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Entrevista

'A dificuldade na Bahia será grande', diz desembargador sobre criar juiz de garantias

Por Cláudia Cardozo

'A dificuldade na Bahia será grande', diz desembargador sobre criar juiz de garantias
Foto: TJ-BA

A criação do instituto “juiz de garantias” é um pleito antigo de muitos processualistas e criminalistas do país. A medida estava prevista para entrar em vigor nesta quinta-feira (23), mas diversas entidades alegaram que o prazo era curto e questionaram ainda uma possível inconstitucionalidade da lei. Apesar da eficácia da Lei Anticrime ter sido suspensa pelo ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), por tempo indeterminado, o debate ainda deve permanecer no meio jurídico brasileiro. Anteriormente, o presidente do STF, ministro Dias Tofolli, já havia suspendido a ‘vacatio legis’ por 180 dias. 

 

Ao Bahia Notícias, o desembargador Júlio Travessa, presidente da comissão para implantação do juiz de garantias por parte do Tribunal de Justiça (TJ-BA), avaliou a medida e as possíveis dificuldades para cumprir a norma no estado. O desembargador considera a novidade como positiva para ao sistema processual brasileiro. “Acho que, com dois juízes atuando em um processo criminal, a tendência é que o procedimento na primeira fase da persecução penal, ou seja, na fase pré-processual, ande mais rápido. A meu ver, não vai estimular a morosidade, muito pelo contrário, vai otimizar a celeridade, vai otimizar o devido processo legal, o princípio da duração razoável do processo. Quanto a questão de beneficiar políticos, eu não acredito nisso, porque se terá um novo juiz. Teoricamente, um vai fiscalizar o outro, um pode rever os atos do outro, ou seja, você vai ter dois magistrados lançando o olhar sob a mesma causa. Assim, acho que a tendência é melhorar”, declarou.

 

A criação do instituto 'juiz de garantia' é um pedido antigo de garantistas do país. Qual a importância desse instituto no sistema processual brasileiro? Esse é o melhor momento para sua implementação?

Eu vejo a implantação do juiz de garantias de uma forma muito positiva por consagrar a otimização dos princípios constitucionais. A Constituição Federal apresenta diversos princípios que norteiam a persecução penal, como o da ampla defesa, do contraditório, do devido processo legal, da celeridade processual, da dignidade da pessoa – o mais importante deles, que norteia o sistema acusatório. O que o sistema acusatório exige da justiça criminal? Que as tarefas sejam divididas: quem investigou não pode julgar, quem acusa não pode investigar nem julgar, e quem julga não pode investigar e nem acusar. Nós já temos essas figuras no ordenamento jurídico, nós temos o delegado de polícia e outras instituições, e outros membros de outras instituições que fazem esse papel, como coletar elementos que denotem a prática de crimes e, que, com base nesses elementos informativos, essas autoridades compartilham com o Ministério Público, que é o senhor da ação penal, que faz a acusação. Nós temos a defesa, através da advocacia e da Defensoria Pública, e a Constituição inclusive 'consagra o advogado essencial à administração da justiça', e tem o Poder Judiciário que julga. Então, teoricamente, o sistema acusatório estaria implantado e sendo respeitado. Hoje, nós vemos autoridade policial investigando crimes, Ministério Público fazendo a denúncia, e o juiz julgando. Só que a exigência do sistema acusatório vai mais a fundo. No caso específico do juiz de garantias, o questionamento é o seguinte: a doutrina entende e hoje a lei já consagra isso. A lei diz que o juiz que praticar atos acautelatórios - ou seja, que pratica atos na fase pré-processual, que é uma fase anterior à fase da ação penal - não tem isenção para julgar aquele processo. O legislador entendeu que o juiz que pratica atos na fase pré-processual e julga o processo está contaminado com aquele conteúdo da fase, que a lei chama de elementos informativos, colhidos na fase de informação, que não passaram pelo filtro dos princípio do contraditório e da ampla defesa. Ou seja, são conteúdos que se o juiz se basear para condenar, essa decisão é nula. O juiz de garantias veio para isso, ou seja, é o que pratica todos os atos da fase pré-processual, decreta prisão preventiva, decreta prisão temporária, converte flagrante em preventiva, determina as medidas acautelatórias, sequestro de bens, busca e apreensão A função do juiz de garantias vai ser essa e levar o caso, assim que concluir tudo, para o MP oferecer a denúncia para o juiz da instrução. Ou seja, o juiz da instrução não vai saber de nada, ele não pode nem ter acesso ao conteúdo preliminar. Eu vejo de uma forma muito positiva. Vejo que, de agora em diante, não vão mais poder dizer que o juiz que julgou o processo não está agindo com imparcialidade.

