. Ele está livre. A gente gostaria que ele pelo menos fosse punido, mas não foi. Ainda se lançou como deputado”, reclama.

 

Após implosão, em 2010, e transformada em Arena, Fonte Nova foi palco da Copa do Mundo e deste golaço de Van Persie | Foto: Getty Images

 

Perguntada sobre os auxílios da Sudesb após a morte do Filho, a mãe de Anísio foi taxativa e garante que recebeu pouca ajuda, apesar de admitir que os netos recebem pensão. “A Sudesb veio aqui uma vez ou outra com a assistente social e mandaram umas cestas básicas pra tapear. Não ajudou a família aqui em nada. Nem pra dizer assim um emprego para um dos irmãos. Na época, uma parte desempregados, querendo tomar curso. A gente foi pedindo a Deus misericórdia e foi levando a vida e fomos esquecendo de Fonte Nova”, revela.

Para superar a ausência do filho, dona Maria Neuza diz que encontrou forças ao sair de casa. “Não me curei dessa dor, mas Deus me levantou, eu fazendo caminhada de manhã. Todos os rapazes que eu via, fortes, com a camisa amarela... Ele saiu daqui com a camisa amarela e o short azul. Aí eu dizia assim: ‘Oh, meu Deus. Tire essa dor do meu peito. Me dê forças’. Eu fiquei seca, com o vento me levando”, relembra.

Contudo, mesmo lutando para esquecer e seguir a vida, dona Maria Neuza admite frustração com o suporte dado pela Sudesb. Ela também comunga da opinião dos filhos e pede que alguém seja responsabilizado. “Eles deram por esquecido. Ninguém mais procurou ninguém. Morto está meu filho, porque está preso, debaixo da terra. Até agora não foi preso ninguém. Nenhum responsável procurou mais a família ou acalmou tudo. Botaram uma pedra em cima. Quem ficou na dor e na perda fomos nós, os familiares”, afirma.


Emocionada, dona Maria Neusa, mãe de Anísio, exibe foto do filho | Foto: Ulisses Gama / Bahia Notícias


Resposta da Sudesb

Em nota enviada à reportagem, a autarquia se justificou e garante que, desde o acidente, vem prestando auxílio a todos os familiares. “Nos meses que se seguiram ao acidente, uma profissional de assistência social da Sudesb deu todo o amparo aos familiares das vítimas, com acompanhamento frequente, inclusive psicológico. Às três vítimas não fatais, o Governo do Estado ofereceu todo suporte necessário para a reabilitação dos mesmos, incluindo acompanhamento médico, psicológico, fisioterápico e social”, diz a nota.

Até hoje, 14 pessoas são beneficiadas por pensões pagas pela Sudesb, entre filhos, cônjuges, e mães das vítimas. Bobô, por sua vez, não atendeu às ligações do BN para repercutir sobre o assunto.

Relato dos atletas

No primeiro tempo, com nenhum time tendo aberto o marcador, o Bahia teve a chance de sair na frente e colocar a cereja no bolo da festa pelo retorno à Série B. O meia Elias foi derrubado dentro da área. Foi então que Nonato, sétimo maior artilheiro do clube com 125 gols, pegou a bola. Era a chance de o jogador escrever mais um capítulo na sua história com a camisa tricolor. O vice-goleador da competição à época partiu para a bola, chutou forte no canto direito, mas o goleiro Vinícius defendeu. No momento, a frustração tomou conta da Fonte Nova. Contudo, após a tragédia, veio o questionamento: se a bola entrasse, o desastre poderia ter sido maior? 

A pergunta nunca poderá ser respondida. Aquele foi o último jogo do estádio, implodido em 2010 e reedificado em 2013. No entanto, Nonato relembra o lance e comemora o fato de a bola não ter estufado as redes. “Era o gol que valia o nosso acesso e o nosso objetivo. Valia demais. Quando eu bati, errei e fiquei triste para caramba. Depois do ocorrido, quando tudo passa e você vai pensando, aquilo ali foi um gol perdido para se comemorar. De repente não sabemos o que iria acontecer. Do jeito que foi, poderia ter acontecido", relembra.

Nonato lembra da tristeza e a impotência que sentiu quando soube do desabamento da arquibancada. "Triste como todo mundo ficou. O estádio ficou cheio para ver o Bahia sair daquela situação, depois de dois anos seguidos na Série C. Ficava todo mundo querendo participar daquilo, pois o Bahia tem uma torcida apaixonada. Era para ser tudo festa e acabou sendo uma tragédia”, lamenta.

Referência da defesa tricolor em 2007, Alison foi titular na partida e relata a emoção que sentiu quando lembrou que a bola de Nonato poderia ter entrado e acentuado a tragédia. Ele também não deixou de citar a responsabilidade de quem liberou a Fonte Nova para o jogo. “Se falou muito do pênalti. Essa situação vai ter que se conviver com ela, pois não sabemos o que teria acontecido. Foram erros de humanos. A liberação do estádio e tudo mais. As pessoas responsáveis deveriam ter avaliado. Vamos conviver com a hipótese do pênalti para o resto da vida. Temos que ser fortes com essa perda e sinto muito pelos familiares", frisa.



BN acompanhou implosão do estádio, em 2010

 

O zagueiro ainda tem uma relação mais estreita com o acidente. Após o jogo, ele passou pelos corpos estirados no chão. Quando lembra da imagem, a emoção fica latente. "Quando saí do estádio para o estacionamento, encontrei a minha esposa. Quando passei por um setor, vi corpos estendidos no chão com um lençol branco. A ficha caiu que não ia ter comemoração. Essa lembrança é muito viva", conta.

