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Entrevista

Paulo Miguez delineia o histórico do Carnaval e destaca três momentos que construíram a festa - 25/01/2016

Por Fernando Duarte / Rebeca Menezes / Estela Marques

Paulo Miguez  delineia o histórico do Carnaval e destaca três momentos que construíram a festa - 25/01/2016
Fotos: Estela Marques / Bahia Notícias
Em semana de pré-Carnaval, o Bahia Notícias entrevistou o doutor em Cultura Contemporânea (Ufba) Paulo Miguez, especialista na folia momesca. O professor de Instituto de Humanidades, Artes e Ciências e do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (Ufba) delineia o histórico do Carnaval e destaca três momentos que construíram a festa como esta se configura hoje. Miguez comenta ainda aquele caráter democrático do Carnaval, cuja afirmação se torna quase um clichê em tempo de muitos artistas desfilarem em trios sem cordas. “Não duvido da generosidade dessas estrelas, não tenho dúvida que elas compreendem a dimensão popular da festa e se realizam muito mais fortemente num trio sem cordas. O que estou querendo dizer é que o movimento delas na direção dos trios sem cordas obedece a uma lógica que tem a ver com negócio”, destaca. Confira a entrevista completa!
 

 
O senhor tem um trabalho na área do Carnaval. Que diagnóstico o senhor faz quanto à evolução do Carnaval dos últimos anos até hoje?
A gente poderia dizer que o Carnaval da Bahia experimentou algumas inflexões fundamentais a partir da segunda metade do século XX pra cá. Três elementos aconteceram ao longo dessas décadas em momentos distintos, de forma diferente, mas que a conjunção desses elementos acabaram produzindo a configuração que a gente tem hoje e nos últimos anos. Quais são essas grandes inflexões? Primeiro, o trio elétrico. A chegada do trio em 1950, absolutamente genial, grande contribuição que a Bahia dá à trama cultural - não só nossa, porque já ultrapassou as fronteiras daqui - do Brasil, inclusive, vai transformar radicalmente a festa, em todos os sentidos: espacial, organizacional, cultural, do ponto de vista estético. O trio dá nova forma à música brasileira, desorganiza a festa que era marcadamente hierarquizada. Sem o trio a gente certamente não teria chegado à configuração atual. Vinte e cinco anos depois do trio, na metade dos anos 1970, você vai assistir uma outra grande inflexão na festa baiana, uma grande potência que ultrapassa a festa, a emergência dos blocos afro. Data de 1975 a saída do primeiro bloco afro, que é o Ilê Aiyê, criado em 1974. Vai mudar radicalmente a festa porque vai acionar um conjunto de processos junto à comunidade negra e mestiça da cidade, que sempre teve presença forte, mas não tinha um desenho estético e político próprio. Participava da festa de várias formas, em vários tipos de bloco. E os blocos afros vão organizar numa perspectiva política e estética essa comunidade e isso vai produzir impacto fenomenal na festa, em todos os aspectos - organizacional, estético. Os tambores dos blocos afros vão revolucionar a festa. A cultura baiana é outra depois de 1975. Os jovens certamente não têm ideia do que era antes o panorama da cidade. Antes de 1975 era raro ver a juventude negro e mestiça poder expressar esteticamente sua condição de negro. Isso não existia e é uma conquista dos blocos afro, o segundo grande momento de transformação da festa. O terceiro vai acontecer por volta dos anos 1980, que é um processo de empresarialização da festa, principalmente de uma forma da festa, que é a forma bloco. A chegada dos blocos de trio vai refundar a lógica da festa numa perspectiva de mercado, se transformar em grandes empresas. O trio elétrico surgindo, depois a estética afrocarnavalesca, criam as bases pra emergência de uma coisa chamada axé music e criam também as bases para esse movimento da festa na direção da sua empresarialização. O que a gente tem hoje é uma configuração resultante disso. Claro que se você for olhar os últimos anos, esse processo vem sofrendo mudanças. Acho que estamos num momento em que a gente está percebendo mudança significativa no modelo de negócio da festa. Esse primeiro momento de emergência do mercado da festa estava acertado no binômio artista-bloco, principal ativo deste mercado, as estrelas da festa. Nunca houve estrelas na festa. A gente conhecia o trio - Tapajós, de Dodô e Osmar, Marajós -, mas ninguém sabia quem tocava em cima. Essa é uma invenção do Carnaval contemporâneo dessa configuração e esses artistas foram, têm sido e continuarão a ser ainda, certamente, o ativo. O que faz um bloco ser um grande bloco não é mais o número de pessoas, mas a pessoa que está cantando ali em cima. Carnaval anterior você tinha processo de fidelização clubista: quem saía no Internacionais nos anos 1960 jamais sairia no Corujas, era uma coisa meio BaVi. O bloco tinha uma ligação com aquela comunidade, com aquela categoria profissional. Quem sairia no Filhos do Fogo, por exemplo, era o pessoal dos Bombeiros; Filhos do Mar era a Marinha Mercante. Essa nova configuração muda isso: eu saio no bloco que Ivete [Sangalo] canta, no trio em que Saulo está, vou atrás do bloco que Margareth [Menezes] puxa. Só que acho que nos últimos anos a gente está experimentando uma mudança. Brinquei outro dia dizendo que abadá deixou de ser o grande desejo e a pulseirinha do camarote é quem assumiu esse lugar. Me parece que está havendo uma migração do eixo do negócio dos blocos para os camarotes. É bom lembrar que parte expressiva dos camarotes estão vinculados ao star system. Temos assistido nos últimos anos que a grande maioria dos blocos tem enfrentado problemas de patrocínio, tem redução do fluxo de recursos para saída dos blocos. Os grandes artistas permanecem, aí você vai ter conjunto pequeno de grandes blocos que continuam a passar ao largo dessa dificuldade de patrocínio e esses artistas canalizam, através de suas figuras, recursos hoje para o bloco, mas principalmente para o trio e para o camarote. Os empresários da festa perceberam que poderiam manter patrocínio com valores elevados para os camarotes e para o trio independente. Por isso nos últimos anos vários artistas têm se disposto a sair num trio sem cordas - e essa expressão me soa estranho porque o trio é sem cordas, foi criado para fugir a essa hierarquia que existia antes.
 
