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Impactos orçamentários e financeiros da Lei Complementar 173/2020 - Programa Federativo de Enfrentamento a Covid-19

Por Pedro Caymmi

Impactos orçamentários e financeiros da Lei Complementar 173/2020 - Programa Federativo de Enfrentamento a Covid-19

José Joaquim Calmon de Passos, eterno mestre que teria feito cem anos este mês, costumava lembrar que o Direito é o último vagão no comboio das mudanças sociais, sinalizando que o subsistema jurídico sempre é lento para acompanhar e normatizar as alterações que se processam no tecido social; no Brasil, como não cansamos de superar limites, temos agora um caso de lei que ficou ultrapassada ainda durante o processo legislativo, atropelada pela locomotiva da COVID-19. Tornou-se uma espécie de Inês de Castro, aquela que “depois de morta foi rainha”.

 

Trata-se do projeto de lei complementar originariamente concebido como o “Plano Mansueto”, em referência ao seu idealizador e atual Secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida. O que era um “Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal”, com a imposição, aos Estados e Municípios, de severo ajuste fiscal em troca de acesso facilitado ao crédito federal, se tornou a Lei Complementar 173, de 27 de maio de 2020, o “Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus”.

 

A LC 173/2020 traz, como medidas para esse enfrentamento, a entrega de recursos aos entes federados subnacionais e a suspensão de suas dívidas com a União e instituições financeiras, mediante a exigência de aplicação dos recursos resultantes no enfrentamento da pandemia e adoção de medidas de transparência que evidenciem essa situação.

 

É possível perceber, numa rápida leitura do texto sancionado, com vetos parciais, pelo Poder Executivo, que pouco restou da concepção original da lei. E nada mais razoável que isso, já que saímos de um quadro sócio-econômico em que a prioridade era a restruturação fiscal, como premissa da retomada do crescimento econômico, para um estado de calamidade pública, em que a elevação repentina e extraordinária das despesas com saúde se une a uma expressiva queda da arrecadação de receitas próprias, por conta do duplo efeito da COVID-19: os elevados custos médico-sanitários que demanda e a retração da atividade econômica decorrente das medidas preventivas de isolamento social.

 

A nova lei complementar, nesta perspectiva, se divide em três conjuntos de medidas, (1) a suspensão do pagamento das dívidas de Estados e Municípios com a União, instituições financeiras federais e entidades multilaterais de crédito, (2) a instituição de transferências legais de recursos para os entes federados subnacionais, na tentativa de equacionar a queda de receitas, e (3) alterações temporárias e permanentes no regime instituído pela lei complementar 101, de 2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

 

O primeiro eixo, que trata da suspensão dos pagamentos à União durante o exercício de 2020, contempla tanto as parcelas do refinanciamento das dívidas estaduais e municipais ocorrido no final da década de 90 quanto, no caso dos Municípios, os parcelamentos de débitos previdenciários efetuados em 2017, o Programa de Regularização dos Débitos Previdenciários dos Estados, Distrito Federal e Municípios (PREM).

 

Sendo o quadro atual de insuficiência generalizada de caixa pelos entes subnacionais, e necessitando estes de socorro financeiro federal, não faz sentido que paguem a União parcelas de dívidas e, ao mesmo tempo, recebam desta aportes para suprir inclusive este valor, em um inútil movimento financeiro.

 

Mais complexa é a previsão de celebração de aditivos entre os Estados e Municípios e instituições financeiras, na maior parte das vezes bancos estatais federais, para suspensão do pagamento das operações crédito durante o exercício de 2020. A lei complementar não determina a suspensão de imediato dos pagamentos, como faz com as dívidas federais, ainda que dispense, na celebração dos aditivos, os requisitos legais regulares para contratação de crédito pelos entes federados. Fica a expectativa de como será operacionalizada a celebração destes aditivos, e, principalmente, em que horizonte de tempo.

 

Outro ponto problemático da lei é a sua aplicação aos contratos de crédito firmados com entidades multilaterais, como o BID e o Banco Mundial. A lei complementar prevê, do mesmo modo, a “possibilidade” de celebração de aditivos, não obstante se saiba que essas entidades multilaterais, normalmente vinculadas a regulação jurídica específica em outros países, dificilmente o poderão fazer apenas com base nas permissões da lei brasileira.

 

Surge aqui, então, uma polêmica na construção da lei. O texto aprovado no Congresso Nacional previa, no caso de recusa da instituição de crédito em renegociar a dívida, que a União, ainda que obrigada a pagar na condição de garantidora, não poderia executar a contragarantia dos Estados e Municípios, geralmente na forma de retenções nos Fundos de Participação (FPE e FPM).

 

Na prática, os Estados e Municípios pediriam a celebração de aditivo postergando o pagamento das parcelas correntes, a entidade negaria por conta de sua própria regulação jurídica, e a União, então, assumiria o pagamento, sem poder exigir dos entes subnacionais, durante o exercício de 2020, que realizassem o ressarcimento dos valores pagos.

