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Do culto à Mãe D'Água à patrimonialização, Festa de Iemanjá celebra cultura ancestral

Por Jamile Amine

Do culto à Mãe D'Água à patrimonialização, Festa de Iemanjá celebra cultura ancestral
Foto: Jamile Amine / Bahia Notícias

Com a participação de baianos e turistas, gente de todas a cores e credos, além dos contrastes da liturgia e devoção das oferendas em contraponto ao descompromisso do profano expresso por como shows musicais e latinhas de cerveja, hoje a Festa de Iemanjá é um dos mais importantes eventos calendarizados realizados em Salvador. Ela, no entanto, remonta a uma tradição ancestral africana que cruzou o Atlântico e chegou ao Brasil através da diáspora e que, ao longo do tempo, foi reformulada.


“Se você vai para a África, Iemanjá é cultuada no período de colheita do inhame e tem uma ligação direta com a alimentação que envolve a cidade toda. Então, é muito próximo ao que a gente vê no 2 de Fevereiro. Não é o inhame, mas é o mar. Ela é o mar. Para além de qualquer coisa, vão estar relacionados os marisqueiros, pescadores, vendedoras. Existe um circuito de pessoas que está preservado”, explica Luciana de Castro N. Novaes, ialorixá, professora, historiadora, mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela Ufba e em Arqueologia pela UFS, além mergulhadora científica de águas profundas, doutora em Ambientes Aquáticos e doutoranda em Antropologia. 


Luciana lembra que, na capital baiana, o evento oficial está registrado na década de 1920, a partir da colônia de pescadores do Rio Vermelho, por intermédio da ialorixá Julia Bugan, com o objetivo de pedir por fartura nas redes. “Havia uma queixa de que não havia peixes, que reduziu essa quantidade, e aí uma mulher misteriosa aparece dentro desse contexto para indicar essa criação para a Mãe D’Água. O termo Iemanjá neste momento ainda não existe, mesmo que exista a nível pessoal. A forma que essas pessoas vão entender isso ainda é como Mãe Iara, Mãe D’Água, esses são os dois principais nomes”, lembra a pesquisadora, destacando que a festa soteropolitana nasceu e ganhou contornos específicos, frutos das tradições africanas. “O princípio de culto às águas é universal, é global, está em todas as culturas, mas a nossa relação com o culto às águas está genuinamente ligada ao panteão africano”, afirma Luciana. “Dentro dos meus estudos, Iara nunca existiu entre as sociedades indígenas. Iara é uma corruptela nominal que desdobra do termo Ipupiara, que é um monstro marinho. Os Tupinambás aqui do litoral da Bahia não tinham uma relação positiva com o mar. O mar, a praia, era um espaço, vamos dizer assim, selvagem, um espaço que não era domesticado. Eles moravam após os cordões de areia das nossas dunas. Então, essa relação com o mar em específico está diretamente ligada à diáspora africana e a um culto já milenar às águas, tanto na África Ocidental, quando na África Central, de onde vieram os maiores fluxos linguísticos para produzir civilização nesse território americano”, detalha.


A historiadora conta ainda que o Rio Vermelho não foi o único local da cidade no qual existia o culto à Mãe D’Água, e que isso ocorria em diversos pontos da Baia de Todos-os-Santos. “Você vai ver pequenas grutas ainda em Ondina; eu vi uma notícia tenho que confirmar se é isso mesmo, sobre uma perto do MAM; tem uma perto da Ribeira, ou seja, havia uma construção específica, que era a gruta de pedras na beira do mar, em que havia esse culto”, revela Luciana. “Isso é inédito. É um objeto de pesquisa que eu venho namorando há alguns anos. O que eu consegui até agora concluir é que essas casinhas de pedra marcam uma transformação, que é, de fato, o controle dessa manifestação religiosa na esfera pública como um marcador de tradição africana. Então, oficialmente, o presente a Iemanjá surge na década de 1920, entretanto, minhas pesquisas dentro desse mundo aquático estão mostrando, desde o final do século XIX, principalmente nas primeiras décadas do século XX, pela figura de Artur Ramos, que havia já uma devoção às águas na praia da Boa Viagem. O que ele comenta é que no posterior à festa, meninos iam para os arrecifes, os corais, para coletar de tudo um pouco. Pentes, espelhos, bordados, tecidos e cartas. Essas cartas é que me fazem compreender que existe mais que uma correlação do que uma ruptura entre esses momentos que vão ser ao longo do século XX”, acrescenta.

