Usamos cookies para personalizar e melhorar sua experiência em nosso site e aprimorar a oferta de anúncios para você. Visite nossa Política de Cookies para saber mais. Ao clicar em "aceitar" você concorda com o uso que fazemos dos cookies

Marca Bahia Notícias

Notícia

Filmes, dublagens e parques temáticos entram na mira de protestos antirracistas

Por Marina Lourenço | Folhapress

Filmes, dublagens e parques temáticos entram na mira de protestos antirracistas
Foto: Divulgação

Já estamos acostumados  que a sinopse sirva como uma descrição sucinta, uma síntese ou um resumo de filmes, séries e livros. Mas ela vem ganhando companhia nos últimos tempos. Cresce o número de produções acompanhadas de alertas sobre o que plataformas de streaming chamam de “cultura desatualizada” — ou seja, um aviso de aquela obra pode desagradar determinados grupos e gerar reações negativas em cadeia nas redes sociais.

Foi o que aconteceu recentemente com o filme “...E o Vento Levou”, clássico de Victor Fleming, que foi retirado temporariamente da HBO Max sob a justificativa de que a obra romantiza a escravidão negra. Depois de sair do ar, foi anunciado que a obra voltaria acompanhada de um vídeo de contextualização histórica.

Semanas depois, foi a vez da Sky anunciar que botaria avisos em algumas de suas produções. A Disney+, que reúne centenas de produções cinematográficas e televisivas, adota esse mesmo modelo de aviso desde seu lançamento, em novembro de 2019. O alerta acompanha algumas das animações mais famosas da empresa, caso de "Dumbo", "Aristogatas", "A Dama e o Vagabundo" e "Mogli: O Menino Lobo".

“Esse programa é apresentado conforme foi originalmente criado. Ele pode conter representações culturais desatualizadas”, anuncia a plataforma nessas produções.

"Dumbo", por exemplo, recebe críticas por causa de uma cena em que o elefante se encontra com um grupo de corvos liderado por um personagem chamado Jim. O nome Jim Crow (em inglês, “crow” significa “corvo") ficou conhecido nos Estados Unidos do século 19 quando o ator Thomas D. Rice deu início à prática de blackface ao interpretar um personagem de mesmo nome. Além disso, entre o fim do século 19 e início do 20, o sul do país vivenciou leis segregacionistas raciais, conhecidas como Leis de Jim Crow. O corvo da animação, portanto, seria uma alusão a essa época — e, portanto, justificaria o aviso adicionado pela empresa no desenho.

“O que me deixa preocupado é esse excesso de julgamento da obra de arte. Isso se aproxima muito de censura“, diz o diretor Bruno Barreto, nome à frente de filmes como "O Que É Isso, Companheiro?" e "Última Parada 174".

Sua obra tampouco escapou das críticas. Seu filme “Crô”, lançado em 2013, tem como protagonista o personagem gay da novela "Fina Estampa" e recebeu uma série de críticas de pessoas LGBTs, que afirmaram que o filme reproduz estereótipos homofóbicos. O diretor se defende e diz que esse argumento é preconceituoso, já que ignora a existência de homossexuais com a mesma personalidade do protagonista, criado por Aguinaldo Silva e inspirado em papéis do comediante Jerry Lewis.

Segundo Barreto, vivemos "uma era pautada pelo exagero do politicamente correto", que cerceia a criatividade artística. “Para mim, nenhum grande artista está dentro de uma caixa. A arte tem que estar acima disso tudo”, diz.

“Não podemos esquecer que a Ku Klux Klan já foi retratada com heroísmo pelo cinema”, lembra Marcelo D’Salete, autor da premiada HQ “Angola Janga”, sobre o quilombo de Palmares. “Repensar essa iconografia é repensar a história propondo novas formas de ver, debater e sentir."

Mas não são somente produções audiovisuais que põem pólvora no debate. Embora não haja registro de terem sido tiradas de plataformas de streaming ou receberem contextualizações, músicas como “Ai que Saudades da Amélia”, de Ataulfo Alves e Mário Lago, “Loira Burra”, de Gabriel, O Pensador, são frequentemente criticadas pelo movimento feminista. A produtora Furacão 2000 chegou a ser condenada a pagar R$ 500 mil por causa da canção “Um Tapinha Não Dói”, do MC Naldinho, sob o argumento de que ela incitaria a violência contra a mulher.

“As pessoas têm uma ideia de que a liberdade é a ausência de responsabilidade. Mas, na verdade, liberdade envolve parâmetros de convivência”, diz o filósofo e professor Silvio Almeida, autor de "Racismo Estrutural".

Na opinião dele, defender a ausência de contextualizações em obras artísticas gera uma paralisia crítica que prejudica a formação de conhecimento. Ele classifica ainda a recente onda de alertas em filmes nas plataformas de streaming como “algo tardio”.

“Acho que não tem ninguém proibindo nada. O que está sendo discutido é que existe democracia e existem direitos civis”, diz a escritora e historiadora Lilia Schwarcz. Tanto ela quanto Almeida afirmam que a inserção de materiais críticos ao conteúdo da obra original não pode ser vista como censura.

“Eu estava [como curadora-adjunta] no Masp quando teve o Queermuseu. Eu brinco que essa foi a primeira vez que tive uma tarja preta no meu currículo. Isso sim é censura”, afirma Schwarcz.

A contextualização de obras é mais comum e consolidada na literatura. Editoras vêm há anos acrescentando notas de rodapé em livros que possam gerar leituras preconceituosas, como algumas obras de Monteiro Lobato, entre elas títulos da série do Sítio do Picapau Amarelo e “Negrinha”.

“Por que privilegiar uma história em que a tia Nastácia é subjugada e tem um autor notoriamente eugenista?”, questiona a escritora Bianca Santana, autora de "Quando Me Descobri Negra". Já o cineasta Bruno Barreto diz que cresceu lendo trabalhos do autor e que jamais teve essa interpretação de racismo nas histórias. “Se for assim, teremos que colocar um aviso ao lado dos quadros do [Paul] Gauguin?”, questiona.

Para acirrar ainda mais os recentes debates, que ganham mais tempero no bojo dos protestos antirracistas ao redor mundo, as atrizes Kristen Bell e Jenny Slate – ambas brancas – anunciaram na última terça-feira (24) que deixarão de dublar personagens negras. A atitude foi vista com bons olhos pela cineasta Sabrina Fidalgo. “É algo simbólico, elas entenderam o lugar de privilégio delas e estão dando espaço a atores negros.”

Na mesma semana, uma carta foi assinada por mais de 300 pessoas solicitando mudanças nas produções americanas. "Nós exigimos que Hollywood se afaste da polícia, de conteúdos contra negros; invista em nossas carreiras, em conteúdos antirracistas e em nossa comunidade", diz o texto.

A retirada de atrações extrapolou o mundo das artes e atingiu até os parques da Disney. A empresa anunciou que retirará o brinquedo Splash Mountain suas unidades na Califórnia e na Flórida, pois ele é inspirado no filme "A Canção do Sul", longa-metragem de 1946 que foi acusado de racismo tantas vezes que levou a empresa a cancelar o seu lançamento em VHS anos depois e que tampouco consta na plataforma de streaming Disney+.

Desde os anos 1940 que o filme é acusado de estereotipar a população negra e de açucarar as relações entre brancos e escravos nos Estados Unidos. No lugar da Splash Mountain, a companhia do Mickey decidiu homenagear a "A Princesa e o Sapo", animação do estúdio que foi lançada em 2009 e que traz a primeira princesa negra.