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Morosidade judicial agrava sofrimento de mãe impedida de ver os filhos por 140 dias na BA

Por Cláudia Cardozo

Morosidade judicial agrava sofrimento de mãe impedida de ver os filhos por 140 dias na BA
Foto: TJ-BA

V.A não sabe se passará o Dia das Mães com os dois filhos pequenos. No calendário, ela vai contando o número de dias em que foi privada de poder ver os filhos. De maio de 2018 para cá, ela chegou a ficar 138 dias sem ter notícias das crianças. Ela não sabia se estavam estudando, em qual escola estavam matriculadas e, sobretudo, se estavam saudáveis. Nos últimos meses, ela tenta gerenciar as crises de ansiedade, com a angústia, a tristeza e a saudade dos filhos, tudo isso, porque o pai dos pequenos a impede de ter contato com eles. A situação atual em que ela vive é classificada como Alienação Parental. 

 

Ela foi casada com o pai dos filhos por sete anos. O tempo e as divergências fizeram o relacionamento se desgastar, e um dia, o casamento acabou. Eles decidiram manter a guarda compartilhada das crianças em um acordo judicial. O ex-marido de V.A tinha total liberdade para entrar e sair de sua casa, para ver os pequenos, para levá-los e buscá-los na escola. Após a separação, o ex-marido passou a persegui-la, ligando para o telefone fixo do trabalho, querendo saber mais da vida pessoal dela. Esses fatos a começaram a incomodar, já que não viviam mais como casal, e ela, então, pediu que ele avisasse previamente quando iria até a residência dela. “A partir deste momento, em que eu disse que não estava sendo legal para mim, pois o não aviso prévio estava sendo muito invasivo, já que não tínhamos mais vida de casal, ele mudou”, conta a mãe.  

 

O ex-marido começou a impedir de ver os filhos em 2017, e, um dos dias mais marcantes para ela foi no Dia das Mães de 2018, quando precisou acionar o Conselho Tutelar para poder ver as crianças. Ela relata que, assim que chegou à casa do pai dos filhos, este a impediu de sair com elas para uma comemoração do Dia das Mães. Ela ligou para o Conselho Tutelar. Ele foi resistente em deixar os filhos irem com ela. Ameaçaram chamar a polícia para que ela tivesse o direito de passar aquela data com os filhos. Antes de ser impedida de vez de ter contato com os pequenos, quando iam para casa dela, o ex-marido só fazia chamada telefônica por vídeo. Quando ela não podia atender, ele ligava para os vizinhos levarem até ela o celular para que atendesse. “Mas quando os meninos estavam com ele, eu ligava nos horários em que eles estavam acordados, e não me deixava falar. Ele não me deixava falar com meus filhos”, conta. 

 

A guarda compartilhada estabelece que a criança seja matriculada em uma escola próxima a residência do pai e da mãe. O pai queria matricular os filhos em uma escola em Lauro de Freitas por ser próximo ao trabalho dele. Ela divergiu, pediu para que fossem matriculados em uma escola no bairro de São Cristóvão, por ser um bairro próximo para os dois. A escola era o único ponto de encontro dela com as crianças. Aos filhos, V.A diz que o ex sempre conta que ela está trabalhando para justificar a não comunicação com a mãe. Ela já perdeu três empregos por conta desta situação. Desesperada para ver os filhos, ela sempre saia do trabalho às 11h da manhã para ver as crianças na escola – fato que incomodava muito seus chefes. Se chegasse depois, o pai já teria buscado, e ela não os veria mais. Depois do veto ao acesso total, ele mudou as crianças de escola. 

