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Morte de Lucas Terra completa 18 anos e caberá ao STF decidir se haverá júri de pastores

Por Cláudia Cardozo

Morte de Lucas Terra completa 18 anos e caberá ao STF decidir se haverá júri de pastores
Foto: Reprodução/ TV Bahia

O jurista Ruy Barbosa já dizia que "justiça tardia não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”. E esse é o sentimento que a sociedade tem sobre o assassinato do jovem Lucas Terra, que ocorreu no dia 21 de março de 2001, quando ele tinha apenas 14 anos. O corpo do adolescente foi encontrado carbonizado em um terreno baldio na Avenida Vasco da Gama, em Salvador. O crime completa 18 anos nesta quinta-feira (21) e permanece sem um desfecho, apesar de já haver um condenado: o pastor Silvio Galiza. Galiza foi julgado em dois júris populares: no primeiro, foi condenado a 23 anos e cinco meses de prisão. Por ter recebido uma pena superior a 20 anos, teve direito a um novo júri. No segundo, ele foi condenado a 18 anos de prisão. Recorreu, e a pena foi reduzida para 15 anos. O pastor, atualmente, está em liberdade condicional. A condenação foi por homicídio qualificado: motivo torpe, cruel, sem possibilidade de defesa da vítima, além de tentativa de ocultação de cadáver. 


De acordo com o promotor de Justiça Davi Gallo, que acompanha o caso desde o segundo júri de Galiza, apesar dos indícios, não há como cravar que houve crime sexual contra o menor. Ele conta que, em 2008, os dois pastores Fernando Aparecido da Silva e Joel Miranda foram denunciados pelos mesmos crimes que Galiza: homicídio qualificado por motivo torpe, cruel, sem possibilidade de defesa da vítima, além de tentativa ocultação de cadáver. Essa denúncia foi ofertada à Justiça a partir de depoimentos do pastor condenado, em 2006. 


A ação penal, de 8 de janeiro de 2008, diz que a motivação do crime foi torpe, como vingança “decorrente da recusa da vítima em ceder aos propósitos libidinosos dos denunciados e do sentenciado Silvio Galiza”. Nos termos de declaração, Galiza diz que resolveu contar a história cinco anos depois do crime, pois foi acusado injustamente, sendo inocente, e que nunca confessou o delito, pois “não tinha nada para confessar”. Disse que seu único erro “foi omitir os fatos e os nomes das pessoas que verdadeiramente mataram Lucas Terra”. Contou que recebia da Igreja Universal do Reino de Deus na época uma ajuda de custo mensal de R$ 1,5 mil, destinada para sua família, e que foi ameaçado pelos denunciados e por isso ainda não havia contado a verdade. Afirmou que não sabia o motivo pelo qual os denunciados mataram Lucas Terra, não sabendo se houve abuso sexual do menor. Em um depoimento, dado em janeiro de 2006, Galiza afirmou que ouviu falar que o motivo da morte do garoto era pela insatisfação do pessoal da igreja “pelos golpes que o pai de Lucas Terra já vinha dando em algumas igrejas”. Em outro depoimento, dado em maio de 2008, Galiza diz que a vítima contou ter presenciado uma relação homossexual entre os pastores Fernando Aparecido e Joel Miranda e que Lucas não falou a ele que os pastores o tentaram molestar. 

 

Em novembro de 2013, a juíza Gelzi Almeida Souza, do 2º Juízo da 2ª Vara do Tribunal do Júri de Salvador, julgou improcedente a denúncia para levar os pastores para julgamento em um júri popular. Nas palavras da magistrada, “a prova colhida é estéril”. Para a juíza, se tirar as declarações de Galiza do processo, não haveria nenhum indício contra os denunciados e a reconstituição do crime por parte do MP foi feita com base na versão das declarações do pastor condenado feitas ao Ministério Público. A juíza, na época, assinalou que muitos depoimentos, inclusive o de Galiza, se contradizem. “Outro fator importante é que a denúncia narra fato que nem as declarações de Silvio Galiza trazem, e que são imputados aos denunciados, ou seja, não têm indícios probatórios também”, diz trecho da decisão. A magistrada também destaca que o sistema processual penal brasileiro “não aceita o depoimento de corréu, quando solitário, ou seja, quando único elemento não existente nos autos, sem apoio em outros elementos probatórios”. Ela ainda classificou as declarações de Galiza como “contraditórias, inverossímeis, frágeis, e até fantasiosas”, com o propósito de “eximi-lo da responsabilidade da condenação que já lhe foi imposta”. 


