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Pessoas com deficiência contornam falta de acessibilidade e conquistam espaço no Carnaval

Por Ian Meneses / Lara Teixeira

Pessoas com deficiência contornam falta de acessibilidade e conquistam espaço no Carnaval
Montagem: Instagram / PSB

A lei nº 10.098 define acessibilidade como "possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, dos espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, das edificações, dos transportes e dos sistemas e meios de comunicação, por pessoa portadora de deficiência ou com mobilidade reduzida”. E nada mais justo do que todo e qualquer cidadão ter os seus direitos garantidos. Isso não pode ser diferente no Carnaval.
 

Este ano, duas pessoas fizeram história no pré-Carnaval de Salvador. Uma delas é Josimare de Cristo Reis, conhecida como Josy Brazil, primeira mulher cadeirante a se candidatar ao título da Deusa do Ébano em 40 anos d'a Noite da Beleza Negra do Ilê Aiyê. A outra é Everaldo Neres, primeiro deficiente visual a participar do concurso para o posto de Rei Momo.

 

Em conversa com o Bahia Notícias, Josy, que sofreu um acidente em 2017 em Milão, contou que o ocorrido impactou muito em sua auto-estima no ínicio e que ela se sentiu desnorteada pois nunca tinha tido uma relação com uma pessoa cadeirante. Isso fez com que ela se sentisse muitas vezes insegura sobre como iria continuar sua vida.

 

“Eu não tinha intimidade com nenhum cadeirante para poder saber como é que eles viviam e saber se eles tinham uma vida depois de uma lesão medular e estarem em uma cadeira de rodas. Isso me deixou muito assustada inicialmente. Eu pensei comigo e com meu irmão, que cuidou de mim: ‘pronto, o que eu vou fazer agora com a minha vida?’. Depois de um longo tempo insegura, ideias começaram a surgir e, devagar, eu fui retomando minha rotina”, revelou Josy.

 

Morando na Itália há cerca de 14 anos, Josy decidiu há sete meses voltar para Salvador e estar de volta à cidade despertou alguns desejos que sempre teve vontade de realizar. “Eu sempre quis sair no Ilê, representar a negritude como eu sempre fiz fora do país”, disse. A chance, no entanto, só surgiu após ela fugir da rotina na qual vivia no exterior: “Nunca tive a oportunidade de estar aqui, porque o trabalho sempre me chamou, sempre estive muito ocupada, principalmente no período de Carnaval”.

 

O fato de ser cadeirante não despertou em Josy o sentimento de incapacidade em concorrer na Noite da Beleza Negra. A vontade de representar falou mais alto e seu impedimento em andar foi superado pelas outras qualidades que ela acreditou possuir: “Eu sou negra, eu me considero negra, meus traços são negros, e eu busco a todo tempo lutar por essa questão. Eu já tenho esses requisitos e a única coisa é que eu não ando. Mas tenho os meus movimentos, o meu sorriso, o demonstrar a arte da dança afro, mesmo sem os movimentos das pernas”.

 

O fato de não ter vencido o concurso, pareceu, a princípio, o término de um sonho. Mas Josy não imaginava a surpresa que estaria sendo reservada a ela, justamente pela sua coragem.

 

Tudo começou quando ela recebeu o convite para concorrer ao título de rainha do Bloco Afro Muzenza. O convite surgiu de forma sutil e, sem notar qualquer intenção, Josy decidiu novamente participar de um concurso de beleza. O impacto de sua persistência como mulher, negra e cadeirante tomou forma durante um show da cantora Daniela Mercury. Por lá, sem nem desconfiar, ela se tornou a rainha do Bloco Afro Muzenza.

 

“Me convidaram para ir assistir a apresentação de Daniela Mercury, e eu sou muito fã dela. Aí eu pensei: ‘vou lá para vê-la e tirar uma foto com ela’. Eles me colocaram no palco e foi aquela emoção. Eu não sabia de nada, eu não tinha noção do que estava acontecendo, e quando eles decidiram foi daquele jeito”.

 


Josy Brazil se emocinou receber o título de Muzembela | Foto: Reprodução / Instagram

 

Detentora de um título de tradição, Josy acredita na força de sua imagem, que passará uma mensagem para toda a sociedade. “Sendo a rainha de um bloco tão conhecido como o Muzenza não traz apenas visibilidade para mim, mas para todos, para que as pessoas tomem mais cuidado com os deficientes, olhem de uma forma diferente”.

