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O autismo que deixamos de ver

Por Firmiane Venâncio

O autismo que deixamos de ver
Foto: Arquivo Pessoal

Anualmente quando o mês de abril se inicia, retoma-se o debate acerca da conscientização mundial sobre o autismo. A ONU elege então alguns temas relevantes, normalmente relacionados à inclusão de autistas em diversos aspectos da vida em sociedade como educação, saúde, profissionalização, e assim, busca-se chamar a atenção para a necessidade de implementar políticas públicas para um grupo social cada vez mais crescente.

 

As estimativas apontam para um contingente de mais de dois milhões de pessoas com TEA (Transtorno do Espectro Autista) no Brasil. Esse dado pode ser ainda maior, porque, por se tratar de um espectro, o diagnóstico pode demorar um pouco para ser concluído.

 

Aliado a isso, uma carga de preconceito construída ao longo do tempo sobre o autismo pode dificultar a compreensão de que determinados comportamentos apresentados por crianças, jovens e adultos (sim, hoje em dia é comum diagnósticos realizados na idade adulta), encontram-se dentro do espectro e assim devam ser acompanhados.

 

No ano de 2018, a Defensoria Pública do estado da Bahia começou a desenvolver o projeto estágio especial, inédito dentro do sistema de justiça na Bahia, objetivando a inclusão de jovens com autismo no programa de estágio da instituição. Uma parceria com o Projeto Fama, que trabalha a preparação de autistas adolescentes e adultos na construção de habilidades requisitadas nessa etapa de vida (profissionalização e ingresso no mercado de trabalho), viabilizou a iniciativa.

 

O projeto de estágio especial levou um ano até que fosse concluída a formação das equipes dentro da organização, para recepção dos novos estagiários. Foi o tempo necessário também para dialogar com as famílias e fazê-las confiar seus filhos, durante quatro horas diárias, aos padrinhos e madrinhas (servidores/as e defensores/as públicos/as) responsáveis pela supervisão das atividades desenvolvidas nos setores.

 

As avaliações multi e interdisciplinares realizadas durante todo ano de 2019 mostraram resultados surpreendentes não apenas para os estagiários que melhoraram diversas habilidades sociais, mas também para suas famílias, especialmente para as mães desses jovens.

 

É que, majoritariamente, ainda são as mães aquelas que suportam a maior carga no cuidado de filhos com autismo, seja porque são deixadas por seus companheiros assim que um diagnóstico é fechado, seja porque permanece forte a divisão gendrada dos papéis sociais: então os pais normalmente vão buscar o sustento da família no espaço externo e as mães se incumbem das tarefas domésticas incluídas aí o acompanhamento das terapias necessárias ao desenvolvimento de uma pessoa com autismo.

 

Durante a execução do projeto que segue em expansão, duas situações marcaram profundamente esse recorte de gênero ao que Carol Gillingan nomeou de ética do cuidado (“a voz diferente”) aquela que valoriza sentimentos morais, como empatia, altruísmo e reconhecimento da conexão com o outro. A primeira delas, a de uma mãe que acompanhava seu filho até o estágio na Defensoria e ficava aguardando nas proximidades do prédio, caso alguma situação emergencial acontecesse, o que durou pouco tempo até que ela percebesse que o filho estava totalmente adaptado à nova rotina, algo muito importante para um autista. A segunda situação, foi a de outra mãe que ao ir buscar seu filho no estágio e ser perguntada como estava lidando com essa nova dinâmica, respondeu que estava feliz pelo filho e também por ela, pois pela primeira vez tinha tempo para si mesma.

 

De certo que a inclusão profissional dos estagiários com autismo foi importante também para os pais, um deles narrou a alegria de o filho ter feito diversas amizades no estágio e sair com os colegas de trabalho ao final do expediente às sextas-feiras, as pequenas alegrias da vida adulta que quem tem filhos com autismo deseja tanto experimentar. Mas indubitavelmente, é sobre as mulheres que a maior carga recai, por terem que adaptar ou abandonar suas carreiras profissionais, ou sequer poderem sonhar seus próprios sonhos.

 

Promover a ampla inclusão de pessoas autistas na educação, no trabalho, implica, portanto, num processo emancipatório coletivo que envolve mães, pais e as instituições públicas e privadas. No caso da Defensoria Pública da Bahia, o estágio especial atinge toda a sua estrutura organizacional que precisa aperfeiçoar cotidianamente seu olhar sobre as demandas de pessoas com autismo.

 

Há muito por ser feito, mas o compromisso de cada um de nós é fazer o que nos compete: como cidadãs, cidadãos, ter uma compreensão não preconceituosa em relação ao TEA, bem como, cobrar e apoiar a implementação de políticas públicas inclusivas para autistas. Num outro patamar decisório, é preciso que toda instituição pública ou entidade privada perceba os ganhos que a presença de estagiários e profissionais com autismo pode proporcionar para todo seu corpo organizacional.

 

O mundo do autista é repleto de valorosos saberes que o tempo e as convenções sociais dos neuro típicos nos expropriaram. Por isso, sem querer romantizar a realidade de quem vive ou convive com autismo, não tenho dúvidas de que a aproximação com ele pode nos possibilitar a retomada daquilo que se perdeu: talvez, o melhor de nós.

 

*Firmiane Venâncio é subsefensora pública geral da Bahia e doutoranda em estudos interdisciplinares sobre mulheres, gênero e feminismo pela UFBA