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A prisão temporária e seu desvirtuamento

Por Leonardo Bacellar da Silva e Thomas Bacellar da Silva

A prisão temporária e seu desvirtuamento
É uma imposição da estrutura democrática do poder que o sistema punitivo, como controle social formalizado, cumpra um dever de segurança jurídica das pessoas e de defesa social, cuja sustentação se opera através das medidas penais, nomeadamente da prisão (como sanção penal ou providência cautelar, em benefício do processo, vale dizer, da apuração regular e imparcial dos fatos). Mas a Lei, infelizmente, não é o que diz o seu texto, e sim o que faz na prática.

As “Prisões Preventivas” e “Temporárias” têm figurado com frequência cada vez maior nos meios de comunicação social, em razão do crescente número de operações realizadas pela instituição da polícia judiciária (estadual e federal).

Sucede, todavia, que essas medidas cerceadoras de liberdade estão condicionadas ao atendimento de pressupostos e requisitos, legalmente previstos, que não podem ser desconsiderados ou desvirtuados, pelas autoridades, judiciárias ou policiais, encarregadas da análise de seu cabimento e execução, a fim de ensejar a mera “conveniência” das investigações e, também, conseguir, forçosamente, confissões e/ou delações premiadas.

De acordo com o Código de Processo Penal vigente, a prisão pode ter o caráter de pena, ou seja, de sanção a ser cumprida após a sentença penal condenatória transitar em julgado; ou de instituto de natureza cautelar (processual), aplicada antes do transito em julgado da sentença, para atender, primordialmente, as seguintes finalidades: assegurar a aplicação da lei penal, a regularidade da pesquisa dos fatos criminais ou evitar a reiteração de condutas criminosas. Nessa última categoria se enquadram as prisões preventivas e temporárias.

Toda a cautela tem de ser adotada no acionamento delas, uma vez que, consoante supramencionado, no momento procedimental de sua utilização, inexiste, ainda, sentença penal – condenatória ou absolutória –, encontrando-se em confronto diversos princípios e garantias constitucionais: de um lado, o direito da sociedade à elucidação dos fatos supostamente criminosos; do outro, as garantias e direitos individuais à liberdade, à intimidade, ao devido processo legal, à presunção de não culpabilidade (ou inocência) etc.

Em um Estado Democrático de Direito, tanto a condenação dos culpados quanto a preservação da liberdade e inocência dos acusados são de interesse social.

Reside, pois, na distinção equilibrada desses valores constitucionais a busca pela legitimação das prisões cautelares, as quais, apenas, devem ser utilizadas como medidas ultima ratio (quando outras menos gravosas não se mostrarem suficientes ou adequadas) na busca da persecução penal, a fim de se evitar que sejam convertidas em instrumentos de coação (física e psicológica) ou antecipação de pena.

Contudo, atualmente, difícil é verificar-se uma operação policial que não resulte em prisões (temporárias ou preventivas).

No que concerne à prisão temporária (Lei 7.960), entrou em vigor em 22 de dezembro de 1989, tendo como objetivo primordial por fim às famigeradas “prisões para averiguações” e assegurar a eficácia das investigações quanto a alguns crimes graves, consoante revela a sua Exposição de Motivos: “Muitas vezes o criminoso, em liberdade, coage a vítima, as testemunhas ou os agentes policiais, forja e adultera provas, perturba ou tumultua a investigação, prejudicando o esclarecimento da verdade real”.

Desde a sua entrada em vigor, essa Lei foi alvo de críticas e arguições de inconstitucionalidades (formais e materiais), mormente no que respeita a ofensas a direitos e garantias constitucionais do investigado.

Entretanto, o Supremo Tribunal Federal, analisando ADIn (Ação Direta de Inconstitucionalidade) proposta pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), infelizmente, declarou a sua constitucionalidade.

A prisão temporária tem as seguintes características e limitações: prazo certo e delimitado de 05 (cinco) dias prorrogável por mais 05 (cinco), ou 30 (trinta) dias prorrogável por igual período, em se tratando de crimes hediondos, tortura, tráfico de drogas e terrorismo, devendo ser desconstituída automaticamente ao término desse período; somente pode ser decretada durante a fase de investigação, nas seguintes hipóteses, art. 1˚ da Lei: I – quando imprescindível para as investigações do inquérito policial; II – quando o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento da sua identidade; III – quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado em determinados crimes graves.

É prevalente na doutrina e jurisprudência o entendimento de que para a decretação da medida temporária é necessário estar obrigatoriamente presente o inciso III e, além dele, uma das hipóteses dos incs. I ou II: ou é imprescindível para as investigações, ou o indiciado não possui residência fixa, ou não fornece elementos para a sua identificação.

Quanto à “imprescindibilidade” da prisão para as investigações, requisito usualmente invocado para fundamentar essa grave medida cerceadora de liberdade, não pode esta expressão ser confundida com “conveniência” para as investigações, como se tem feito, porquanto se estaria desvirtuando a finalidade dessa providência processual, e, consequentemente, ocasionando a banalização na sua utilização; a transferência do ônus da prova, do Estado para o indivíduo; a lesão aos princípios constitucionais da não culpabilidade (ou inocência), do devido processo legal, dentre outros ostentados na nossa Lei Maior.

Afigurasse-nos de irrecusável acerto e sabedoria a advertência de Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi, quando afirma que a prisão temporária “não deve ser utilizada como instrumento para facilitar o trabalho acometido à polícia, se não para viabilizar, imprescindivelmente, o prosseguimento das investigações criminais, no sentido (e abrindo o caminho) da aquisição de provas, que não têm como serem alcançadas estando o indiciado em liberdade, e desde que sejam indispensáveis para a formalização da denúncia”.