 

Agora, eu tenho uma certa dificuldade de entender como o instituto da absolvição sumária vai ficar inserido nesse contexto. Tem um instituto no Código de Processo Penal que diz que o juiz pode absolver sumariamente o acusado, ou seja, antes da instrução, se o caso se encontrar em uma daquelas hipóteses do artigo 397. Absolvição sumária pressupõe ação penal, pressupõe ação em andamento, e só tem processo quando a denúncia é oferecida e quando o juiz recebe a denúncia, no caso aqui do tribunal ou de qualquer Corte. Com qual o parâmetro esse juiz de instrução, que não teve acesso ao conteúdo preliminar, vai absolver sumariamente? Ou esse instituto vai desaparecer do Código de Processo Penal ou vai deixar de ser absolvição sumária. Porque absolvição sumária sem processo, para mim, é um contrassenso grande.

 

Já existe essa figura do juiz de garantias em outros países?
Pelo que eu sei existe na Itália, na Alemanha, México também. E deve existir outros países.

 

A medida pode trazer morosidade no julgamento de ações penais e favorecer políticos?
Eu acho que não. Acho que, com dois juízes atuando em um processo criminal, a tendência é que o procedimento na primeira fase da persecução penal, ou seja na fase pré-processual, ande mais rápido. A meu ver, não vai estimular a morosidade, muito pelo contrário, vai otimizar a celeridade, vai otimizar o devido processo legal, o princípio da duração razoável do processo. Quanto à questão de beneficiar políticos, eu não acredito nisso, porque se terá um novo juiz. Teoricamente, um vai fiscalizar o outro, um pode rever os atos do outro, ou seja, você vai ter dois magistrados lançando o olhar sob a mesma causa. Assim, acho que a tendência é melhorar.

 

Se a lei for declarada constitucional, como vai se a implantação aqui no TJ-BA, diante dessa falta de juízes, sobretudo no primeiro grau?
Aqui na Bahia, vamos ter que encarar o interior de formas distintas: as comarcas grandes no interior, que têm mais de uma vara criminal, aí a solução é mais prática: por se ter duas varas criminais, um será juiz de garantias, o outro atuará como juiz instrutor e vice-versa. A dificuldade que nós vamos encontrar é naquelas comarcas que só têm um juiz criminal, que não é jurisdição única, ou seja, que têm duas varas, uma vara cível e apenas uma vara criminal; e nas comarcas em que a jurisdição é única, só tem um juiz para tudo. Estamos pensando, o grupo está desenvolvendo ideias para construir varas regionais de juízes de garantias.

E como vai funcionar essa vara regional?
Funcionaria da seguinte forma: nós aproveitaríamos a estrutura da própria comarca, com treinamento dos serventuários para isso. A polícia teria que cumprir o seu papel, de toda vez que houver situação em flagrante delito, o preso deve ser encaminhado logo para o juiz de garantias. A dificuldade na Bahia será grande, pois não podemos colocar varas em todos os locais. A Bahia é muito grande, então tem comarcas com distância de 300, 400 km. Agora, se o CNJ rever a questão da videoconferência, e a Policia Civil tiver esse equipamento, de imediato, assim que o cidadão for autuado em flagrante, que expirar aquele prazo de 24 horas, e começar a contar o prazo de 24 horas para que o juiz de garantias avalie aquele auto de prisão em flagrante, e isso pode ser feito via videoconferência. Fazendo isso, o juiz entrevista o preso, o avaliando, vai ler o auto de prisão em flagrante, que pode ser encaminhado através de sistema eletrônico, que o interior já tem, e caso a prisão seja convertida em preventiva, o preso é encaminhado imediatamente para o presidio, porque hoje o preso provisório não pode ficar em delegacia, tem que ser encaminhado para um presídio. Aqui na Bahia, teoricamente essa ideia é fantástica, mas vamos ter que encarar uma realidade caótica de poucos juízes em comarcas de jurisdição única - acho que 30% de comarcas de jurisdição única com juízes. E a gente vai ter que contar com a colaboração dos juízes criminais que já têm as suas atribuições nas suas varas criminais. Vai ter que instituir um regime de plantão, porque isso tem que funcionar 24h, ininterruptamente. Vamos precisar de mais juízes, mais magistrados, de mais investimentos nesses polos regionais, e criar uma estrutura de assessores, porque a criminalidade não para, principalmente no tocante à Lei de Combate ao Crime de Drogas. Essa lei tem uma peculiaridade: o juiz de garantias vai atuar mais que nos outros processos, porque na Lei de Combate as Drogas, a denúncia só é recebida após apresentação da resposta. Aí, o papel do juiz de garantias vai um pouco além nesses crimes específicos. Nos demais crimes, não.