 

E completa: “Eu não queria que isso acontecesse apenas esse ano, porque eu estou sendo rainha, eu queria que isso fosse por muitos e muitos anos, que fosse sempre e que isso fosse porta de entrada para que essas coisas aconteçam e floresçam”.

 

EM BUSCA DA CHAVE DA CIDADE
Também pioneiro em outro concurso carnavalesco, o presidente da Associação Baiana de Cegos, Everaldo Neris, deu exemplo de que a vontade é mais importante. E a sua vontade era concorrer ao posto de Rei Momo falou mais alto. “Eu estava exatamente ouvindo noticiário e aí saiu uma nota de que estavam aberta as inscrições para concorrer ao Rei Momo do Carnaval de Salvador. Dei um estalo e resolvi colocar meu nome, independente de qualquer coisa, para ver qual ia ser a aceitação”, disse.

 

Essa aceitação, no entanto, causou uma certa frustração nele. No pós-concurso, que foi realizado no dia 16 de fevereiro, Everaldo percebeu que a repercussão dada ao fato poderia ser maior do que terminou sendo. “Esperaria que fosse realmente um impacto e confesso que fiquei frustrado por não criar esse impacto. Acho que minha candidatura como pessoa com deficiência pela primeira vez, ser candidato a um posto tão disputado e com tantos olhares... eu esperava que fosse mais badalada”, admite.

 


Ser cego não impediu Everlado de concorrer ao título de Rei Momo | Foto: Reprodução / Instagram

 

E desabafou: “A sociedade não deu o apoio necessário, ou até o que eu esperava, por conta da minha candidatura não ter sido tão badalada. Eu acho que faltou espaço para as pessoas verem um candidato a Rei Momo, uma pessoa com deficiência, buscando a inclusão. Eu esperei que as pessoas vissem a minha candidatura como diferente, no Carnaval que é plural”.

 

Com mais de 20 anos de presença em carnavais, Everaldo acredita que deve ser feito um trabalho para uma consciente acessibilidade humana, já que para ele a acessibilidade arquitetônica “fica até complicada, se tratando de uma festa como o Carnaval de Salvador”.

 

Ao ser questionado sobre o que faria se fosse eleito Rei Momo, Everaldo contou que representaria cada folião, independentemente dele estar no camarote, na corda ou na pipoca, e principalmente seria a voz de pessoas cegas, “mostrando ao mundo que a pessoa com deficiência é capaz de conviver em sociedade, dentro de qualquer espaço”.

 

TODOS À VONTADE NA AVENIDA
Ao se falar de acessibilidade no Carnaval, outro nome importante é a presidente da Associação Baiana de Deficientes Físicos (Abadef), Luiza Câmara. Ela é responsável pela fundação do Bloco Me Deixe À Vontade, proporcionando aos deficientes físicos, visuais e crianças portadoras de Síndrome de Down a possibilidade de curtirem o Carnaval de forma inclusiva e igualitária.


O Bloco Me Deixa à Vontade foi fundado em 1993 por Luiza Câmara | Foto: Reprodução

 

Completando 26 anos de existência do bloco, Luiza festeja a amplitude que a iniciativa tomou ao longo dos anos: “É o maior projeto de inclusão social de rua, é inédito no país. Além de dar visibilidade, ele derruba aqueles mitos e preconceitos de que a pessoa que tem deficiência tem que ficar em casa”.

 

Mas para conquistar esse espaço, Câmara explica que precisou superar as barreiras físicas – o que, como disse Everaldo, não é tão fácil. A lei nº 10.098 estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida, mediante a supressão de barreiras e de obstáculos nas vias e espaços públicos, no mobiliário urbano, na construção e reforma de edifícios e nos meios de transporte e de comunicação. Mas em uma festa com tanta gente indo de um lado para o outro, foi necessário montar uma estrutura maior. “Não faríamos algo sem segurança. Temos corda e uma assistência, com todos os familiares [participando]”, explica.

 

Ainda assim, os participantes enfrentam uma outra dificuldade para chegarem à folia: o meio de transporte. “A questão do transporte coletivo ainda não é eficiente. Dificulta para quem mora em bairros mais longe, para chegar até o Campo Grande, então não atende bem ainda”, lamenta. Mesmo assim, nada a desanima. “Eu tenho muito trabalho, mas com alegria. A vida é assim, você tem que ter competência. Não é porque eu estou na cadeira de rodas que eu não vou trabalhar”.
 

Ao comentar sobre o pioneirismo de Josy Brasil, Luiza definiu a atitude como “brilhante” e completou: “além dela ser cadeirante, ela está grávida, então é uma mulher que eu diria no sentido mais amplo da palavra”.