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Coluna

Tributo em Pauta: A não incidência do IPTU sobre imóveis alugados por templos religiosos

Por Anna Tereza Landgraf

Tributo em Pauta: A não incidência do IPTU sobre imóveis alugados por templos religiosos
Foto: Arquivo pessoal

No dia 17 de fevereiro de 2022, a nossa Constituição Federal de 1988 sofreu a sua 116ª alteração. Desta vez, foi acrescentado o § 1º-A ao art. 156 para prever a não incidência do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) sobre templos de qualquer culto, ainda que as entidades abrangidas pela imunidade tributária sejam apenas locatárias do bem imóvel (Emenda Constitucional n. 116).


A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) foi de autoria do ex-senador e ex-prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, sobrinho do bispo Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus. E, bem por isso, durante a discussão da proposta, deputados evangélicos trataram logo de esclarecer que a emenda não beneficiaria apenas este segmento religioso, mas também todos os demais. E é verdade!


A expressão “templos de qualquer culto”, que consta na nossa Constituição, deve ser interpretada de modo extensivo, como indicador de lugar onde os membros de uma religião praticam seus atos de espiritualidade. Não importa que se trate por igreja, terreiro, sinagoga, mesquita ou templo, pois prevalecerá sempre a situação fática que se demonstre apta à prática dos atos de culto religioso, ou seja, sua exata finalidade. 


O Mestre Sacha Calmon Navarro Coêlho bem registra, em um de seus festejados livros (Curso de Direito Tributário Brasileiro, da Editora Forense), que “o templo, dada a isonomia de todas as religiões, não é só a catedral católica, mas a sinagoga, a casa espírita kardecista, o terreiro de candomblé ou umbanda, a igreja protestante, shintoísta ou budista e a mesquita maometana”. O ilustre professor Paulo de Barros Carvalho, por sua vez, no seu Curso de Direito Tributário (Editora Saraiva) ensina que “a locução culto religioso abarca todas as formas racionais possíveis de manifestação organizada de religiosidade, por mais estrambólicas, extravagantes ou exóticas que sejam”. E, de tal modo, as edificações onde se realizarem esses rituais haverão de ser consideradas templos.


Mas, muito antes da Constituição Federal de 1988, já era possível observar a intenção do legislador de desonerar as atividades dos templos e, assim, estimular a liberdade de crença e prática religiosa. Vale, aqui, uma brevíssima viagem ao passado. 


Logo após a proclamação da República, que se deu em 15 de novembro de 1889, o aplaudido jurista baiano Ruy Barbosa redigiu o Decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890, que determinava, em seu art. 1º, que era proibido a autoridade federal, assim como a dos Estados federados, expedir leis, regulamentos ou atos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e criar diferenças entre os habitantes do país, ou nos serviços sustentados à custa do orçamento, por motivos de crenças, opiniões filosóficas, ou religiosas. 


Surge, então, a Constituição de 1891, que consolidou a separação entre a Igreja e o Estado, fazendo do Brasil um estado laico. Esta Constituição trouxe, ainda que implicitamente, a intenção do constituinte de desonerar as atividades religiosas, na medida em que proibia Estados e União de “estabelecer, subvencionar ou embargar o exercício de cultos religiosos” (art. 11, 2º).


A Constituição de 1934, por sua vez, estendeu a vedação de “estabelecer, subvencionar ou embargar o exercício de cultos religiosos” ao Distrito Federal e aos Municípios, entes políticos que não existiam até então. E a Constituição de 1937, assim como a de 1934, embora tenha feito menção à figura de Deus no seu preâmbulo, também reconhecia a liberdade de culto, desde que não contrariasse a ordem pública e os bons costumes.


Podemos verificar que as Constituições Brasileiras de 1891, 1934 e 1937, embora não trouxessem em seus textos a referência expressa a imunidade dos templos religiosos, estabeleciam uma imunidade tácita, na medida em que proibiam que o Estado interviesse nos cultos religiosos, seja para manter, subvencionar ou embaraçar o seu funcionamento. 


Eis que surge a Constituição de 1946, inovando ao reservar, pela primeira vez, um capítulo inteiro para os direitos e garantias individuais, considerando inviolável a liberdade de consciência e de crença (art. 141, § 7º). E, aqui, vale o parêntese para observarmos que o legislador tratou de proteger não só o direito de escolher ter uma religião, como também o direito de escolher não a ter, ao garantir a liberdade de consciência, que se traduz no sentido de não admitir crença alguma (ateus e agnósticos, por exemplo), e de aderir a valores morais e espirituais que não se confundem com nenhuma religião, como movimentos pacifistas que, apesar de defenderem a paz, não implicam qualquer fé religiosa. 


No que tange à liberdade de crença, esta Constituição inovou ao prever, desta vez expressamente, a imunidade tributária, com relação aos impostos, para os “templos de qualquer culto”, “desde que as suas rendas fossem aplicadas integralmente no País para os respectivos fins”, sendo este o marco inicial no ordenamento jurídico tributário constitucional brasileiro para garantir aos templos de qualquer culto a não incidência de impostos sobre seus bens, rendas e serviços.