 

Ocorre que a ausência de previsão expressa de como a União refinanciaria essa dívida com Estados e Municípios, ainda que pudesse executar as contragarantias a partir de 2021, e o desconforto do Ministério da Economia em assumir este valor, calculado na ordem de dez bilhões de reais, levou ao veto presidencial deste dispositivo, o que significa que, fatalmente, tais operações continuarão ativas durante o período de enfrentamento da pandemia.

 

A instituição de transferências legais, ou “socorro financeiro”, a Estados e Municípios, por sua vez, acabou por se tornar o ponto central da lei complementar, em uma entrega direta de recursos na ordem de sessenta bilhões de reais. Após grande discussão e diversas alterações no critério de divisão dos recursos, se chegou à fórmula prevista no texto legal, com inevitáveis queixas de alguns entes federados que se sentiram prejudicados no processo. Chama a atenção aqui que estes recursos devem ser utilizados não só no enfrentamento médico-sanitário da COVID-19, mas, também, na necessária mitigação dos efeitos financeiros da pandemia, por meio de políticas assistenciais e de fomento econômico.

 

A transferência legal de recursos se revela absolutamente essencial no atual quadro de queda de arrecadação e despesas extraordinárias, pois apenas a União tem uma maior margem de manobra orçamentária, ainda que limitada, e pode, não existindo alternativa, obter recursos com dívida mobiliária, o que é vedado aos entes subnacionais.

 

A LC 173/2020 ainda condiciona expressamente a entrega dos recursos à desistência, pelo Estado ou Município, de qualquer questionamento judicial junto à União que tenha por causa de pedir, direta ou indiretamente, a pandemia da COVID-19; o que o governo federal mirou, aqui, são as ações propostas por alguns Estados e Municípios para suspensão judicial do pagamento de dívidas federais, a exemplo daquelas movidas pelos Estados de São Paulo e da Bahia no Supremo Tribunal Federal.

 

Outra exigência para a concessão do auxílio financeiro foi que, durante o estado de calamidade pública, fosse proibido o aumento de despesas com pessoal, de forma direta ou indireta, bem como a criação de despesas obrigatórias de caráter continuado não relacionadas ao combate à pandemia e sem prévia compensação financeira. Exige-se ainda que os Estados e Municípios não aumentem a despesa obrigatória acima da inflação, medida pelo IPCA, de modo análogo ao Novo Regime Fiscal ou “teto de gastos” da União, objeto da EC 95/2016.

 

O texto aprovado pelo Congresso Nacional previa uma série de exceções à vedação de aumento de pessoal, quanto a carreiras relacionadas a forças armadas, segurança pública, educação e saúde, entre outras, mas o dispositivo foi objeto de veto presidencial, previamente acordado com os governadores; deste modo, fica excepcionada apenas a criação de auxílios e vantagens para os profissionais de saúde e assistência, relacionados ao combate à COVID-19.

 

As alterações na LRF, por fim, a par de algumas de caráter permanente, referentes à disciplina do aumento de pessoal em final de mandato e ao estado de calamidade pública, apenas adequam o quadro orçamentário-financeiro à realidade da pandemia, excluindo temporariamente dispositivos que, por sua natureza, são momentaneamente inaplicáveis, como os requisitos para geração de despesa e renúncia de receita, recebimento de transferências voluntárias e contratação de operações de crédito.

 

A LC 173/2020, neste ponto, repete e amplia o que já previa a EC 106/2020, o “Orçamento de Guerra”, expressamente extensível a Estados e Municípios, de acordo com a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 6357.

 

É preciso deixar claro que essa suspensão excepcional das regras da LRF deve ser vista com cautela. Obviamente, é necessária diante do quadro anormal de calamidade que a COVID-19 traz, mas, como diz o próprio texto aprovado, só pode valer para os atos estatais direcionados ao enfrentamento da pandemia e não pode, em hipótese alguma, dispensar a transparência e a fiscalização.

 

Neste aspecto, a EC 106/2020 já exige que as despesas com a pandemia sejam objeto de programação orçamentária específica, com a criação de marcadores que as identifiquem, bem como que sejam identificadas em separado na prestação de contas anual e no relatório resumido de execução orçamentária.

 

A Lei Complementar 173/2020, assim, é uma lei moldada pelo seu momento histórico, assim como a EC 106/2020. Ela traz um remédio excepcional para uma situação excepcional, flexibilizando temporariamente as regras de responsabilidade fiscal e operações de crédito, e, ainda, instituindo um repasse federativo para tentar amparar os gastos públicos extraordinários em momento de baixa atividade econômica.

 

É um esforço louvável, fruto de um ajuste necessário e digno de aplausos entre os diversos entes federados e os Poderes da República. Cumpre apenas não permitir que se torne um instrumento para desconstrução do paradigma de responsabilidade vigente já há vinte anos, nem um atalho para a malversação de recursos.

 

*Pedro Caymmi é professor da UFBA, mestre em Direito, procurador do Município do Salvador e advogado.

 

*Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do Bahia Notícias