O Ministério Público recorreu da decisão. No julgamento ocorrido em setembro de 2015, na 2ª Turma da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), foi modificada a decisão da Vara do Tribunal do Júri para levar os acusados a julgamento por homicídio por motivo torpe, cruel, sem defesa e ocultação de cadáver por ter presenciado uma relação sexual entre os denunciados. A relatora, desembargadora Nágila Britto, pontua no acórdão que os laudos “dão credibilidade” ao relato de Silvio Galiza de que o crime foi cometido por mais de uma pessoa e “não há elementos que afastem de plano a autoria dos dois acusados”. Ainda sinalizou que na época do crime, Galiza não possuía carteira de habilitação e que, diante das características da caixa em que o corpo do jovem foi transportado para um terreno baldio na Avenida Vasco da Gama, a ação contou com a ajuda de mais de uma pessoa. 


A defesa dos pastores apresentou embargos de declaração, que foram julgados em dezembro de 2015. Nos embargos, a defesa afirmou que havia omissões e contradições no acórdão, por relatar fatos divergentes do contido na denúncia quanto à motivação e circunstâncias do crime, e a ocorrência de nulidade durante a sessão de julgamento, pelo fato do assistente de acusação ter apresentado uma versão inédita para o caso. A Procuradoria de Justiça, na época, se manifestou pela anulação da sessão de julgamento, pois a assistência de acusação levantou uma tese “completamente dissociada dos autos ao afirmar que a vítima possivelmente permaneceu em cárcere privado do dia 21/03/2001 até a madrugada do dia 23/03/2001, quando foi queimada viva, o que causou prejuízo à defesa dos embargantes”. A defesa destacou que a denúncia foi motivada pelo fato da vítima ter presenciado uma relação sexual entre os pastores. Os embargos, entretanto, foram rejeitados. A turma entendeu que, na verdade, a defesa tentou reabrir uma discussão de mérito do acórdão e pronunciou os réus para júri popular, usando um “jogo de palavras” para distorcer os fatos, uma vez que o acórdão “não apresenta motivação diversa, limitando-se, apenas, a transcrever as declarações prestadas pelo pastor auxiliar Sílvio Galiza”.


A defesa dos pastores manejou novos recursos. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), o pedido foi negado. O caso foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF) e é relatado pelo ministro Ricardo Lewandowski. Em um primeiro momento, o relator negou o recurso dos acusados. Em novembro de 2018, o ministro reconsiderou sua decisão. Lewandowski anulou o acórdão do TJ-BA por considerar que faltou fundamentação para dizer quais as “circunstâncias qualificadoras descritas na denúncia”, sobretudo sobre o motivo do crime “e a utilização de recurso que impossibilitou a defesa da vítima”. Entretanto, o ministro rejeitou os pedidos da defesa de que o acórdão teria se afastado da denúncia, “alterando substancialmente a acusação, ao considerar como verdadeira a versão apresentada pelo sentenciado Sílvio Galiza”, de que a vítima foi morta por ter presenciado uma relação entre os pastores, sendo que a denúncia indica vingança por não ceder “aos propósitos libidinosos dos denunciados”. O relator afirmou que o trecho é apenas uma referência cronológica do crime.


