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Entrevista

Vitor Maciel, mestre em contabilidade governamental

Por Francis Juliano

Vitor Maciel, mestre em contabilidade governamental
Foto: Paulo Victor Nadal / Bahia Notícias

As licitações são muitas vezes o calcanhar de aquiles dos municípios. Caso não sejam bem executadas vão se traduzir em má qualidade de serviços e gestões incompetentes. Ainda pior. Podem escoar dinheiro público para cofres de organizações criminosas. Em entrevista ao Bahia Notícias, o professor da Ufba e mestre em contabilidade governamental, Vitor Maciel, lamenta o fato de ainda não se ter uma “cultura do controle” na população. Ainda na entrevista, Maciel lista as principais falhas das licitações, aponta os casos mais comuns de fraudes e orienta a participação do cidadão no acompanhamento dos contratos. O professor ainda criticou a falta de fiscalização e de transparência em municípios do estado.  “Quando você não tem planejamento nem fiscalização, você fica na mão das empresas e administrações que muitas vezes não têm gestores preocupados em executar aquela política pública que motivou o contrato”, diz. Confira abaixo a entrevista na íntegra.

 


Qual é o principal problema das licitações feitas pelas prefeituras baianas? Em que elas são mais problemáticas?
O grande problema que a gente vê na prática é a falta de planejamento e de fiscalização. Entre as etapas que envolvem o planejamento, a licitação propriamente dita, a produção do contrato e a fiscalização, na prática, o que acontece é apenas o contrato. Tem um estudo que diz que há apenas fiscais de contrato em 19% das gestões. É muito pouco. Eu já trabalhei na esfera de município como também por consultoria, e deu para ver que as gestões não têm controle nem fiscalização de contrato. Era para ter planejamento, licitação propriamente dita, contrato e fiscalização, mas na verdade, na prática, só tem duas coisas, a licitação e o contrato.

 

Mas não há uma comissão de licitação que acompanha o processo?
Tudo se atribui à comissão de licitação, ao pregoeiro, mas na verdade as coisas acontecem na execução do contrato. E a população perde na execução dele. Porque quando você não tem planejamento nem fiscalização, você fica na mão das empresas e administrações que muitas vezes têm gestores despreocupados em executar aquela política pública que motivou o contrato. 

 

Existem situações que chamam a atenção até de quem lida com o assunto?
A gente tem situações em que o município fez a abertura das propostas de licitação em um domingo. Aí você chega lá na segunda, a licitação já está publicada com o nome do fornecedor escolhido. 

 

 

Em relação à burocracia. O formato das licitações peca neste sentido? Elas poderiam ficar mais simples para que o cidadão tenha ideia do que está sendo contratado?
Diferente da área privada, na esfera pública tudo tem um regramento normativo a ser cumprido. A própria Lei de Licitações e a Constituição Federal também dão o direito de o cidadão participar desses processos. Mesmo porque as licitações são feitas em sessões abertas. Não precisa necessariamente conhecer o processo para participar, mas acompanhar se está acontecendo o trâmite legítimo. Agora, obviamente, do ponto de vista técnico, o cidadão médio, falo daquele que não é estudioso do assunto, precisa saber algumas coisas básicas, como por exemplo: quais são os tipos de licitação, como menor preço, menor técnica. 

 

Qual é o poder que o morador comum tem enquanto fiscal dos contratos de serviços? 
Nós temos a Lei de Acesso à Informação, a Constituição Federal, que, no artigo 31, diz que as contas municipais devem ficar disponíveis para os contribuintes. Não sei se você recorda, aquele caso que ficou famoso, do ex-juiz Nicolau dos Santos Neto [ex-magistrado condenado por desvios de R$ 169 milhões em obras do Fórum Trabalhista de São Paulo, caso revelado em 1998]. Aquele superfaturamento foi denunciado por um cidadão comum. Na verdade não existe filtro, não existe limite para o cidadão participar, inclusive, das próprias licitações que são eletrônicas. Hoje, o grande problema é muito mais a falta de conhecimento do que a limitação que o Estado dá para que o cidadão participe. 