Então você acredita que essa luta por um Carnaval mais democrático, na verdade, só vai acontecer parcialmente nas ruas e os camarotes vão tomar esse lugar antes visto que era dos blocos?
Não duvido da generosidade dessas estrelas, não tenho dúvida que eles compreendem a dimensão popular da festa e se realiza muito mais fortemente num trio sem cordas. O que estou querendo dizer é que o movimento deles na direção dos trios sem cordas obedece a uma lógica que tem a ver com negócio. Esse movimento que fez com que, nos últimos anos, cada vez mais artistas estarem na festa fora do bloco tem a ver com a mudança da lógica de mercado. Sobre os camarotes, não acho um problema. Acho um problema camarotes no espaço público, porque espaço privado não me parece que seja algo que deva nos incomodar, a não ser que a gente imagine que tenha o direito de determinar qual a melhor forma de brincar o Carnaval. Eu prefiro o trio, gosto do pé no chão. Mas tem gente que prefere o camarote. E acho que Caetano [Veloso] resolveu isso numa simples frase, que acho genial, quando ele diz: “Todo mundo na praça e manda gente sem graça pro salão”. Na época ele não se referia aos camarotes, mas aos clubes sociais. Já brinquei uma vez dizendo que certamente um dia vão erguer dez andares de camarote e temos marqueteiros na cidade com habilidade suficiente para vender a um turista incauto o décimo andar dizendo a ele que ali é o melhor lugar para ver o Carnaval. Mas espaço público, não, em hipótese alguma. Me parece que essa é uma demanda que a gente não pode negociar jamais que, quanto mais a gente tenha espaço público para o folião pipoca, a festa ganhará.
 