 

Sobre a videoconferência, qual o maior problema? O senhor havia me dito que o CNJ é contra a medida da videoconferência. Isso seria nas audiências de custódia, com apresentação do preso fisicamente para o magistrado?
À luz do Códigode Processo Penal, eu não vejo problema nenhum, contanto que aonde ele esteja tenha um advogado, ou se não tiver advogado, tenha um defensor público, e onde o juiz esteja também tenha um defensor público. É por isso que a gente vai precisar da ajuda de todos os atores do Sistema da Justiça, porque a problemática não está só nas mãos do Judiciário. Eu tenho certeza que a gente vai precisar que os outros atores, a advocacia, Defensoria Pública, Ministério Público e Polícia, também se preocupem com isso. Porque quando o tribunal disponibilizar essas varas, se os outros atores não estiverem em sintonia, não vai funcionar, aí vai acontecer o quê? Se a Polícia Civil não encaminhar o preso para o juiz de garantias naquele prazo que a lei prevê, o juiz não vai ter outra saída, ele vai ter que soltar, porque se ele não soltar ele está praticando o crime de abuso de autoridade. Como se vai exigir do magistrado esse esforço hercúleo? Como é que o juiz vai deixar de cumprir a lei e responder por um crime de abuso de autoridade? Ele vai ter que soltar, e às vezes a soltura desse criminoso, pela força da inércia de um desses atores, ou porque faltou um defensor, caso a gente consiga a videoconferência, ou porque o delegado não enviou, ou porque não tinha delegado na cidade... É um esforço em conjunto. Nós vamos fazer a nossa parte. O presidente interino, desembargador Augusto Lima Bispo, determinou a formação desse grupo. A depender, vamos ter que acelerar o concurso de juiz em curso, e quando esses candidatos forem nomeados, provavelmente serão direcionados para essa realidade de juiz de garantias. Agora, juiz não faz concurso só para julgar em vara criminal. Ainda tem a questão do limite prudencial, e não se pode colocar todo mundo na área criminal.

 

Como é que está sendo o diálogo aqui?
Formou-se esse grupo aqui no TJ-BA, com nove juízes que atuam no primeiro grau, já experimentados, que atuam na área criminal, alguns deles atuam nas Corregedorias. São juízes que conhecem o Direito Penal, o Processo Penal e a realidade da Justiça baiana. Esse diálogo vai acontecer de uma forma mais direta quando se definir o modelo, quando o presidente levar o modelo para o Pleno. Vou sugerir que a gente reúna esses juízes e comece a dialogar, ou através de seminários, ou através de videoconferência. Para você ter ideia, para a gente dialogar com esses juízes, se não for através de videoconferência, pode complicar. Não se tem como obrigar o juiz a vir para a capital e teria custos de deslocamento para o tribunal. Tem que pagar diária, nem todo mundo tem família ou local para ficar aqui. As dificuldades são muitas.

 