Volante do Bahia à época, Fausto vivia o ápice de sua carreira. Experiente em times de pequeno porte do futebol nacional, ele conquistaria o primeiro feito pelo clube que torce. No entanto, com o acidente, ele viu seus sonhos desmoronarem em poucos segundos. Ele revela que ligou para familiares das vítimas para prestar condolências. “Se eu pudesse trocar o acesso por essas vidas, eu trocaria. A importância de uma vida... Na minha carreira profissional, foi algo dos mais marcantes. Um clube que sou torcedor desde criança. Ali eu pude dar alegria para esse torcedor. Mas, nessa mistura de muita alegria, se foram sete vidas, precocemente. Foram ver seu time e não voltaram para suas famílias. Quando você perde um ente querido, a dor é muito grande. Eu sei como é a dor da perda. Isso demonstra o meu sentimento. Eu trocaria esse acesso”, emociona-se.

Fausto também relembra que, após a partida, um trio elétrico esperava os torcedores que comemorariam o fim do calvário. No entanto, a festa foi cancelada. "Para mim, não tinha mais motivo para comemorar, pois vidas tinham se perdido. Eu fiquei muito sentido. Poderia ser um dos meus familiares e eu me coloquei no lugar daquelas famílias”, conclui.

Se no vestiário do Bahia o clima foi de tristeza, pelo lado do Vila Nova não foi diferente, mesmo sendo o time visitante. Defensor do pênalti cobrado por Nonato, Vinícius conta como era o clima dos jogadores do clube goiano, mesmo também tendo conseguido ascender de divisão. “Ficamos muito triste. E ainda o vestiário, se eu não me engano, ficava perto das vítimas. Era um dia para ser de festa”, relata.

Sobre o pênalti, Vinicius também admite ter imaginado o que poderia ter acontecido caso a bola tivesse entrado. “A gente fica imaginando se tivesse saído o gol naquele jogo o tamanho do desastre que poderia ter acontecido, com o estádio lotado como estava. Eu fiquei um pouco aliviado de não ter tomado gol naquele jogo e de ter evitado um desastre maior”, disse o arqueiro, que atualmente atua pelo Remo-PA.



Nos álbuns fotográficos, Vinícius guarda o jornal que estampou sua defesa no pênalti de Nonato | Foto: Arquivo pessoal



Autoridades sabiam dos riscos

Uma tragédia anunciada. Apesar de clichê, esse bordão pode definir o desabamento da arquibancada. Em janeiro de 2006, o Ministério Público da Bahia (MP-BA) entrou com uma Ação Civil Pública contra a Sudesb e o Bahia requerendo a interdição da Fonte Nova por conta das condições precárias.

Já poucos dias antes da tragédia, no dia 6 de dezembro, a 5ª Promotoria de Justiça do Consumidor ajuizou Ação Civil Pública novamente contra o Tricolor e a Sudesb, mas, desta vez, incluiu também a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Federação Bahiana de Futebol (FBF) e Polícia Militar do Estado da Bahia por negligenciarem o estado crítico da estrutura do estádio e ainda permitirem partidas de futebol no local. Segundo a promotora Joseane Suzart, autora das duas ações, no entanto, nenhuma das duas ações foram julgadas pelo Judiciário, mesmo após "25 petições pugnando pelo julgamento do feito". 

Na esfera criminal, o MP-BA também denunciou em março de 2008 Bobô e o engenheiro civil Nilo dos Santos Júnior por homicídio culposo e lesão corporal de natureza culposa. Contudo, em agosto de 2009, ambos foram absolvidos pelo juiz José Reginaldo Nogueira, por insuficiência de provas. A Segunda Instância tentou reverter o quatro em dezembro de 2009. Porém, em julho de 2010, a Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça da Bahia julgou improcedente o recurso e manteve a decisão do juízo de primeiro grau.

Até hoje, só um processo está em curso, na 5ª Vara da Fazenda Pública. Em agosto de 2009, o Grupo de Atuação Especial de Defesa do Patrimônio Público e da Moralidade Administrativa (Gepam), por meio dos promotores de Justiça Rita Tourinho e Adriano Assis, sugeriram uma Ação Civil Pública por ato de improbidade administrativa contra Bobô e Nilo Júnior, por "descaso na condução da solução dos problemas estruturais da Fonte Nova". Este processo aguarda julgamento.


Fonte Nova e arredores lotados horas antes da tragédia, ha 10 anos
 

Lado do Bahia

A equipe do BN não conseguiu entrar em contato com o clube para repercutir sobre a tragédia. No entanto, no ano passado, no canal Bar FC no Youtube, o presidente Marcelo Sant’Ana revelou uma ligação pessoal com o acidente e prestou homenagem aos mortos. Para ele as mortes foram sua "principal derrota como torcedor". “Aqueles sete doeu. Teve 60.007 pagantes na Fonte Nova. A capacidade era 60 mil e naquele dia nós perdemos sete tricolores. Eu poderia ter morrido naquele dia, pois estava na Fonte Nova. Qualquer um daqueles 60.007 poderia ter morrido naquele dia”, desabafou. “Ali foi uma derrota dura”, emendou.

Perguntado sobre eventuais homenagens aos torcedores na Arena, ele desabafou. Segundo o dirigente, "o poder público ou consórcio não têm interesse em reviver essa história". À época, Marcelo declarou que, da parte do Bahia, era preciso "ter alguma coisa que relembrasse esse dia" e que o fato deveria servir de lição também para o clube.

Na partida contra a Chapecoense, às 18h (horário da Bahia) deste domingo (26), na Fonte Nova “remodelada”, os jogadores entrarão com faixas pretas nos braços das camisas, em alusão às vítimas da tragédia. 


 

Marcelo Sant'Ana se emociona ao relembrar tragédia na antiga Fonte Nova