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Na pandemia, processos de alienação parental disparam, e lei é alterada

Por Carlos Petrocilo e Isabella Menon | Folhapress

Na pandemia, processos de alienação parental disparam, e lei é alterada
Foto: Reprodução / Mota Advogados

Ao longo da pandemia de Covid-19, os processos de alienação parental dispararam no Brasil. Foram 10.950 ações em 2020 em todo o país, de acordo com levantamento feito pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) --um crescimento de 171% na comparação com 2019.
 

No estado de São Paulo, dados fornecidos pelo Tribunal de Justiça (TJSP) mostram uma evolução de casos desde março de 2020, início da crise sanitária. São 154 processos em 2020, contra 471 ações no ano passado.
 

A lei, que está em vigor desde 2010, caracteriza como alienação parental quando o pai ou a mãe toma atitudes para colocar o filho contra o outro genitor. Entre os exemplos estão impedir o acesso e a convivência do filho, dificultar o acompanhamento das informações escolares e de saúde da criança e registrar uma falsa denúncia contra um dos responsáveis.
 

Especialistas condicionam a multiplicação de processos à pandemia, que intensificou problemas de convivência e financeiros, além de casos de violência doméstica.
 

A juíza Vanessa Aufiero da Rocha, da 2ª Vara da Família de São Vicente, afirma que "durante a pandemia muitos guardiões inviabilizaram a convivência física dos filhos com o outro genitor sob o forte argumento de desejarem proteger a saúde e a vida deles."
 

"Nesses casos, quando havia prova de alguma fragilidade do estado de saúde do filho, determinava-se a substituição temporária da convivência física pela convivência por videochamada a fim de se manter o vínculo", completa.
 

Para a advogada Flavia Panella Monteiro Martins, a escalada dos pedidos de divórcios e dos casos de violência doméstica também refletem nos processos de alienação parental.
 

"A convivência ficou ainda mais restrita ao lar e esses dados não são mera coincidência", diz Flavia, associada da Escola Brasileira de Direitos das Mulheres.
 

"Setenta por cento dos pedidos de divórcios são feitos por mulheres, ao passo que alienação parental é mais usada por homens", completou.
 

Silvia Felipe Marzagão, advogada e presidente da comissão de Família e Sucessões da OAB-SP, diz que no início da pandemia muitas decisões judiciais suspenderam a convivência com o outro genitor.
 

Apesar de uma considerável queda de ações já em 2021 (5.965 casos ante 10.950 em 2020), o levantamento do CNJ aponta que a taxa se mantém em alta desde 2014, quando foram registradas 401 ações.
 

No mês passado, o Senado aprovou mudanças em um projeto que modifica as regras de alienação parental. Um dos pontos mantidos pela nova lei estabelece que em casos nos quais o pai ou a mãe sejam investigados ou processados por violência doméstica, caberá ao juiz decidir se o suspeito de agressão poderá ter a guarda compartilhada ou não.
 

Para isso, ele deverá avaliar o que é melhor para a criança ou o adolescente. Uma possível condenação por violência doméstica, por exemplo, pode ser levada em conta pelo magistrado na hora de decidir, mas não há uma obrigação legal para que isso aconteça.
 

"Com as exclusões, a redação final proposta pelo Senado trouxe mudanças pontuais e os problemas permanecem", diz a promotora Valéria Scarance, do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo.
 

Para Flavia, essa medida prioriza a palavra do acusado e coloca a vida dos filhos em risco. "Mantiveram o que continuará sendo usado na defesa de homens agressores e abusadores", afirma a advogada.
 

"A alienação parental entrou no ordenamento jurídico sem muitos debates públicos, patrocinada por uma associação de pais (homens) separados, cabe apenas a sua revogação mesmo porque a proteção das crianças e do adolescentes está no ECA", conclui Flavia.
 

A juíza Vanessa, porém, diz que há pontos positivos no texto aprovado pelo Congresso. "A conjugalidade não pode ser confundida com a parentalidade. O fato de uma pessoa ter um relacionamento de casal conturbado não significa necessariamente que não possa ser um bom pai ou uma boa mãe."
 

A proposta, que foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) na quarta-feira (18), também assegura à criança e ao genitor a visitação assistida no fórum. Além disso, estabelece caso o magistrado precisa conceder alguma liminar, antes o filho deverá ser entrevistado por uma equipe multidisciplinar ou por um perito, que poderão ajudar na decisão.
 

"É importante dar voz às crianças e aos adolescentes [entrevista antes da liminar], isso está alinhado com a comunidade internacional", afirma a juíza.
 

Entidades que concordam com a lei afirmam que ela cumpre uma função pedagógica. Já os críticos alegam que ela se baseia em conceitos controversos e que estigmatiza mulheres. Isso porque a regra costuma ser mais usada por homens que respondem a processos de violência sexual, violência doméstica e falta de pagamento de pensão alimentícia.
 

Um relatório do próprio CNJ já apontou esse uso da lei de alienação parental como estratégia de defesa.
 

Foi isso que aconteceu com o ex-marido de Daniela (nome fictício para preservar a identidade da filha), condenado em segunda instância a 14 anos de prisão por estuprar a filha do casal, então com 2 anos de idade. O homem mantém uma página em que defende a lei nas redes sociais e reúne mais de 15 mil seguidores.
 

Enquanto a ação pelo estupro corria na Justiça, ele obteve autorização para manter contato com a filha. Daniela conta que a menina se recusava a sair com o pai, alegando medo.
 

Agora, mesmo com ele condenado depois de quase quatro anos, o casal ainda deve se enfrentar na Justiça em um processo de guarda compartilhada --e ele acusa a mulher de alienação parental.
 

A promotora Valéria Scarance relembra que casos como o de Daniela não são raros. "Já vi casos em que vítimas de crimes graves eram tachadas de alienadoras porque recusaram tentar uma aproximação com os agressores pais de seus filhos, como se fossem responsáveis pela rejeição da criança em relação ao pai."
 

Já Rodrigo da Cunha Pereira, presidente nacional do Ibdfam, argumenta que o mau uso da lei por alguns não deveria ser o motivo para discutir a sua possível revogação. "São casos particulares. Assim como acontece com a lei de alienação parental, a Maria da Penha também pode ter o mau uso e nem por isso deve ser revogada", afirma Cunha Pereira.
 

O dirigente considera ainda que se trata de um processo difícil de se comprovar, mas que, independentemente do resultado, é comum que o processo tenha um efeito pedagógico.
 

Silvia Felipe Marzagão, da OAB, também concorda que, apesar de se tratar de uma lei que acumula milhares de processos, é incomum a determinação judicial.
 

Há 21 anos atuando no direito, ela diz que só viu dois processos que condenaram, de fato, um dos genitores como alienadores.
 

Integrante do Conselho Federal de Psicologia, Marina Poniwas diz que o ideal seria o investimento em políticas públicas e estratégias voltadas para resoluções de conflitos.
 

"A lei não protege crianças e privilegia repressão e a punição como forma de resolução de conflitos e esse não é o caminho", diz ela.