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'Sem censura': Interpretação de 'obscenidade' e 'palavrão' gera debate sobre lei em Salvador

Por Jamile Amine / Rodrigo Daniel / Matheus Caldas / Rebeca Menezes

'Sem censura': Interpretação de 'obscenidade' e 'palavrão' gera debate sobre lei em Salvador
HQ foi censurada no Rio por beijo considerado 'conteúdo sexual' | Foto: Marvel
Em meio à polêmica em torno da tentativa do prefeito Marcelo Crivella de censurar de uma HQ que estampava um beijo entre dois homens, durante a Bienal do Livro, no Rio de Janeiro, na última semana (clique aqui e saiba mais), Salvador ganhou uma nova lei que regulamenta a divulgação de imagens, músicas ou textos para crianças e adolescentes em eventos promovidos pelo poder público municipal.

Proposta pelo vereador Sidninho (Podemos) e sancionada pelo prefeito ACM Neto (DEM) no dia 4 de setembro, a lei “Infância sem Pornografia” proíbe “a divulgação e o acesso de imagens e músicas obscenas”, com o objetivo de “estabelecer o respeito dos serviços públicos municipais à dignidade, em especial, de crianças e adolescentes, pessoas em desenvolvimento e em condições de especial fragilidade psicológica”.

A lei em questão aplica-se a qualquer material impresso, sonoro, audiovisual ou de imagens, incluindo os didáticos, paradidáticos ou até cartilhas, que possam ser entregues ou ser acessados por crianças e adolescentes.

Para o dispositivo, será considerado “pornográfico” ou “obsceno” o material “cujo conteúdo descreva ou contenha palavrões, imagens eróticas ou de órgãos genitais, de relação sexual ou de ato libidinoso”. A exceção se dá apenas para “apresentação científico-biológica de informações sobre o ser humano e seu sistema reprodutivo”, respeitando a idade “apropriada”. Após sancionado, o texto deve ser regulamentado nos próximos 90 dias para que haja definição de quem terá a competência para a fiscalização. A multa em caso de descumprimento pode chegar a 20% do valor do contrato ou patrocínio, ou até sanções administrativas caso a infração seja cometida por um servidor público municipal.

Junto com a nova lei, vem o questionamento sobre a possibilidade de que, no futuro, ela seja interpretada de forma que possibilite alguma forma de censura pelo poder público, já que os conceitos de “pornografia” e “obscenidade” podem variar de acordo com o perfil ideológico do governo. Cartilhas de educação sexual voltadas para jovens LGBT+, por exemplo, poderiam ser consideradas inadequadas por políticos conservadores. No caso de Crivella, por exemplo, o prefeito e bispo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) argumentou que o beijo entre dois homens vestidos seria "conteúdo sexual" e que a sua iniciativa visava "proteger as crianças".

Na avaliação de Djalma Thürler, diretor teatral e coordenador do Curso de Especialização em Gênero e Sexualidade na Educação (UFBA/UAB/CAPES) e do NuCuS (Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas e Sexualidades), o episódio da Bienal do Livro no Rio de Janeiro expõe de forma clara “o heteropatriarcado que sustenta essa política e, claro seus posicionamentos contra a diversidade e as dissidências sexuais”. Para ele, é importante que a leitura sobre a lei não seja feita sem uma revisão crítica das noções de obscenidade, erotismo, pornografia, e sua relação com a moral, a estética e as ideologias dominantes. “Basta lembrar da exposição ‘Queermuseu’, em Porto Alegre (saiba mais aqui), e a performance ‘La Bête’, de Wagner Schwartz, no MAM, em São Paulo (entenda aqui) para se ter uma ideia do grau de histeria que os conservadores estão fazendo com a produção artística – e científica, também – não normativa”, exemplifica o pesquisador.

Thürler destaca ainda que a questão importante, de fato, não é a divulgação ou acesso de crianças e adolescentes ao que a lei chama de pornográfico ou obsceno. “Não criamos nossas crianças em bolhas, elas estão vivas em seus bairros e comunidades tendo, inclusive, suas subjetividades formadas, atravessadas por essas informações. É ingenuidade ou ignorância sociológica achar o contrário”, defende o artista. “E mais, pensar assim significa proibir que adolescentes de 13, 14 anos leiam poemas de Gregório de Mattos, o Boca do Inferno, patrono da Fundação Cultural do Município e quem dá o nome do principal aparelho cultural da prefeitura. Por isso, a frase dita pelo prefeito de Salvador em suas redes sociais, a de que somos a cidade da diversidade e que aqui é proibido censurar soa, no mínimo, paradoxal porque, se dos poemas de Gregório pululam palavrões, seria o poeta barroco censurado?”, questiona Djalma Thürler, fazendo referência ao anúncio do prefeito ACM Neto, de sediar a Bienal do Livro na capital baiana, em 2020 (clique aqui).
 