 

Ela não pode falar com os filhos no Natal, Páscoa, e nem no aniversário da filha conseguiu falar com ela por telefone para desejar feliz aniversário. O pai impedia. Mudava o número do celular. “Ele age como se eu não existisse. É como se eu tivesse morrido após a separação. A sensação que tenho é essa. Ele quer que os filhos amem somente a ele, que esqueçam o passado, que eles não têm mais mãe”, lamenta. “Eu sinto que meus filhos não podem perguntar sobre mim na casa do pai. Sinto que meu nome não é pronunciado na casa dele, que minha filha não pode perguntar sobre mim, pois é algo proibido”. 

 
 

A situação que V.A vivencia é um caso típico de Alienação Parental, conforme explica o juiz Sami Storch, autor da expressão Direito Sistêmico, e pioneiro no mundo na aplicação das Constelações Familiares no Poder Judiciário. “A Alienação Parental, segundo a Lei 12318/10, é a intercessão na formação psicológica da criança ou do adolescente, por meio de uma indução, ou quando um dos pais, avós ou quem tem autoridade sobre o menor, ‘faz a cabeça’ da criança para que repudie um dos pais, de forma que cause prejuízo ao vínculo dela com o pai ou com a mãe”, explica o magistrado, que atua na cidade de Itabuna, no sul da Bahia. 


Juiz Sami Storch | Foto: Divulgação

O juiz diz que a própria lei cita alguns exemplos de alienação como campanha para desqualificar a conduta dos pais dizendo “seu pai não cuida direito de você”, “seu pai é irresponsável”, “sua mãe não presta”, “sua mãe não faz nada”, entre outros. A intenção, dessa forma, é “dificultar o exercício da autoridade parental, negar a palavra do pai ou da mãe, dificultar o contato da criança, mudar o telefone e não dar o novo número, mudar de endereço, não passar recado, dificultar o acesso ou omitir informações importantes como em qual escola ela está matriculada, não informar sobre o estado de saúde. “É uma forma de não deixar que o outro participe da criação da criança”, comenta Storch. Em alguns casos de alienação, o magistrado diz que um dos genitores chega a denunciar o outro na Justiça para impedir o contato do filho. Mas assevera que, em alguns casos, a alienação é sutil e que, quem a pratica, muitas vezes nem percebe o mal que está fazendo para criança. 

 
 

Ela mesmo diz que, quem vê o pai cuidando dos filhos, fala que ele é um bom pai, por ser provedor. Ele é presente, cuida do sustento, da escola, da saúde, mas acha que “a figura da mãe não é importante para o desenvolvimento da criança”. “Ele é presente, cuida, mas agindo dessa forma, não pensa nas crianças”, destaca. O advogado dela, Hugo Marinho, endossa a declaração. “Uma pessoa privar o filho de um vínculo maternal não me parece ser um bom pai. O fato dele pagar escola, saúde, é o básico. É o dever de pai, nada mais”, justifica. 

 
Hugo Marinho | Foto: Jamile Amine / Bahia Notícias
 

V.A quer a que a Justiça modifique o regime de guarda compartilhada para unilateral. Apesar de especialistas apontarem a guarda compartilhada como a melhor medida para o pleno desenvolvimento de crianças filhos de pais separados, no caso dela, Hugo Marinho diz que o regime previamente acordado, se mostrou nocivo. “Ele usa as crianças como arma de guerra para atingir a ex-mulher”, frisa. Ela procurou o advogado quando já estava há 40 dias impedida de ver os filhos. No acordo feito com o ex, ele se comprometia, através de uma pessoa de confiança, a levar as crianças até sua residência, pois havia uma medida protetiva decretada em favor dela por conta da perseguição. “Mas ele nunca cumpriu o acordo. Eu fiz queixas na delegacia pelo descumprimento do acordado. Ele tinha dia e horário para levar as crianças para minha casa, mas justifica o fato dizendo que não entregava as crianças para mim, pois eu não estava em casa. Como eu não estaria em casa, se estou desempregada e atualmente trabalho como autônoma?”, questiona. 