Essa é a única e verdadeira inteligência que se colhe do diploma legal que institui essa modalidade de prisão, reagindo contra uma política investigatória empírica, fundada em Maquiavel, de que os fins justificam os meios.

Do contrário é admitir que a polícia só sabe investigar prendendo.

Destarte, essa espécie prisão somente se torna legitimamente fundamentada em casos especiais onde a liberdade dos investigados represente um obstáculo ao esclarecimento do fato supostamente criminoso, suas circunstâncias e autoria. Contudo, lastimavelmente, isso não se tem verificado bastas vezes na prática forense.

Não raras vezes, sem respeitar a precisão terminológica da Lei e aos conceitos jurídicos fundamentais, se observa a aplicação dessa excepcional medida a casos onde as investigações transcorrem ao longo de anos (ou décadas) – muito além do prazo determinado em lei - sem que as autoridades (policiais ou fazendárias) encontrem o mais mínimo entrave ou empecilho no seu labor investigatório e, ao menos, tenham feito ou encaminhado intimações (ou qualquer outro expediente convocatório) aos investigados ou demais pessoas, para a apuração dos fatos.

Nesses casos, ao revés, frequentemente, se verifica que os investigados, no intuito de colaborar, espontaneamente, se apresentam e, ainda assim, teem privada a liberdade de locomoção, com a execução coativa.

Em outra vertente, não se justifica esse heteróclito encarceramento com o propósito de ouvir o indiciado ou investigado, a fim de que eles cooperem com as investigações, confessem crimes ou aceitem propostas de delação premiada, eis que existem outros meios legais e legítimos de o Estado procurar atingir essa finalidade (a exemplo da intimação, condução coercitiva etc.) e que, consoante já explicado, devem ser levados a efeito prioritariamente.

Demais disso, a Constituição Federal assegura, em seu art. 5 ˚, inc. LXI, o direito ao silêncio, sendo o ato de falar (ou calar) uma faculdade outorgada aos imputados, podendo a exercitabilidade desse direito ocorrer a qualquer momento durante as investigações ou processo criminal.

Não é concebível prender-se alguém para que exerça uma faculdade, tampouco se impor punição por não exercê-la.

Inadmissível é a prisão temporária servir de óbice à impostação do direito ao silêncio.

Ademais, não se pode obrigar, ou acossar, o indiciado a cooperar na apuração dos eventos, visto que, nos termos do art. 5˚, inc. LVII, da Constituição desta República, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (princípio da não culpabilidade ou presunção de inocência), competindo ao Estado o ônus da prova da acusação.

Nesse sentido, inclusive, determina o art. 156 do Código de Processo Penal: “A prova da acusação incumbirá a quem a fizer...”.

Existe uma presunção constitucional de não culpabilidade (ou inocência) que deve ser destruída pelo acusador, sem que o acusado ou indiciado tenha qualquer dever jurídico de contribuir nessa desconstituição. Caso assim não fosse, haveria uma inversão do ônus da prova e de todo o ordenamento processual-penal.


Para além disso, frequentemente, também, se constata um desvirtuamento da prisão temporária no momento da sua execução. Certas autoridades policiais manejam essa providência acautelatória como instrumento de coação (física e psicológica) do indiciado, a fim de obter sua cooperação, confissão de atos (sugeridos ou induzidos) ou aceitação do benefício da delação premiada!...

Não raro se escuta de autoridades interrogantes os seguintes dizeres: “Caso o senhor coopere com as investigações, representarei pela sua soltura após o interrogatório.”; caso não, continuará preso (entenda-se: permanecerá exposto às vexatórias e precárias condições do nosso sistema prisional).

Essa prática policialesca não pode se institucionalizar, pelos perigos que representa, indistintamente, para toda a coletividade...

Não pode a prisão temporária servir de veículo ou meio de violência, material ou moral, a ser posto em prática pelas autoridades e/ou seus prepostos, sob pena de incorrerem eles na previsão do art. 1˚, inc. I, letra “a”, da Lei de Tortura (Lei 9.455/97): “Constitui crime de tortura: I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fito de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa.”.

Consequência das mais graves desse desvirtuamento é lançar-se o nome de pessoas respeitáveis nos meios de comunicação de massa, em “manchetes”, com sensacionalismo malsão, à vista de todos, transmitindo a falsa ideia de que já se trata de uma condenação definitiva da Justiça.

Isso sem contar as não menos perniciosas notícias midiáticas veiculadas na internet (em blogs, sites etc.), que, não obstante os indiciados, posteriormente, venham a ser soltos ou absolvidos, continuam a publicizar tais prisões, constituindo uma sanção de caráter perpétuo...

Por isso, segundo matéria publicada pela Folha de São Paulo em 04/09/2011, a União foi condenada a pagar, de 2007 até a presente data, mais de R$ 1,6 milhão em indenizações por danos morais ou materiais a pessoas que foram presas por engano, ilegalmente ou que foram submetidas à exposição midiática excessiva.

A opinião pública é leviana e preguiçosa, e não desce a fundo para examinar a procedência das informações; por isso não tem a consciência de que não se trata de decisão definitiva, nem sobre o mérito da causa ou das acusações, mas, na verdade, de mera investigação, onde não se cogita, ainda, de discernir entre inocentes e culpados. É dos meios tutelares de defesa dos imputados que se trata nestas horas, e estes deixarão de proteger os inocentes, quando cessarem de proteger, indistintamente, os acusados.


LEONARDO BACELLAR DA SILVA é advogado criminalista e membro do Conselho Penitenciário da Bahia. 
THOMAS BACELLAR DA SILVA é advogado criminalista, diretor do curso de Direito da Universidade Católica do Salvador (UCSal) e ex-presidente da OAB-BA.