 
Nos últimos anos também tem tido aumento da importância do público LGBT nos blocos, alguns até exclusivos. Você acha que esse processo também faz parte dessa mudança?
Acho que responde por isso o Carnaval sempre ser o espaço onde a presença do público LGBT ter mais acolhimento. A festa é mais acolhedora, espaço mais democrático nesse ponto de vista. Agora, essa presença com mais visibilidade certamente resulta da luta da comunidade LGBT e de outros setores da sociedade que vem travando - o enfrentamento da homofobia, do preconceito - e saúdo isso como uma coisa muito positiva. Sou de uma geração em que a presença LGBT estava circunscrita a poucos espaços, talvez o mais famoso deles a Praça Castro Alves, nos anos 1970. Inclusive, costumam me perguntar o que a gente precisa fazer para ter a Praça Castro Alves de novo. Brinco dizendo que a primeira condição - e se vocês conseguirem, me avisem que eu caio fora - é a Ditadura Militar. A praça é uma resposta, no âmbito da festa, a um momento difícil da história brasileira. Ali era uma zona libertada para os militantes da esquerda, intelectuais, artistas e o mundo gay. Hoje acho bacana que eles não precisem mais de um lugar para estar e que possam estar na festa, da mesma maneira que os militantes de esquerda não precisam de um lugar para se manifestar politicamente. Vejo isso como sinal positivo e que respondem mais a movimentos que estão fora da festa.
 
Dentro desse modelo que você avaliou, o Carnaval é democrático como promete ser?
Diria que, se a gente olhar numa perspectiva histórica, ele é infinitamente mais democrático do que já foi em outros momentos. Se você considerar carnavais da primeira metade do século XX, tinha claramente divisão entre o Carnaval das elites, realizado através dos clubes carnavalescos e com a presença dos clubes sociais, embora os clubes sociais não fossem privilégio exclusivo das elites. Você tinha clubes sociais em bairros populares, cujos associados eram pessoas de classe média baixa. Tinha isso em vários lugares da cidade: Itapagipe, Barra - o famosérrimo Palmeiras da Barra, frequentado pelos trabalhadores da Barra. Se eu comparar hoje com o Carnaval daquele momento, com certeza é mais democrático. Teve momentos, por exemplo, em que era proibido tocar tambor. Quem fosse pego, a polícia punia com prisão e multa. Agora, o que acho que a gente precisa considerar é que Carnaval é um espaço de disputa, uma arena de conflitos e eles mudam. A  presença de um camarote no espaço público gera conflito; a corda da maneira que nos últimos anos se impôs, sem nenhum tipo de regra, gera conflito. Diria que é, a rigor, festa bastante democrática. Não há interdições que valham para todo o conjunto da festa permanentemente, o espaço do trio elétrico clássico ainda é de absoluta democracia. Você não precisa saber dançar, não precisa estar vestido desta ou daquela forma, e é possível encontrar alguém bastante rico e bastante pobre. Evidente que não estou querendo sublimar a desigualdade que é profunda na nossa cidade, não estou imaginando que Momo produza o fim das desigualdades - seria demais pedir pra um rei que só reina sete dias, não tem secretariado, o orçamento é exíguo. Se aquilo que os governos não fazem em sua função de governo, não será Momo que vai fazer. Moramos numa cidade desigual, mas não tenha dúvidas que o Carnaval permite coisas que nosso cotidiano não permite. Vou dar um exemplo simples. A Vitória é um dos bairros chamados nobres da cidade. Há três anos vi uma cena, por volta de 1h da manhã, estava caminhando na Vitória, à frente de um daqueles prédios vi um conjunto de jovens negros, certamente não moradores dali, deitados, falando alto, conversando, ao lado dois casais namorando, bebendo e nada de mal aconteceu. Imagine que se hoje à noite um grupo de jovens deitar ali ou sentarem no passeio, ou que fiquem em pé, vocês imaginam que vai acontecer o quê? Polícia imediatamente.
 