A Constituição de 1967 (com as alterações da Emenda Constitucional n. 1, de 1969) manteve a imunidade tributária para templos de qualquer culto e, nos moldes das Constituições anteriores, também proibiu o Estado de estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos, dando um passo além para prever, expressamente, a colaboração entre o Estado e as organizações religiosas, no interesse público, especialmente nos setores educacional, assistencial e hospitalar. Era o Estado, ciente de sua incapacidade de atender todas as demandas da sociedade, desonerando aquelas organizações religiosas que tinham o propósito de desenvolver atividades na área educacional, assistencial e hospitalar (art. 9º, II).


Nasce, então, a Constituição de 1988, mantendo a garantia de expressão da fé religiosa em todas as suas dimensões, bem como a imunidade tributária dos templos de qualquer culto. Concentrando a análise no texto constitucional vigente, observamos que a imunidade dos templos de qualquer culto vem reafirmar o princípio da liberdade de crença e prática religiosa, insculpido no art. 5º, VI a VIII. Motivado pela legítima intenção de assegurar que nenhum óbice seja criado para impedir ou dificultar o direito do cidadão de escolher a sua crença e praticá-la, o constituinte tratou de poupá-lo do pagamento de impostos (art. 150, VI, “b”).


Apesar da intenção clara, algumas questões relacionadas ao alcance da norma imunizante foram levadas ao Judiciário. Uma delas, refere-se às características objetivas do imóvel utilizado para a realização do culto. No julgamento do Recurso Extraordinário 578562, o Supremo Tribunal Federal decidiu que cemitérios que são extensões de entidades de cunho religioso fazem jus à imunidade do artigo 150, VI, “b”, tratando-se de garantia desdobrada dos artigos 5º, VI, e 19, I, da Constituição. E não há como discordar, quando se tem em mente que o conceito de templo deve ser interpretado de forma extensiva para abranger locais onde se praticam manifestações religiosas, quer ritualísticas ou não, onde o intento explícito seja o de expressar essa ligação entre o ser humano e o transcendente.
Outra situação reportada ao Tribunal Superior foi a de imóveis vinculados à ordem religiosa, mas que não estão relacionados com as atividades essenciais do templo, como, por exemplo, imóveis alugados a terceiros. Como o texto constitucional não faz referência à titularidade do imóvel e a imunidade está direcionada ao templo, poderíamos concluir precipitadamente que, não havendo templo, o imposto seria devido, mesmo que o proprietário do imóvel seja pessoa vinculada à ordem religiosa. Entretanto, o Supremo tem atribuído uma interpretação mais ampla à norma para considerar imunes não só os templos e as atividades a estes vinculadas, mas a própria pessoa jurídica (organização religiosa), em todas as suas atividades (RE 325822).


E, nessa linha, muitas entidades religiosas também já tinham recorrido ao Judiciário, pleiteando o alcance da imunidade do IPTU aos imóveis por elas alugados para o desenvolvimento das atividades religiosas, posto que, na prática corrente do mercado imobiliário, a entidade locatária assume a responsabilidade do pagamento do imposto e, com isso, assume um ônus que contraria a intenção do texto constitucional, qual seja, a proteção da liberdade de crença e prática religiosa, colocada em nosso ordenamento como direito fundamental (art. 5º, VI a VIII, da CF/98). 


É certo que essa tributação poderia desestimular ou, em alguns casos, até mesmo impedir o exercício desse direito individual, que o legislador constituinte sempre buscou proteger. Basta lembrarmos, por exemplo, de toda a celeuma envolvendo a cobrança de valores exorbitantes de IPTU pelo Município de Salvador, que, se dificulta até mesmo o desenvolvimento de atividades com fins lucrativos, facilmente sufocaria as entidades religiosas. 


Diante desse cenário e da jurisprudência construída pelo STF até então, nota-se que a Emenda Constitucional n. 116 surgiu muito mais como uma forma de evitar delongas e demandas judiciais desnecessárias, do que para reconhecer um “novo direito”. Intuitivamente, até quem não entende muito do assunto, concluiria facilmente que não fazia o menor sentido negar a imunidade do IPTU para imóveis alugados pelas entidades religiosas.


Por fim, vale registrar que o processo de reconhecimento desta imunidade é semelhante ao que já é utilizado para o reconhecimento da imunidade quando se trata de imóveis próprios. A entidade religiosa deve apresentar um requerimento perante a Secretaria Municipal, acompanhado dos documentos exigidos para a análise (CNPJ, estatuto, ata de fundação, espelho do IPTU e contrato de locação) e aguardar a resposta da municipalidade.

 

*Anna Tereza Landgraf é advogada e professora. Especialista em Direito Tributário. MBA em Planejamento Tributário e em Gestão e Administração de Negócios. Membro da Associação Brasileira de Direito Tributário – ABRADT.