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Cabelos contra a pandemia

Por Rafson Saraiva Ximenes

Cabelos contra a pandemia
Foto: Divulgação

Escrevo esse texto no dia em que tomei uma decisão. Cortarei meus cabelos pela primeira vez desde o início da pandemia da COVID-19. Trabalho na área jurídica, notoriamente conservadora e preocupada, consciente ou inconscientemente, com a manutenção de significados e significantes conservadores. Sou ainda gestor de uma instituição, o que me coloca em posição política de representação. “Quando você vai cortar? Lembre que é Defensor Público Geral, você precisa manter uma certa aparência...”.


Faço uma leitura não tão usual sobre os signos dos espaços de poder. Para mim, era importante deixar os cabelos crescerem justamente pelo cargo que hoje ocupo. Há um motivo além da pandemia e outro inerente a ela. Começo pelo primeiro. A Defensoria Pública atua em favor daqueles que são mais assustados e excluídos pelos formalismos linguísticos ou estéticos. É contraditório que contrariá-los seja um tabu dentro da instituição.


O paletó, a gravata e a toga afastam, distinguem o homem comum da autoridade. Os cabelos também. Há evidente opção política na escolha do que seria um penteado “condizente com a dignidade do cargo”. Tenho certeza de que os caracóis dos meus cabelos chocam mais do que cabelos lisos e louros. Assim como um volumoso cabelo crespo chocaria muito mais do que o meu. Não por acaso, para que eu pareça respeitável, espera-se de mim cabelos mais curtos que os de outros brancos. Já dos homens negros, espera-se que usem a máquina zero.


Há ainda uma outra razão. Após a chegada da COVID-19, diversos serviços essenciais passaram a ser prestados de forma remota. Isso também ocorreu na Defensoria. Sabemos que isso causou transtornos para o nosso público, vítima de especial dificuldade de acesso a telefones e internet. Mas, era um sacrifício para que as pessoas apenas transitassem nas ruas quando estritamente necessário. Cortar o cabelo não é estritamente necessário. Como eu poderia, com a consciência tranquila, ir a um salão, enquanto pedia à população que não viesse tratar dos seus problemas jurídicos? Agora, a Defensoria volta a atender o público presencialmente, ainda que mediante agendamento prévio e com muitos cuidados sanitários. Posso abandonar as madeixas sem trair meus valores.


Encerro com uma reflexão. A mensagem de rigor no combate à pandemia, além da quebra de preconceitos, não seriam mais eficientes se todos os gestores, governadores, prefeitos, parlamentares, entre outros, também deixassem seus cabelos naturais? Acompanhar todos os cabelos crescendo e fugindo da estética tradicionalmente esperada evidenciaria a mudança de comportamento e quebraria preconceitos. Os símbolos podem oprimir ou libertar. Escolhi a segunda opção. Um amigo comentou que eu estava parecendo um artista. Concordei e me senti honrado. Usei o cabelo como linguagem e ninguém entende mais sobre signos, estética, democracia e liberdade do que os artistas.

 

*Rafson Saraiva Ximenes é Defensor Público Geral da Bahia

 

*Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do Bahia Notícias