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Entrevista

'Invasões de terra não são necessárias', diz presidente do Incra sobre reforma agrária - 16/04/2018

Por Lucas Arraz

'Invasões de terra não são necessárias', diz presidente do Incra sobre reforma agrária - 16/04/2018
Foto: Priscila Melo / Bahia Notícias

A questão de distribuição de terras no país é antiga e se arrasta pelos anos. Porém, o braço do governo para resolver a questão, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), acredita que estamos avançando na pauta. Em conversa com o Bahia Notícias, o atual presidente do órgão ligado à Casa Civil, Leonardo Góes, garantiu que o Sul do país está praticamente reformado. “A questão está muito concentrada no Nordeste. A pobreza, as condições socioeconômicas e históricas na região fazem com que a gente tenha uma demanda maior para a criação de novos assentamentos”, disse. Para resolver a questão por aqui, o Incra, no entanto, dispensa a ajuda de invasões e ocupações de terra. “As invasões de terra não são necessárias”, disparou o presidente. “Temos uma lei que impede que o Incra desaproprie uma área que foi objeto de esbulho possessório por dois anos. Sendo pragmático, as invasões atrapalham”, explicou Góes. Quem também foi uma pedra no sapato do órgão foi o Tribunal de Contas da União (TCU). Em 2016, a Corte impediu o Incra de criar novos assentamentos, após um estudo na base de dados encontrar irregularidades entre os assentados. De acordo com o TCU, o Incra entregou terras para empresários, políticos e funcionários públicos, o que seria proibido. “A gente quer que, óbvio, o assentado tenha uma progressão na sua renda após o assentamento. Esta foi a base da distorção do TCU ao colocar como um critério de permanência o mesmo critério de entrada”, defendeu o presidente. O órgão teve que reestruturar sua seleção e reavaliar os dados para, em 2018, poder selar a paz com o Tribunal da União e voltar a fazer assentamentos. De volta, o Incra promete, para este ano, preencher 12 mil lotes em áreas de reforma agrária no Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Para pleitear uma vaga, porém, as regras mudaram para se adequar ao exigido pelo TCU e superar outra barreira: o corte orçamentário no governo Temer.


O Tribunal de Contas da União (TCU) suspendeu a seleção de famílias para o Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA) após suspeitas de irregularidades na seleção dos candidatos. Para reverter a situação, o Incra se comprometeu a alterar o processo. Que medidas foram tomadas para convencer o Tribunal?

Nosso compromisso com o TCU foi firmado por meio de uma nova metodologia de supervisão, usando tecnologia e imagem e cruzamento de dados. A primeira providência foi refazer o cruzamento de dados que resultou no acórdão inicial do TCU. Eliminamos os indícios de irregularidades na seleção de candidatos e apresentamos um plano para que, em 4 anos, o Incra faça uma inspeção ocupacional de todos os projetos e apresente à Justiça aqueles que foram apontados como irregulares.

 

O Incra retorna neste ano o PNRA com expectativa de preencher 12 mil lotes em áreas de reforma agrária. Como funciona a seleção de famílias para o programa?

O critério de entrada para o programa se divide em duas categorias: os que vedam funcionários públicos, candidatos com renda superior a três salários mínimos ou alguém que tenha mandato eletivo e outros que dão preferência a um público específico. Por exemplo, são beneficiados os desapropriados que não tenham um imóvel, o trabalhador rural da pequena agricultura ou aquela família que está em situação de insegurança. Com os novos critérios de seleção, após acordo com o TCU, o Incra se obriga a tornar público o processo para o município que receberá o assentamento. A gente discordou do cruzamento do TCU, mas ao mesmo tempo elaboramos uma alteração no marco legal que foi de encontro à recomendação do tribunal de dar mais transparência à seleção. É importante lembrar que os critérios que “vedam” são eliminatórios, mas se referem a entrada da família no programa. Os critérios de permanência no PNRA são diferentes. A gente quer que, óbvio, o assentado tenha uma progressão na sua renda após o assentamento. Esta foi a base da distorção do TCU ao colocar como um critério de permanência o mesmo critério de entrada. Se o indivíduo entrou no assentamento em uma condição, 10 anos depois ele tem uma outra. E isso não é uma irregularidade. Quem entrou lá atrás, agora pode ser um professor universitário (funcionário público). O filho de um assentado pode ter passado em um concurso e isso não inviabiliza a exploração do lote pela unidade familiar. O que se quer é que as famílias progridam. Hoje, temos deputado federal que é assentado, mas que na época do assentamento possuía as condições favoráveis para a entrada. Se depois de assentado, o agricultor se candidatou e virou vereador do município, se isso não prejudicar a exploração do lote pela unidade familiar, não existem irregularidades.

 

Como o órgão vê o movimento de invasões de terras na luta para a reforma agrária?

As invasões de terra não são necessárias. Mas, obviamente, a gente não emite mérito da estratégia de luta usada por movimentos sociais e quem briga por uma terra. O que digo é que o conflito não resolve a situação, ele atrapalha. Temos uma lei, por exemplo, que impede que o Incra desaproprie uma área que foi objeto de esbulho possessório (invasão de propriedade) por dois anos. Sendo pragmático, as invasões atrapalham. Eu não posso fazer vistoria ou avaliar uma área em que houve uma reintegração de posse. São dois anos em que aquela área fica insuscetível a ser desapropriada pelo Incra. A luta é legítima no país democrático, mas prejudica a transformação de áreas para a reforma agrária, por conta de questões legais.