Como é que vai ser criada a figura do desembargador de garantias, já que também tem muitos processos originados partir do segundo grau?
Aqui no tribunal, quais são os órgãos que julgam originariamente? O Pleno. que julga juízes; a Seção Criminal, que julga as demais autoridades, membros do Ministério Público, deputados estaduais, secretários de Estado e outros; e as Câmaras Criminais que julgam os prefeitos. A ideia que eu vou levar é: aqueles procedimentos criminais pré-processuais, ou seja, o que não tiver denúncia, o que não tiver ação penal em andamento, o Código de Processo Penal com instituto do juiz de garantia, no caso o desembargador de garantia, vai decidir. Ou seja, se tiver algum procedimento em que não tenha denúncia aqui, a missão dele vai acabar quando houver recebimento da denúncia. Havendo recebimento da denúncia, vai haver uma nova distribuição e um desembargador vai passar a ser o relator daquele caso. Obviamente, o desembargador de garantias vai se tornar impedido para julgar aquele caso concreto, ou seja, a lei só vai incidir naqueles casos em que não existe denúncia ainda. Naqueles casos em que existe denúncia, ou seja, quem estiver respondendo processo aqui, a lei não incide, porque a lei não retroage para beneficiar, ela atinge o caso concreto em andamento. A ideia é essa: o desembargador de garantias atua até o recebimento da denúncia, e caso o colegiado receba a denúncia, vai pra o Setor de Distribuição para um novo desembargador. Com a ação penal já instaurada, um desembargador vai funcionar como instrutor, e o desembargador de garantias não vai poder voltar no colegiado, ou seja, a missão dele acaba ali. Aqui no tribunal, vai ser muito fácil de ser implantado. Eu diria que esse modelo aqui, a meu ver, vai ser implantado sem precisar mexer na estrutura. Eu não vejo como não implantar o Código de Processo Penal em todos os foros.

 

Isso que eu iria perguntar, se no STJ e no STF também irão seguir essa mesma lógica...
Eu acredito que sim, porque o cidadão tem foro privilegiado, mas ele tem os mesmos direitos que o cidadão que não tem foro privilegiado. Essa ideia do foro privilegiado é uma ideia que parece extremamente vantajosa mas não é. Quando tem foro privilegiado, há instancias suprimidas, vou dar um exemplo aqui: um cidadão que não tem foro privilegiado dentro da estrutura jurisdicional brasileira, se ele for condenado pelo juiz de primeiro grau, ele pode recorrer no caso, para Justiça estadual, no Tribunal de Justiça né. Se o Tribunal de Justiça condenar, ele pode recorrer ainda para o STJ [Superior Tribunal de Justiça], como pode recorrer também para o Supremo Tribunal Federal. O cidadão teria duas instâncias para discutir matéria de fato, o primeiro grau, o juiz de primeiro grau que vai analisar o conteúdo fático, e o Tribunal de Justiça que coletivamente vai analisar a questão de fato. Agora, o cidadão que tem foro no TJ ele só tem uma instância que vai analisar a questão de fato, e no julgamento, o mais difícil é você analisar a questão de fato. Analisar a questão legal é muito fácil, mas analisar a questão de fato é muito complicado porque vai analisar com base em prova testemunhal, que é uma prova produzida que tem como ator de produção o ser humano, é uma prova que está sujeita a falibilidade, prova pericial que é uma prova que analisa conteúdo de fato, o perito pode lançar um olhar de forma equivocada. Então, imagine, esse cidadão que tem um foro no TJ, o advogado só vai ter oportunidade de discutir questão de fato aqui, porque quando for para o STJ é um recurso especial, só vai analisar, a grosso modo, se houver violação à lei federal, se for através de recurso extraordinário, só vai analisar se houver violação à Constituição Federal. Essa ideia de ter foro, do ponto de vista da estratégia da defesa, da otimização do princípio do contraditório e da ampla defesa, não é uma coisa positiva. Então, imagine, que além dessa desvantagem, você ainda suprime, no caso o desembargador de garantias, ou o ministro de garantias num órgão jurisdicional de segundo ou terceiro grau, quarto grau. Eu acho que deve ser implantado e por isso eu já vou sugerir ao TJ-BA a aplicação do Código de Processo Penal que consagra o juiz de garantias, no caso o desembargador de garantias.

 

O desembargador Lourival Trindade, eleito presidente do TJ-BA, é da área criminal. Isso facilitará a implantação do juiz de garantias, caso a lei seja mantida?
O presidente atual em exercício já vem priorizando isso. Ele deu uma resposta rápida, assim que começou a discussão sobre a implementação. O presidente atual, apesar de civilista, vem se empenhando, e eu tenho certeza que o presidente que tomará posse dia 3 de fevereiro também nos ajudará mais ainda, pois ele é um especialista na área criminal e conhece profundamente a necessidade da implantação desse modelo, conhece como ninguém os princípios constitucionais. Lourival é um defensor dos princípios constitucionais e, a meu ver, é um dos melhores desembargadores que temos, uma mente iluminada, uma pessoa que tem experiência incontestável na área criminal, tem votos brilhantes, que são paradigmas na ação criminal.