Fala, Albuca!: A primeira obra de arte essencialmente brasileira
Partamos do princípio de que há uma diferença entre uma arte brasileira e uma arte simplesmente feita no Brasil. É nesse contexto que o “Abaporu“ de Tarsila do Amaral é a primeira obra de arte essencialmente brasileira.
Inicialmente quando começou a pintar o quadro, a ideia era ser um presente de aniversario de Tarsila para seu marido na época, Oswald de Andrade. O resultado foi esse que é até hoje o mais famoso e mais valioso quadro brasileiro. Não tinha nem sequer um nome. Foi Oswald que ao vê-lo disse “é o homem plantado na terra“, e então nasceu a ideia que iria mudar definitivamente a noção de arte nacional: a antropofagia. Aquele homem plantado representa para eles o homem antropófago. O ser brasileiro por natureza.
Do tupi, aba (homem), pora (gente), ú (comer). O homem que come gente.
Batizado então o quadro que melhor representará o modernismo brasileiro nas artes plásticas, esse homem da terra é quem irá comer de uma cultura para poder reinventá-la. É a partir desse quadro de 85cm de altura e 73cm de largura que Oswald escreve seu “Manifesto Antropófago“ e inaugura uma arte essencialmente brasileira.
Esse manifesto propõe que façamos a arte brasileira tal qual um antigo ritual indígena em que a tribo vencedora devorava a carne do guerreiro mais forte entre os perdedores com o intuito de absorver sua força. Em termos culturais, Oswald espera que a arte brasileira absorva de outras culturas para podermos criar uma arte essencialmente brasileira. A antropofagia cultual é dialética: é inútil negar a influência europeia, indígena e africana na formação da identidade brasileira, porém a arte brasileira não pode se resumir a isso. É preciso assimilar a estética estrangeira mas na intenção de deglutir suas características e ressignificar seus elementos.
Datado de 1928, esse homem plantado ainda é uma referência para pensarmos o papel do fazer artístico na construção da imagem da brasilidade no contexto nacional e internacional.
É na antropofagia cultural que o Brasil ganha repercução no cenário das artes plásticas no mundo, e o quadro de Tarsila sintetiza tudo que o movimento quis transmitir. Antes do modernismo o que temos é essa arte « feita no brasil » mas que nada tem de brasilidade. A “Batalha do Avaí“ de Pedro Américo é interessante do ponto de vista ilustrativo da historia da arte no Brasil, mas não da arte do Brasil. É o “Abaporu“ que carrega todo um contexto verdadeiramente nacional, é ele que transforma a cultura europeia dominante da época em algo nacional. A técnica lisa de pintura, moda europeia da época, e o modelado de influência cubista serviu para criar o “Abaporu“, o primeiro quadro nas cores verde, amarelo e azul.
Hoje o quadro mais valioso do Brasil está em Buenos Aires e sua repatriação não é um assunto urgente. Embora exista no mundo da arte uma especulação de valor de obra estimado em U$45 milhões é impossível obter um número exato, isso apenas uma futura negociação poderá nos dizer. A titulo de informação, para fazer uma estimativa de preço no mercado da arte sobre uma obra que não está à venda, ela é feita a partir do valor do seguro pago para sua exposição: U$45 milhões é apenas o preço que hoje é pago à seguradora da obra.
O fato do quadro não estar no Brasil fisicamente não precisa ser um problema, ele continua cumprindo sua função projetando a arte brasileira no mundo. Aqui o mais importante é sabermos reconhecer a necessidade dessa arte essencialmente brasileira. Tudo que foi feito antes do modernismo tem seu valor dentro do seu contexto mas é a partir desse movimento que a brasilidade é um elemento essencial ao fazer artístico. É reconhecendo o Outro que criamos a nossa identidade. A antropofagia do Abaporu de Tarsila ainda pode ser a solução para a valorização social e investimento em uma arte propriamente dita brasileira.