O número de decretos desapropriatórios tem caído. Olhando para os números de 20 anos atrás, em 1994, foram 1.298 decretos contra. Em 2015, nenhum. Em 2016, os processos foram retomados, somando um total de 21. A que se deve essa diferença numérica?

Devemos levar em conta um processo de diminuição que é natural da questão orçamentária do órgão. De 2015 para cá, o orçamento do Incra caiu à medida que o mercado de terras subiu. Apesar da desapropriação ser uma sanção, ela é paga a preço de mercado. A alta no preço dos imóveis impactaram a capacidade do governo de fazer obtenções de forma onerosa. Apesar disso, em 2014, tivemos 100 decretos e 29 foram caducos dois anos depois por falta de capacidade orçamentária de fazer. Não adianta fazer os decretos e não ter capacidade orçamentária para ajuizar as ações em preço de mercado. Há uma certa acomodação natural, mas um crescimento de outras vias de obtenção.


Que outras vias são essas?

Outros instrumentos de obtenção de terra passaram a ganhar força, a exemplo do decreto 433. A nova lei permite que a gente adquira imóveis à vista. O Incra ganhou um pouco mais de competitividade neste instrumento. Temos também a jurisdição, que troca dívida da União por imóveis. O governo abre mão de uma dívida e ao mesmo tempo faz uma política social que é destinar uma área de um grande devedor para a reforma agrária. Além dos novos instrumentos, o Incra lançou uma nova modalidade que é a permuta. Se nós temos um património imobiliário que não serve para a autarquia, como terrenos no Lago em Brasília e prédios públicos, lançamos um edital de permuta para trocarmos imóveis por terrenos para a reforma agrária. O interessado se habilita e em troca de uma fazenda eu posso entregar para ele um prédio na Marina da Glória, por exemplo. Essa é uma forma de não depender do orçamento da União e agregar novas áreas para a reforma agrária. Os novos instrumentos são reflexo do momento que o país vive. Estamos usando da criatividade para driblar a questão orçamentária.

 

Em agosto do último ano, o senhor apresentou o quadro da reforma agrária para o presidente Michel Temer. Qual foi a resposta do Governo?

Apresentei algumas preocupações, como o crescimento das mortes relacionadas à disputa por terra. Também mostramos números relacionados à titulação. A resposta foi positiva. Em algum momento do ano passado nosso orçamento estava contingenciado, como quase o Governo todo, em 50%. Eu terminei o ano com 100% da Lei Orçamentária disponível e com crédito suplementar de R$ 64 milhões. Por outro lado, a gente entregou mais títulos do que nos últimos 10 anos, o que era uma meta do Governo. No orçamento federal, o Incra concorre com segurança pública, com educação, com serviço público, mas o processo que a gente faz tem um viés desenvolvimentista também. Na reunião, convencemos o presidente Temer a desbloquear o nosso orçamento.


A pauta agrária constantemente é associada a movimentos sociais ligados a partidos de esquerda. Como o Incra medeia o processo sendo um braço do Governo?

Na história, existe um viés ideológico ligado à política da reforma agrária. A pauta talvez seja uma política progressista, mas eu não vejo a reforma agrária como uma política assistencialista. É uma política de desenvolvimento. Ela atua mitigando conflitos, redistribuindo e fiscalizando a função social da propriedade que é um instrumento garantido na Constituição. A questão ideológica sempre permeou a questão, mas sempre defendi a terra como um importante instrumento para o Brasil, no viés do desenvolvimento rural sustentável.

 

Em quanto tempo completaremos a reforma agrária no Brasil?

Depende de qual reforma agrária se trata. Ela é uma pauta que é contínua e a demanda por acesso terra é relacionada com outros fatores como o econômico, como emprego e a geração de renda no meio rural. O Brasil tem condições de viver com os modelos de agricultura familiar e o modelo patronal de agronegócio que produz commodities. Dá para conviver com os dois modelos corrigindo distorções. Mas a reforma agrária hoje é regionalizada. O Sul do país é uma área praticamente reformada. A questão está muito concentrada no Nordeste. A pobreza, as condições socioeconômicas e históricas na região fazem com que a gente tenha uma demanda maior para a criação de novos assentamentos. Porém, a nossa experiência, em comparação com outros lugares da América Latina, é exitosa. No Brasil temos legislação e cadastro de controle territorial. 

 

No norte da Bahia, temos a região conhecida como Polígono da Maconha em que o narcotráfico capta pequenos produtores da área pobre para fazer o plantio da planta nas terras improdutivas. O Incra dialoga com essa demanda?

O Incra criou uma superintendência no médio São Francisco na época do confisco das áreas de maconha. Esse é um problema localizado, mas a política de reforma agrária tem como objetivo ajudar e contribuir a questão de segurança pública. Enquanto você não gera alternativa para o pequeno produtor, ele está sujeito a esse tipo de uso indevido da terra. Não há outra alternativa que se sustente enquanto o plantio for proibido no país.  

 

Então a liberação do plantio da maconha seria um caminho facilitador para a reforma agrária?

Esse é um tema político que foge um pouco do nosso escopo.