 

O que já existe disponível e que pode ser usado pelo cidadão para acompanhar as licitações?
Nós temos vários caminhos. No Tribunal de Contas dos Municípios da Bahia (TCM-BA), nós temos o link de “Controle social” em que são divulgadas as licitações que foram publicadas pelas prefeituras e câmaras. Há os observatórios sociais que têm feito um trabalho fantástico. Há também os sites de entidades, como a página oficial da própria prefeitura na internet. Há ainda sites como o Alerta Licitação que fazem toda a captação dos editais e avisos de licitação publicados e colocam tudo isso em um único ambiente. 

 

 

Um ponto que é alvo de críticas sobre licitações são os editais. Eles pecam pelo quê? Por excesso de burocracia?
Não por burocracia, mas pela má qualidade das especificações daquilo que vai ser adquirido. A última entrega da comissão de licitação é identificar o fornecedor dentro da proposta mais vantajosa. No entanto, a unidade solicitante é que sabe aquilo que vai ser contratado, seja obra, bens ou serviços. Existe um documento chamado Termo de Referência em que se tem a descrição minuciosa do que se quer comprar. Isso é para evitar, por exemplo, que você compre uma cadeira com estofado, sem as características que você apontou. 

 

Quando o funcionário envolvido na fiscalização é alguém nomeado pelo prefeito por uma questão de conveniência política, ele é mais suscetível a cometer erros em comparação com um servidor concursado?
O artigo 51 da Lei de Licitações diz que a comissão de licitação deve ter dois servidores permanentes entre os três componentes dela. A intenção é preservar a independência. Aqui no nosso estado tem acontecido com os controladores. Em 2005 o Tribunal de Contas dos Municípios da Bahia publicou uma resolução 1120 obrigando que todos os municípios em cada poder, ou seja, prefeituras e câmaras, instituíssem as controladorias com a figura dos controladores. Assim, nós temos 834 controladores, partindo da ideia de que temos 417 municípios. 

 

Quais são os casos típicos de irregularidades em licitação que ocorrem no interior baiano?
Sem sombra de dúvidas, o mais comum é fracionamento de licitação. Nas dispensas de licitação poderia se contratar por até R$ 8 mil bens e serviços. Obras e serviços de engenharia eram R$ 15 mil o máximo permitido. Com o decreto 9412, aumentou para R$ 17,6 mil bens e serviços, subindo 120%, e o teto para contratar obras aumentou para R$ 33 mil. O que acontece? Algumas entidades fazem compras por valores menores a esses da dispensa de licitação e vão fragmentando. Quando a gente vai fazer uma análise anual se percebe que aquelas compras deveriam se enquadrar em uma modalidade de licitação.

 

 

Quais são os outros casos mais comuns?
Outra situação comum ocorre na modalidade de licitação convite. A gestão dispensa a divulgação em jornal de grande circulação. Aí ela faz o convite direto para três empresas, por exemplo, e coloca o aviso em local público, que pode ser em qualquer lugar. Tem casos de compras diretas que a entidade acaba fazendo o que eu chamo de “cambalhota”. Primeiro faz a compra e depois quando vai apresentar à sociedade e aos órgãos de controle, a gente percebe que existe todo um processo para dar vida a aquilo que já nasceu morto. A modalidade convite tem sido reduzida expressivamente pela alta incidência de irregularidades porque termina tendo quase um direcionamento na contratação. 

 

A gente tem conhecimento, através de operações policiais, de empresas envolvidas em esquema em vários municípios. Caso de usos de laranjas e por aí vai. Esse problema tem sido reduzido?
Eu não tenho números para dizer se reduziu ou não, mas pela experiência e depois de todas essas operações, eu penso que está havendo uma atuação mais forte dos órgãos de controle do que redução das práticas por parte dos agentes envolvidos. Porque aquele gestor ou empresário que tem má-fé, ele acaba buscando meios de dar legitimidade a aquilo que é ilegítimo. 

 

A impressão que se tem é que por mais que as fraudes sejam noticiadas, elas estão sempre se renovando. 
Nós precisamos ter um cidadão mais atuante nas coisas que lhe interessam. Eu tenho fortes críticas a isso. O cidadão chega ao bar e diz que é um absurdo, que as obras estão sendo superfaturas, mas eu me lembro de que, quando trabalhei, a gente colocava carro de som na cidade para que tivesse cinco ou dez cidadãos em uma sessão de audiência pública para ouvir o quanto se gastou em um contrato. Salvo alguns observatórios que têm feito um papel importante de fiscalização ou ações isoladas de pessoas, mas o fato é que nós não temos uma cultura do controle. 

