'Sem censura': Interpretação de 'obscenidade' e 'palavrão' gera debate sobre lei em Salvador
por Jamile Amine / Rodrigo Daniel / Matheus Caldas / Rebeca Menezes

Proposta pelo vereador Sidninho (Podemos) e sancionada pelo prefeito ACM Neto (DEM) no dia 4 de setembro, a lei “Infância sem Pornografia” proíbe “a divulgação e o acesso de imagens e músicas obscenas”, com o objetivo de “estabelecer o respeito dos serviços públicos municipais à dignidade, em especial, de crianças e adolescentes, pessoas em desenvolvimento e em condições de especial fragilidade psicológica”.
A lei em questão aplica-se a qualquer material impresso, sonoro, audiovisual ou de imagens, incluindo os didáticos, paradidáticos ou até cartilhas, que possam ser entregues ou ser acessados por crianças e adolescentes.
Para o dispositivo, será considerado “pornográfico” ou “obsceno” o material “cujo conteúdo descreva ou contenha palavrões, imagens eróticas ou de órgãos genitais, de relação sexual ou de ato libidinoso”. A exceção se dá apenas para “apresentação científico-biológica de informações sobre o ser humano e seu sistema reprodutivo”, respeitando a idade “apropriada”. Após sancionado, o texto deve ser regulamentado nos próximos 90 dias para que haja definição de quem terá a competência para a fiscalização. A multa em caso de descumprimento pode chegar a 20% do valor do contrato ou patrocínio, ou até sanções administrativas caso a infração seja cometida por um servidor público municipal.
Junto com a nova lei, vem o questionamento sobre a possibilidade de que, no futuro, ela seja interpretada de forma que possibilite alguma forma de censura pelo poder público, já que os conceitos de “pornografia” e “obscenidade” podem variar de acordo com o perfil ideológico do governo. Cartilhas de educação sexual voltadas para jovens LGBT+, por exemplo, poderiam ser consideradas inadequadas por políticos conservadores. No caso de Crivella, por exemplo, o prefeito e bispo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) argumentou que o beijo entre dois homens vestidos seria "conteúdo sexual" e que a sua iniciativa visava "proteger as crianças".
Na avaliação de Djalma Thürler, diretor teatral e coordenador do Curso de Especialização em Gênero e Sexualidade na Educação (UFBA/UAB/CAPES) e do NuCuS (Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas e Sexualidades), o episódio da Bienal do Livro no Rio de Janeiro expõe de forma clara “o heteropatriarcado que sustenta essa política e, claro seus posicionamentos contra a diversidade e as dissidências sexuais”. Para ele, é importante que a leitura sobre a lei não seja feita sem uma revisão crítica das noções de obscenidade, erotismo, pornografia, e sua relação com a moral, a estética e as ideologias dominantes. “Basta lembrar da exposição ‘Queermuseu’, em Porto Alegre (saiba mais aqui), e a performance ‘La Bête’, de Wagner Schwartz, no MAM, em São Paulo (entenda aqui) para se ter uma ideia do grau de histeria que os conservadores estão fazendo com a produção artística – e científica, também – não normativa”, exemplifica o pesquisador.
Thürler destaca ainda que a questão importante, de fato, não é a divulgação ou acesso de crianças e adolescentes ao que a lei chama de pornográfico ou obsceno. “Não criamos nossas crianças em bolhas, elas estão vivas em seus bairros e comunidades tendo, inclusive, suas subjetividades formadas, atravessadas por essas informações. É ingenuidade ou ignorância sociológica achar o contrário”, defende o artista. “E mais, pensar assim significa proibir que adolescentes de 13, 14 anos leiam poemas de Gregório de Mattos, o Boca do Inferno, patrono da Fundação Cultural do Município e quem dá o nome do principal aparelho cultural da prefeitura. Por isso, a frase dita pelo prefeito de Salvador em suas redes sociais, a de que somos a cidade da diversidade e que aqui é proibido censurar soa, no mínimo, paradoxal porque, se dos poemas de Gregório pululam palavrões, seria o poeta barroco censurado?”, questiona Djalma Thürler, fazendo referência ao anúncio do prefeito ACM Neto, de sediar a Bienal do Livro na capital baiana, em 2020 (clique aqui).
Procurados pelo Bahia Notícias, contudo, os secretários municipais de Educação (Smed) e de Cultura e Turismo (Secult), Bruno Barral e Cláudio Tinoco, respectivamente, não acreditam que a legislação permitirá censuras em eventos culturais e educativos da cidade.
Em resposta ao BN, a Secretaria de Comunicação do município garantiu que a gestão “defende a livre liberdade de expressão, de pensamento e de gênero, e já demostrou isso em diversos momentos, com ações práticas e defesas veementes dessa premissa” e avaliou que a legislação aprovada na Câmara é clara ao considerar o que é obsceno. “A polêmica em torno do episódio da Bienal do Livro aconteceu em função de um simples beijo, o que não se aplica à nova legislação em qualquer hipótese”, diz, em nota.
Questionada se o texto não abre exceção para que um governo conservador censure discussões sobre o grupo LGBT+, a Secom respondeu que “sexualidade continuará sendo tratado normalmente em sala de aula, sempre conforme as diretrizes curriculares e o conteúdo acadêmico produzido pelos próprios professores da rede municipal de ensino”.
No caso específico da obra de Gregório de Mattos, a prefeitura defendeu que “não é adepta de qualquer tipo de censura e defende o livre pensamento”. “O acesso a livros dentro da rede pública municipal ou em eventos apoiados pelo município obedecerá aos critérios de faixa etária aplicados, por exemplo, nas salas de cinema da cidade, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente e a legislação nacional, estadual e municipal vigente sobre o tema”.
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