 

O advogado reclama da morosidade do Judiciário em apreciar o pedido liminar para mudar a guarda. Hugo afirma entender todo o contexto do Judiciário baiano de falta de servidores, mas para ele, isso não é justificativa para se demorar um ano para avaliar um pedido de urgência. “O Ministério Público já deu parecer favorável para mudança da guarda, já ratificou o parecer, eu já peticionei oito vezes neste tempo, informando a situação da mãe, sinalizando a tragédia que pode ocorrer caso essa guarda não seja modificada, mas o Judiciário não se manifesta, nem para negar o pedido para que possamos entrar com um recurso”, reclama o advogado. O caso tramita na 10ª Vara de Família em Salvador, sob sigilo de justiça, e está sob os cuidados da juíza Rosana Cristina Souza Passos Fragoso Modesto Chaves. O advogado diz que o pedido liminar deveria ter sido avaliado em três meses. 

 
 

A juíza pediu que as crianças passassem por uma análise psicológica feita pelo Serviço de Apoio e Orientação Familiar (Saof), do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA). O pedido da magistrada foi feito em novembro de 2018, mas até então, o exame não foi realizado para avaliar os efeitos psicológicos da alienação parental nas crianças. “O procedimento é importante, mas pedimos urgência no caso. Se ela entende que não estão presentes os pré-requisitos para concessão da liminar, que negue, para recorrermos”, reforça o advogado. Ele diz que toda semana comparece à vara para tentar agilizar o processo e que já conversou diretamente com a juíza, mas ainda não obteve sucesso. Em dezembro de 2018, antes do recesso do Judiciário, ela encaminhou o processo para o Centro de Conciliação Extrajudicial (Cejusc) para que as partes chegassem a um novo acordo, mas o réu, pai das crianças, para não ser intimado do processo, não compareceu a audiência. E isso, atrasou mais ainda o andamento da questão. 
 

Para o ex ser citado e tomar conhecimento que tramita uma ação na Justiça para mudança da guarda, a mãe das crianças peregrinou nos corredores do Fórum das Famílias, no Campo da Pólvora, para sensibilizar os oficiais de justiça sobre a importância da intimação. Sempre que os oficiais tentavam intimá-lo, não conseguiam, pois os vizinhos, com medo, sempre diziam que não o conhecia. Na última semana, finalmente, o pai das crianças foi citado após seus constantes pedidos. Após a citação, ela pode ver os filhos e ficar com eles por quatro dias. “Eu descobri a escola em que eles estão estudando. Cheguei lá, conversei com a diretora sobre a situação. Pedi para ver meus filhos e levar eles comigo, já que a guarda é compartilhada e eu tenho esse direito. Ela pediu para não haver confusão e para que a polícia não fosse acionada. Ela ligou para meu ex-marido e disse que eu fui buscar as crianças. Então, ele autorizou”, contou. 

 

Nos quatro dias com as crianças, a mãe esteve no céu. Percebeu que o carinho dos filhos por ela não mudou. Percebeu a mudança no gosto por desenhos, filmes, e até pela comida. Mas logo no dia seguinte, observou que a filha mais velha estava doente. “Eu a levei na emergência do Hospital São Rafael, e quando a médica me questionou se ela já havia sido medicada ou internada nos últimos 30 dias, eu não sabia responder, pois eu nunca pude ser informada da saúde deles. Eu perguntei para minha filha se havia sido medicada, ela só disse que tinha tomado alguns chás. E isso me deixou mal”, conta. Depois deste período, V.A voltou a ver as crianças apenas na escola. “Se eu for à casa dele para pegá-los, ele não atende, não abre a porta, e para não enlouquecer, eu preciso me fazer fria neste momento, para lutar pela guarda deles”, afirma. A medida protetiva deferida a favor dela já acabou, mas, ainda sim, tem receio de falar com o pai da criança, por não saber o que pode acontecer. 
 