 

 

E parece que vereadores não se importam tanto na fiscalização de licitações de modo geral.
Eu vejo que muitos parlamentares não estão buscando se apropriar do assunto ou estão interessados nesse assunto, mas em uma perspectiva econômica e não na perspectiva de controle. Eu entendo que o Poder Legislativo nas questões de licitação ainda é muito falho. Eu lido com parlamentares todos os dias e vejo que as denúncias estão muito vinculadas à ordem política, no caso de mudança de gestão, do que em discutir a gestão pública na forma operacional.

 

Entrando na questão de situação de emergência. Quase todo dia a gente vê decreto sendo reconhecido pelo estado depois de passar pelo crivo municipal. E muitas vezes circula a informação do seguinte: “ah, o prefeito faz festa e depois coloca um decreto de emergência” para contratar e fugir de punições, como rejeição de contas. Esse expediente é comum mesmo?
Os municípios, principalmente os menores, vivem predominantemente de transferências de outras esferas de poder. Eles não têm autonomia financeira fruto da sua capacidade de produzir renda e arrecadar. Quando falo de produzir renda, falo da receita de ISS [Imposto sobre Serviços], IPTU [Imposto Predial e Territorial Urbano], ITIV [Imposto de Transmissão Intervivos], receita patrimonial, que são aluguéis. Então as receitas próprias não são protagonistas dos cofres públicos municipais. Na época do governo Dilma a gente teve a redução da linha branca, do IPI. O povo continuava comprando. Era muito comum falar: “olha, a crise é só para as empresas”. O governo continuou arrecadando, as pessoas consumindo, o estado tributando. Mas lêdo engano. 

 

Por quê?
Porque o FPM [Fundo de Participação dos Municípios], que é uma arrecadação importante para os municípios, tem como base o IPI [Imposto sobre Produtos Industrializados] e o Imposto de Renda. Como houve uma redução expressiva do IPI houve uma queda drástica da arrecadação do FPM. Quando eu reduzo essa receita, chamada de receita corrente, o que acontece? O limite de gastos com pessoal aumenta. Com o aumento da folha, os municípios entraram em alerta prudencial. E aí virou desespero. Porque a lei de responsabilidade fiscal diz que você tem que tirar vantagens, horas extras, evitar contratação, reduzir vantagens, tirar comissionado. E a outra coisa que não existe viver sem as despesas de custeio, despesas correntes. Pois bem. O que a gente recomenda: “Olha, município, você está nessa condição. Os órgãos de controle, os ministérios públicos, tribunais de contas, Controladoria Geral da União, não teria o condão de dizer: 'não faça festa'". Por outro lado, a administração terá de reduzir gastos com pessoal por força de lei. Muitos gestores acataram as recomendações e tantos outros ainda insistiram em fazer festas grandiosas. Nestes casos teve atuação dos órgãos de controle. Agora, há municípios por uma questão cultural, como Amargosa, não tem como deixar de fazer São João. Precisa diminuir o custo da festa.

 

 

Falando em festas, existe algo que chama muito a atenção que são as contratações de artistas. Como saber se o município está pagando demais a determinada atração?
A questão aí é de razoabilidade de gastos. O artigo 25 da lei de licitação fala da inexibilidade de licitação, que é quando não há viabilidade de competição. E é interessante que algumas entidades se utilizam da prerrogativa legal da inviabilidade no caso de um artista de notório reconhecimento junto à crítica para de forma flagrante criar situações de superfaturamento e que nos últimos anos passou a ser ação do TCM e do Ministério Público.
 

Como se combate isso?
Com fiscalização. Porque tudo isso é publicado. Está lá no Portal Transparência. Não existe teto, mas você pode saber uma série histórica de contratação dessa empresa, representante da atração, e constatar o exagero da contratação. Só lembrar o caso de Wesley Safadão [em 2016 o cantor receberia R$ 575 mil por uma apresentação no São João de Caruaru. Após questionamento, o vocalista doou a quantia a entidades carentes]. Por outro lado a gente ainda tem a cultura do pão e circo. Quando você fala para o cidadão que ele não vai ter Ivete Sangalo, Víctor e Léo, Jorge e Mateus na praça por conta de uma calamidade financeira, ele vai achar que o gestor não está preocupado com ele. Existe a questão da impopularidade aí. Parece um contrassenso, mas o fato é que precisamos da construção de uma cultura de controle.