 


Historiadora e arqueóloga, Luciana de Castro recua no tempo para explicar a origem do evento | Foto: Paulo Victor Nadal / Bahia Notícias

 

RIO VERMELHO E O 2 DE FEVEREIRO
A consolidação do 2 de fevereiro como data e do Rio Vermelho como palco do que conhecemos como Festa de Iemanjá se deram por uma confluência de fatores, um deles o fato de neste período ocorrerem no bairro as festividades para Nossa Senhora de Santana. “No Rio Vermelho ganhou essa proporção, essa popularização, primeiro porque a gente está na parte litorânea fora da Baía de Todos-os-Santos, ou seja, já faz parte de um processo de extensão da cidade. A gente também tem que pensar que a festa surge através de pessoas, e a colônia de pescadores naquela região era algo forte, algo potente. A gente tinha ali a Casa de Peso, que hoje não existe mais e ficava perto da igreja de Nossa Senhora de Santana, havia um circuito complexo de trabalho, compra, venda. Fora que Nossa Senhora de Santana sempre foi muito popular, e foi uma freguesia também poderosa dentro desse contexto do final do século XIX”, explica a pesquisadora, destacando a conjuntura que favoreceu os contornos da festa. “Nesse sentido, o que acontece é que você transforma algo que é um princípio da vida humana, que é essa oferta, essa gratidão, conversação, em uma tradição. O que é uma tradição? Hora, dia, lugar, signos, é um conjunto. Então, a tendência é, de fato, difundir quando você tem algo organizado, seja uma festa ou uma ideia, um pensamento. Qualquer coisa, quando está muito redondo, acontece”, pontua.


Apesar da coincidência da data da festa com o momento em que se celebrava uma santa do cristianismo – hoje a festa de Nossa Senhora de Santana acontece em 26 de julho -, Luciana de Castro destaca que, entre 1920 e 1930, a Festa de Iemanjá adquiriu uma autonomia direta ao culto à orixá. “Você vê que o nome Festa de Iemanjá carrega uma nomenclatura iorubá que está dentro de um nome. É a única festa que não é sincrética. Não é a Festa de Nossa Senhora da Conceição da Praia, que você cultua Iemanjá, Oxum, Nanã. Não é o dia das mães ou o réveillon, que tem uma nomenclatura francesa. É a única festa que carrega na sua identificação pra quem é. Você vai lá não porque vai cultuar Nossa Senhora da Conceição, você vai para cultuar Iemanjá”, conclui.

 

EMBRANQUECIMENTO E APAGAMENTO DA HISTÓRIA
No ano passado a cidade vivenciou um momento controverso, após a prefeitura utilizar peças publicitárias nas quais a nomenclatura “Festa de Iemanjá” foi substituída por apenas “2 de Fevereiro”. Na ocasião, o Ministério Público estadual (MP-BA) recomendou que a administração municipal excluísse ou alterasse a propaganda (clique aqui). A promotora de Justiça Lívia Vaz defendeu que a manifestação é denominada como tal por conta de sua origem associada ao candomblé, e que, portanto, o desvirtuamento ofende a integridade dos legados cultural e identitário dos povos de terreiros de religiões afro-brasieiras. “Cabe ao poder público, portanto, preservar e garantir a integridade, respeitabilidade e a permanência dos valores da tradicional manifestação cultural e religiosa”, afirmou a promotora.


Diante da pressão, o poder público não só reverteu a propaganda, como a Justiça deu o pontapé inicial para que ela fosse reconhecida como Patrimônio Cultural de Salvador (clique aqui e saiba mais). “Precisava haver uma abertura de um processo que garantisse a patrimonialização da festa. Então, assim foi feito. Não foi por mim, mas outras pessoas importantes também se sentiram incomodadas com esse processo de desidentificação, de embranquecimento”, comentou a historiadora Luciana da Costa. “Você pode colocar seu palco, fazer sua festa, mas você não pode destituir este dia no calendário para nomear outra coisa”, acrescenta.