Fala-se muito também da crise do axé e da invasão do sertanejo na festa. Isso significa mais um conflito do Carnaval, por exemplo?
Não acho que o axé está em crise. O que está em crise é a indústria fonográfica. Não é possível falar de crise quando você pega esses grandes nomes que tem agenda cheia o ano inteiro Brasil afora. Não tenho dúvida que um gênero musical com as características que o axé tem, isso vale pra qualquer gênero, massivamente componham o cenário musical, é o que sofre de fadiga de material. Isso não significa que esteja em crise. E não gosto da ideia de assumirmos aquela onda que o sertanejo está vindo. Não podemos fazer como em alguns carnavais, que proíbem a presença do axé. Sempre soubemos dialogar com essas coisas que chegaram de fora - acho que essa é uma das características nossas que ficam evidente no Carnaval. A gente topa que Zezé di Camargo e Luciano subam no trio e cantem, que Pepeu Gomes toque Rolling Stones. A ideia de só ter alguma coisa empobrece e talvez essa seja uma grande coisa que a gente tem no Carnaval da Bahia. Não vejo isso como um problema, mas uma solução. E não acho que o axé está em crise. A indústria fonográfica está.
 

 
O Carnaval é como um ente mutável. O poder público se adaptou às mudanças e sabe lidar bem com elas?
Diria que de um certo ponto de vista, sim. A infraestrutura de equipamentos, a logística de serviços posta à disposição da festa pela prefeitura e pelo governo do estado, é invejável. Você imagina algum outro lugar do mundo em que uma festa em seu momento de pico, em que estão presentes componentes explosivos - multidão, calor, libido, droga - você não tem um crime de morte e um efetivo de 25 mil homens tomando conta da festa? Isso mostra várias coisas: não é uma festa violenta - é natural que a partir de determinadas situações algum processo violento aconteça pelo desconforto, presença da droga -; que a polícia desenvolveu capacidade efetiva de presença na festa que é tão sofisticada que você tem a presença de várias polícias do mundo que acompanham a PM no Carnaval para saber como 25 mil homens dão conta de uma festa que tem um milhão de pessoas na rua e ninguém morre. Isso vale para polícia, mas vale para a saúde - quem já teve a necessidade de ser atendido no posto de saúde sabe a qualidade dos profissionais que estão à disposição do folião -, a iluminação da cidade, que no espaço do Carnaval é ótima; a limpeza pública durante o Carnaval é excelente. Os serviços públicos funcionam muito bem no Carnaval. Onde que eu acho que há uma lacuna do poder público? No enfrentamento de questões que são centrais à festa, o cuidado com a dimensão do patrimônio cultural da festa, a ausência de regulação da festa, especialmente sabendo que é presente práticas mercantis muito fortes com atores de peso; tem que ter cuidado para não descaracterizar a condição principal do Carnaval, o patrimônio intangível mais forte que a cidade tem. Do ponto de vista do cuidado pra realização da festa, acho que chegou a um nível de grande sofisticação. A cidade funciona melhor no Carnaval, como se ela se encontrasse em seu melhor momento.
 
Esse ano não serão apenas sete dias de festa. O que você acha da expansão do Carnaval?
Os carnavais do século XV, XVI em Veneza duravam seis meses. Infelizmente não teremos Carnaval de seis meses, afinal alguém precisa produzir fora do Carnaval, mas não vejo como um problema. Talvez a maior dificuldade é que você tem mais custo para o poder público - mais um dia para o policial, mais um dia para a iluminação, para o cuidado com a questão da mobilidade urbana. Venho de uma geração que se acostumou a três mais um - domingo, segunda e terça mais sábado. Lembro na juventude que sábado pela manhã muitas lojas ainda funcionavam na Avenida Sete. Sábado pela manhã era o momento de as famílias colocarem suas cadeiras no passeio para assistirem ao Carnaval. E pouco a pouco isso foi mudando e o sábado passou a ser dia de Carnaval mesmo; se incorporou a sexta. A quinta sempre houve, quinta-feira à noite sempre houve, mesmo no período que você tinha na quinta-feira à noite a entrega da chave ao Rei Momo, sexta não tinha Carnaval, sábado essas bases, depois começava mesmo no domingo. A cidade tem pra mim, claramente, possibilidades imensas se for pensada como uma cidade pós-industrial, dedicada às tramas do simbólico, que vive de uma economia do simbólico, onde está festa, turismo, serviços. Salvador nunca foi uma cidade industrial. Sempre fomos cidade pré-industrial e podemos pular etapa de ser cidade industrial - e espero que assim seja - e dar um passo de ser cidade pós-industrial. Tem que dar o passo de cuidar do seu calendário de festas.