A partir de um novo recurso, desta vez interposto pelo Ministério Público Federal (MPF), a 2ª Turma do STF julgará se o acórdão do TJ-BA deve ser anulado ou não. O MPF afirma que não é “razoável” anular a pronúncia para júri dos acusados, e que houve apontamento dos elementos das qualificadoras descritas na denúncia. O MPF sustenta que a perícia realizada, junto com prova testemunhal, comprovou que a vítima foi imobilizada pelos algozes, torturada e queimada viva. Ainda salientou que ficou comprovado que a vítima flagrou os dois pastores acusados mantendo relação sexual, além de não ter cedido ao assédio dos três acusados. O MPF também pontua que a anulação da pronúncia para que outra decisão seja proferida “conduzirá o crime inevitavelmente à prescrição, o que se afigura inconcebível, inclusive porque criará uma situação de impunidade, injustificável sob todas as óticas”. O julgamento virtual foi iniciado no último dia 8. A ministra Cármen Lúcia pediu vista no último dia 12. A turma ainda é composta pelos ministros Celso de Mello, Gilmar Mendes e Edson Fachin.


Fernando Aparecido e Joel Miranda | Foto: Arquivo Correio

ACUSAÇÃO

O promotor de Justiça Davi Gallo rechaça a decisão de Lewandowski de anular o acórdão do TJ-BA. Ele afirma que o ministro criou uma nova interpretação da questão ao determinar que haja individualização das condutas dos acusados para dizer especificamente o que Joel Miranda fez e o que Fernando Aparecido fez no crime. “Esse é um tipo de recurso protelatório e eu tenho certeza que a Turma do STF não vai acompanhar o relator”, afirmou o promotor.  Gallo mantém contato frequente com a família da vítima. Em fevereiro deste ano, o pai de Lucas, José Carlos Terra, faleceu sem ver a justiça ser concretizada no caso do filho (saiba mais aqui). “A família está decepcionada com a decisão de Lewandowski. Eu procuro uma explicação para essa decisão dentro do Direito e não consigo achar”, indignou-se Gallo.

 

O promotor afirma que não há provas suficientes para denunciar os acusados por estupro, mas destaca que no julgamento será abordado que o motivo para o crime foi sim sexual. Ele relata que, desde o acontecimento do crime, o MP já sabia que mais pessoas estavam envolvidas com o delito. “Já sabíamos que tinha duas pessoas envolvidas, mas não tínhamos como saber quem eram essas pessoas. A policia investigou, mas não conseguiu identificar. Só conseguimos identificar quando Galiza resolveu dar os nomes. Nós buscamos as provas e os denunciamos. Mas eu sempre soube que havia mais gente envolvida”, afirma ao ser questionado sobre o motivo da demora em denunciar os outros dois pastores. Ele refuta que o depoimento de Galiza quase cinco anos depois do crime tenha sido motivado por vingança contra os lideres espirituais da Igreja Universal, por tê-lo expulsado da congregação. “Chegamos a pensar nessa possibilidade, mas as provas que ele indica são verdadeiras e elementares. Não estamos baseando só no depoimento dele, é com base nas provas. O depoimento dele é uma coisa só. Mas foi pelas provas que os denunciamos”, reforça.

 

O temor da sociedade é que haja prescrição do caso. Mas o promotor afirma que ela ainda está longe de ocorrer, pois tem prazo de 20 anos, contado a partir de 2008, quando a denúncia foi recebida. Mas mesmo assim, o promotor diz que na medida em que o tempo vai passando, fica a sensação de impunidade. “A Justiça deve valer para todo mundo, seja os envolvidos de uma organização poderosa ou não”, pontua.

 

DEFESA

O advogado César de Faria, que defende Joel e Fernando, refuta que utilize os recursos como protelatórios, e que, assim como a família da vítima, quer que o caso seja resolvido. Ele considera o processo como teratológico – expressão utilizada no meio jurídico para definir algo como absurdo, anormal. Ele diz que utilizou todos os recursos previstos em lei e reafirma que “não existe crime sem motivo”. Ao contrário do promotor, Faria sustenta que a condenação de Silvio Galiza foi por pedofilia e que a denúncia contra os pastores da Universal indicam que os acusados “nutriam desejos lascivos” pela vítima e, por isso, o crime teria sido cometido por motivo torpe. O advogado também nega que os acusados tiveram uma relação homoafetiva e aponta que eles são casados e com filhos.