A HISTÓRIA QUE SE REPETE

Ela acha que o pai pratica a alienação parental por machismo e por ter vivido a mesma situação na infância. “O pai dele também tinha esse perfil. É muito do histórico de vida dele. Os pais dele não se falam desde que se separaram, e a separação ocorreu quando meu ex-marido tinha cinco anos. A mãe dele foi impedida de ter notícias dos filhos e tentou suicídio. O pai os criou. E o que ele faz agora é replicar aquela estrutura familiar”, conta. O juiz Samir conta que, a partir da técnica da Constelação Familiar, se percebeu que, de fato, o que a mãe constatou, acontece na prática. “As crianças tendem a repetir o comportamento dos pais. Crianças cujos pais se separaram e não se entenderam, têm muito mais chance de terem relacionamentos difíceis quando crescerem. A chance de se separarem, de terem relacionamentos violentos ou desequilibrados, para repetir aquilo que aconteceu com os pais, é muito maior. E quando há esse preparo, os pais podem traçar um novo destino para os filhos de forma muito mais saudável”, comenta. 

 

No início, ela achava que somente ela vivenciava essa situação. Ela começou a estudar a questão e percebeu que não estava sozinha. Buscou redes de apoio de mulheres, entrou em grupos de ajuda no WhatsApp e Facebook, milita contra alienação parental no Instagram. Com mais informações, ela reflete que muitos problemas no casamento eram por conta do machismo dele. “Tudo sempre teve que ser da forma dele. Eu tinha opiniões diferentes e ele não aceitava”, e isso, se reflete na criação dos filhos. Hugo afirma que até a linha defesa dele no processo é machista. “Ele diz no processo que o primordial objetivo da ação é atingir o ‘brio’ dele, para macular sua imagem ‘de pai zeloso e responsável’” e que, ela, desta forma, busca reatar o relacionamento. “Mas ele não tem uma mensagem que prove isso. Eu só quero cuidar dos meus filhos”, afirma. 

 

HUMANIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO

“Talvez o Judiciário não sinta a angústia das partes. E nós ficamos de mãos atadas”, reclama o advogado. Essa falta de sensibilização pode ser modificada no Poder Judiciário a partir da técnica da Constelação Familiar. “Essa técnica demonstra para as pessoas de como todos se beneficiam quando o pai respeita a mãe e a mãe respeita o pai”. “Quanto mais o pai reconhece o valor da mãe, e quanto mais a mãe reconhece o valor do pai, mais o filho se aproxima dos dois. Se o pai afasta a mãe, o filho tende a se afastar do pai, pois o filho não se sente reconhecido em sua necessidade pelo pai. O pai pode até ganhar o processo, mas perde o coração do filho”, pondera. A técnica, na Bahia, já é aplicada nas cidades de Itabuna, Canavieiras, Ipiaú e Irecê. Em Salvador, ainda não há magistrados utilizando a técnica de restauração familiar, pois não é um programa oficial do TJ-BA. Em outros estados, a prática vem sendo fomentada pelos tribunais. Para isso, é necessário capacitação dos magistrados e servidores. “A medida facilita a conciliação, independente de se manter o casamento. Faz com que os pais olhem para o futuro dos filhos de forma harmoniosa, que olhem para as necessidades deles juntos. Eles podem ter até dificuldades entre si, mas quando se trata dos filhos, é necessário que se entendam”, sentencia o magistrado, que reforça que nem todo conflito será resolvido pelo Judiciário. Com a constelação, Sami afirma que as conciliações são mais efetivas e cumpridas. Outra forma de lidar com esses conflitos é através das oficinas de parentalidade, feita com os pais que estão se separado, para lidar com a divergência, de forma a não prejudicar os filhos. E não prejudicar os filhos, é tudo o que ela mais quer. Ela deseja participar da criação das crianças, permitir que, através da mudança de guarda, o pai tenham contato regular com os menores e que alienação se encerre para não ter mais que ler o bilhete deixado pela filha na última vez em que ela a viu: “não se esqueça de mim”.