"PREOCUPAÇÃO EXACERBADA"
Procurados pelo Bahia Notícias, contudo, os secretários municipais de Educação (Smed) e de Cultura e Turismo (Secult), Bruno Barral e Cláudio Tinoco, respectivamente, não acreditam que a legislação permitirá censuras em eventos culturais e educativos da cidade.
 
Para Barral, a lei tem a intenção de preservar crianças e adolescentes. “Você já viu algum evento educativo com conteúdo pornográfico ou obsceno? Eu não conheço. Mas, em hipótese nenhuma, a lei vai cercear a cultura e arte. É mais uma medida produtiva para garantir a formação pessoal dos nossos meninos”, declarou.
 
Ao ser perguntado se um texto do poeta Gregório de Mattos com palavrões seria censurado, Barral defendeu que este tipo de conteúdo seja oferecido de acordo com a idade. “Não dá para uma criança de três, quatro anos, que está aprendendo, ter a indicação dessas obras de Gregório de Mattos no processo de leitura”, pontuou. “Quando se cria uma lei transforma-se em política pública e, independente do governante, ela precisa ser traduzida dentro do que diz. Não acho que há margem para esse tipo de distorção, tipo de censura. Acho que é uma preocupação exacerbada. O objetivo não é censura, mas sim pautar as coisas corretas”, acrescentou.
 
Na mesma linha, Tinoco fez questão de frisar que a legislação não se aplica a espaço privados. “E nós sabemos que a prefeitura municipal de Salvador na gestão do prefeito ACM Neto não vai admitir qualquer ato de censura ou retirada de conteúdos literários, bibliográficos”, pontou. Para ele, a lei “explicita a responsabilidade para que se tenha conteúdo apropriado para criança e adolescente”.
 
LEI É CLARA
Autor do projeto inicial vindo da Câmara de Vereadores, o líder da oposição na Casa, Sidninho (Podemos), acredita que o conceito abordado no projeto não abra espaço para a subjetividade. “Ela já dá uma vedação ao que, hoje, não está sendo apresentado. Acho que com o conceito não tem como dar subjetividade a esse processo”, opinou.
 
O parlamentar defendeu o conteúdo da HQ que sofreu tentativa de censura, e falou sobre o que acredita ser obsceno. “O obsceno não depende de gênero. Depende do grau de promiscuidade, e de prejudicial à criança e ao adolescente. São músicas pejorativas, são gestos chulos, algo que violente o direito da criança e do adolescente”, declarou. “Não se confunde com a discussão sobre a bienal. O próprio prefeito ACM Neto (DEM) já anunciou que a bienal seria aqui em Salvador. Ele sancionou a lei já sabendo o que estava fazendo”, acrescentou.

 

Em resposta ao BN, a Secretaria de Comunicação do município garantiu que a gestão “defende a livre liberdade de expressão, de pensamento e de gênero, e já demostrou isso em diversos momentos, com ações práticas e defesas veementes dessa premissa” e avaliou que a legislação aprovada na Câmara é clara ao considerar o que é obsceno. “A polêmica em torno do episódio da Bienal do Livro aconteceu em função de um simples beijo, o que não se aplica à nova legislação em qualquer hipótese”, diz, em nota. 

 

Questionada se o texto não abre exceção para que um governo conservador censure discussões sobre o grupo LGBT+, a Secom respondeu que “sexualidade continuará sendo tratado normalmente em sala de aula, sempre conforme as diretrizes curriculares e o conteúdo acadêmico produzido pelos próprios professores da rede municipal de ensino”. 

 

No caso específico da obra de Gregório de Mattos, a prefeitura defendeu que “não é adepta de qualquer tipo de censura e defende o livre pensamento”. “O acesso a livros dentro da rede pública municipal ou em eventos apoiados pelo município obedecerá aos critérios de faixa etária aplicados, por exemplo, nas salas de cinema da cidade, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente e a legislação nacional, estadual e municipal vigente sobre o tema”.