 


Propaganda da prefeitura reacendeu discussão sobre embranquecimento e desidentificação | Foto: Divulgação

 

APROPRIAÇÃO CULTURAL

Apesar de casos como o apagamento da identidade por meio de ações como a omissão de Iemanjá no nome do evento, Luciana destaca que nem tudo é apropriação cultural, mas grande parte das atitudes são fundamentadas pelo racismo estrutural da sociedade, expressas muitas vezes pelo desconhecimento e ignorância. “As pessoas que estão ali na Festa de Iemanjá, duvido muito que aquelas que pegam a fila, que vão deixar o presente ou colocar uma rosa estão em processo de apropriação cultural. Porque naquele momento ela está em uma relação íntima, pessoal, e não pública de massa, aparência ou estética. Ela está ligada aos seus desejos internos. Necessariamente, ela pode não estar em processo de apropriação cultural, mas ser racista”, avalia a historiadora. “O que eu penso sobre apropriação cultural é, por exemplo, transformar o 2 de Fevereiro, que é uma festa historicamente marcada pela liturgia, pelo religioso, como um festival musical. A apropriação cultural em festas públicas está para além das pessoas e alcança as empresas, que transformam isso dentro de uma lógica mercadológica e que negam”, explica a pesquisadora, definindo a apropriação cultural como “quando você transforma símbolos, signos e significados de uma outra cultura, dentro de uma interpretação que só atende a você, branco, e critérios não históricos”.


Citando o exemplo de mulheres que não são do Axé, mas se vestem de Iemanjá, ela pontuou que este é um momento de se observar. “Dentro desse específico ponto, é um momento de se pensar a apropriação cultural, porque quando se vende a festa, não se vende mais a festa. As redes sociais, o senso comum, o boca a boca vende como mais uma festa de largo, como mais uma lavagem, que é de fato a característica que da década de 1940 pra cá veio sendo construída”, avalia, destacando que a Festa de Iemanjá não pode ser entendida como propriedade de uma única religião, mas que é importante observá-la como festa pública com valor de patrimônio. Tendo isto em vista, ela explica que não existe um protocolo ou um “beabá” de como a pessoa se comportar para não ser racista, já que esta não é uma questão somente comportamental, mas também de consciência. “Pode ir de branco, colorido, pode ir de tudo, porque ali não é uma festa sagrada de caráter religioso particular, para uma religião específica, mas sim com contornos patrimoniais”, diz Luciana. “A gente percebe aquela pessoa que usa conta, a guia, o colar, porque é da religião, ou até simpatizante, ou aquele indivíduo que utiliza este dia para se fantasiar ou se integrar à multidão. No sentimento comunal, de partilha, já que a gente vive em ilhas dentro da cidade. Então as festas de largo e as lavagens têm esse principio da reunião da cidade. Você vai ver representantes de todos os bairros” afirma, lembrando que quem garante a manutenção da tradição, de fato, são as pessoas do Axé, os negros e pessoas com consciência étnico-racial. “A gente tem que parar de taxar o outro. Você não sabe o que está passando na cabeça daquela criança. Ela pode estar lá toda de sereia, de tudo, mas na cabeça dela é uma forma amorosa de relação. Agora, quando você abrir a boca, saiba falar, pra sua máscara não cair”, pondera.
 


Luciana destaca caráter íntimo no ato de participar de homenagem a Iemanjá Foto: Jamile Amine / Bahia Notícias

 

RACISMO INSTITUCIONAL 
Outro ponto importante destacado pela antropóloga é o racismo institucional, manifestado através campanhas, que podem até ser bem intencionadas, mas que não dão conta de explicar a amplitude da tradição e acabam incentivando o preconceito. Um exemplo disto é a mobilização para o uso de oferendas ecológicas, sem que haja a preocupação em deixar claro para a população que a Festa de Iemanjá nasce justamente pelo culto à água e está pautada também na preocupação com o meio ambiente. “A problemática está muito no nível da esfera das políticas públicas, porque, por exemplo, existe, concordo, faço na minha casa o pensamento de um presente ecológico. A tendência é essa, mundial, global, a preocupação com o meio ambiente. Só que a festa é, na verdade, uma valoração aos ambientes aquáticos, entretanto, há uma política pública voltada massificamente para se pensar no que vai se entregar à divindade Iemanjá. No entanto, eu não vejo medidas, durante o ano todo, que afetem outra comunidade que não a afro-baiana”, questiona a pesquisadora. “Não existe uma preocupação com o esgoto, com o sistema pluvial, não tem preocupação nenhuma em como reduzir a quantidade de material poluído no mar. Então, mais uma vez eu consigo visualizar isso como uma prática de racismo institucional, em que você condena uma determinada parcela da população, única vez no ano, para simplesmente falar de toda uma problemática industrial e empresarial”, conclui.