 

César afirma que Galiza somente deu a declaração anos depois para tentar se beneficiar com alguma progressão de pena. Tanto que atualmente está em liberdade condicional. O advogado afirma que o “crime foi um absurdo”, chocando toda sociedade, inclusive a ele mesmo. “Eu não defenderia os acusados se não tivesse absoluta certeza da inocência deles”, declarou. Também disse que é “compreensível os atos da família em busca de justiça” e como o processo acabou sendo alimentado ao longo dos anos. Ele lembra que, por quase seis anos, a juíza Gelzi Almeida conduziu a instrução do processo e entendeu que a “prova era estéril” e, portanto, não poderia mandar o caso para julgamento em um júri popular.

 

Diante da impronúncia, o MP recorreu. O advogado frisa que o MP fez uma acusação de pedofilia e que, no curso do processo, o assistente de acusação da vítima mudou para vingança pelo fato do jovem ter assistido a uma cena de relação sexual entre os pastores. César, que é especialista em processo penal, pontua que uma modificação da acusação feita pelo MP é passível de nulidade. “Para ele mudar a acusação, precisa aditar a denúncia, para não comprometer o contraditório”, explica. A decisão do TJ de reformar a decisão de 1ª Grau para declarar a pronúncia de júri foi uma surpresa para a defesa, pois foi feita “sem estabelecer a fundamentação idônea”. César de Faria pontua que há um equivoco ao dizer que ora o crime foi por pedofilia, ora em dizer que o adolescente presenciou uma cena e sofreu o revés como “queima de arquivo”.

 

Ele elogia a postura do ministro Ricardo Lewandowski por reconsiderar uma decisão anterior e dar provimento em parte ao pedido da defesa dos pastores. “Eu espero que o TJ-BA tenha a mesma grandeza de Lewandowski, porque inicialmente até não admitiu o recurso quando entramos com o agravo, mas ele percebeu e corrigiu o erro dele e anulou a decisão. O que ele fez foi anular a decisão do TJ. Ele não deu uma nova decisão”, frisou. Tal feito, conforme o advogado destaca, ocorreu por não haver “nenhuma fundamentação”. “Ele pediu ao TJ que indicasse a prova do crime e o TJ não vai poder indicar porque não tem prova. Ela só existe na mídia e nas palavras de Galiza, mas nos autos não tem e ninguém vai acreditar, em sã consciência, em um corréu, seis anos depois, condenado duas vezes, apresentando versões contraditórias”, avalia. O advogado aponta alguns pontos contraditórios nos depoimentos dados pelo condenado. “Galiza diz que o jovem chorava de soluçar antes de ligar para o pai para informar que dormiria na igreja. Mas o próprio pai afirma que não percebeu nada de diferente na voz do filho ao telefone”, diz. 

 

Para César, Galiza cometeu o crime de pedofilia sozinho, mas contou com ajuda de outras pessoas na tentativa de ocultar o cadáver. “Galiza é grande e o menino era franzino. Ele é forte, ele pode ter tido ajuda na ocultação do cadáver, até mesmo por uma pessoa que não sabia o que estava fazendo. O laudo mesmo diz que ele foi queimado em uma caixa de livros, em um terreno onde hoje é o supermercado Extra, na Vasco da Gama”, conta. O desejo da defesa era que o processo fosse encerrado e arquivado com a decisão de Gelzi Almeida, no ano de 2013. Ele diz que o sofrimento da família sempre foi compreendido, apesar de sofrer muitas vezes um tratamento não cordial por ser o defensor dos pastores. “Eu sei que quem perde um filho nas condições que eles perderam querem condenar o mundo, mas o processo em aberto maltrata a família e ninguém olha para os pastores. Eles já são condenados pela opinião pública, apontados como pedófilos”, declarou. Fernando Aparecido e Joel Miranda estão em liberdade e continuam realizando atividades religiosas em igrejas na Bahia.