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Impacto da música baiana na transformação da moral social: reflexões filosóficas

Por Gel Varela

Impacto da música baiana na transformação da moral social: reflexões filosóficas
É perceptível e observável que a música como manifestação natural sempre esteve presente em todas as culturas e civilizações. Desde o princípio dos tempos ela tem sido expressão do ser humano enquanto produtor e produto da mesma, demonstrando experiências individuais e coletivas no campo do comportamento, costumes e hábitos.
 
A música assemelha-se à linguagem: ela diz algo frequentemente humano. Os sentimentos despertados pela música podem levar à percepção e despertar a compreensão do ser humano quanto ao viver, estar e pertencer ao mundo, a partir dos efeitos emocionais e psicológicos do existir e do interagir em sua forma integral.
 
Porém, diante da constatação factual de que a cultura musical baiana de massa – caracterizada por estilos de música como “Axé” e “Pagode” –, construída, desenvolvida, midializada, mantida e explorada pela indústria cultural na atualidade, circula em todos os ambientes sociais, tempo em que manifesta como resultado, através de algumas atrações deste seguimento, uma ausência de razão, bom senso e boa intenção, caracterizada, inclusive, pela falta de moral, ética e estética, nos leva inclusive, a observar na sociedade um evidente “apagão” de experiências honradas, no que diz respeito à concepção da “arte da música” como elemento transformador da consciência do ser humano, quer seja no campo individual, quer seja para a coletividade; pois é flagrante a presença de um discurso de massa alienado na música baiana, revestido por uma harmonia pobre e repetitiva, ainda que decorada com um excesso de fragmentos percussivos para a promoção do “balanço”, do “molejo”.
 
É claro o objetivo da música de massa: estimular no ser humano movimentos frequentes nos punhos e na cintura, o que o filósofo Platão chamaria de estímulo às “almas irascíveis e do apetite”, disseminando claramente a violência e a volúpia, contribuindo, finalmente, com o processo do consumo e do comportamento alienado.
 
Assim, se torna cada vez mais evidente o quanto a música baiana de massa vem dando demonstrações da promoção da agressividade e da erotização precoce na juventude, de modo que não se pode precisar a que fim isso possa chegar. Por isso, diziam os antigo,  quanto mais ruidosa é a música, tanto mais melancólicos se tornam os homens, tanto mais decadente o país.
No entanto, cumpre considerarmos que, uma vez identificadas as consequências da agressividade e erotização precoce provocada pela música, torna-se evidente a imperiosa necessidade de tentarmos contribuir para reverter a ampliação do caos, contendo e/ou minimizando tal problema, através de uma proposta de Educação que utilize o real da música, sua magia, harmonia, ritmo e discurso, pois a música enquanto discurso, linguagem e expressão do ser humano, poderá contribuir para a manifestação das Virtudes ou dos Vícios.
 
Tanto a boa música produz um bom caráter, como um bom caráter produz uma boa música, em uma dialética ascendente, pois, quando o ser humano, enquanto artista/músico usa o ignóbil como base de suas ações/canções do seu dia a dia de relações/composições, demonstra haver em si a falta de grandeza, graça e gratidão significativas, e, na sociedade: produz a incisiva quebra de valores nobres; fomenta a dúvida do valor de toda experiência honrada na música; dá margem para o uso da falta de razão, bom senso e boa intenção na cultura; bem como fomenta a fragmentação de toda educação da espécie. E não é isso que queremos ver florecer na sociedade.
 
Já tivemos, na nossa própria história, exemplos honrados na musicalidade baiana, como Moraes Moreira, Armadinho Macêdo, Aroldo Macêdo, representantes da geração do Trio Elétrico Dodô e Osmar, que transmitiam um sentimento de liberdade, entusiasmo e alegria contagiantes, principalmente na década de 1970, quando o carnaval já era considerado o grande fenômeno produzido pela música espontânea na Bahia, ou seja, música produzida por um espírito livre e de simplicidade autêntica, capaz de conduzuir uma multidão de maneira a promover a alegria e a ordem desprovida de interesses financeiros, ao contrário dos dias de hoje em que promovemos a euforia e a desordem, com fins mercadológicos, e pior, em nome da promoção da alegria. 
Verificamos dois claros exemplos da música espontânea com discurso em prol da ordem, trabalhadas pelos artistas supracitados: “A bordo dessa marcha lenta a gente se orienta, no passo, aqui quem erra, é por escolha.” (Aroldo Macedo, Abordo de 85, 1984, Trio Életrico Dodô e Osmar). Essa música tem um forte apelo à ordem, à unidade de comportamento, dando direcionamento, ritmo e pulsação com expressão de alegria. “Não nego tirei a máscara, que até agora escondeu meu sentimento: a mais rara das jóias que Deus me deu.” (Mores Moreira e Aroldo Macêdo, Vida e Carnaval 1980, Trio életrico Dodo e Osmar). Neste segundo exemplo, percebemos um discurso que arremessa o sujeito pensante, ainda que entretido, à concepção reflexiva de disposição de caráter, valorando a dimensão intrapessoal do ser, o sentimento. Por fim, vemos em Moraes Moreira um grande “toque” no sentido de não transformar alegria em euforia: Outro exemplo: “Carnaval não brigo, carnaval eu brinco, desabafo com amor a minha dor, alegria desafia a violência.” (Osmar Macêdo e Moraes Moreira, Alegria desafia a Violência - Taiane, 1980).
 
Tivemos também como produto desse entusiasmo peculiar da época o movimento da Tropicália, com músicas permeadas por um forte discurso transformador, revolucionário, político e questionador daquela realidade, a nós presenteadas por muitos artistas, tais como: Tom Zé, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Este último consagradamente representa em si a grande capacidade sintética de usar ritmos, harmonia e discursos para uma construção moral de uma ética humanista e libertadora, com, por exemplo, suas obras musicais “Se eu quiser falar com Deus” e “Realce” com as quais este artista arremessa o sujeito pensante às mais profundas reflexões da Vida.

A partir dos anos 1980, a onda da indústria cultural começa a agir e a interagir de maneira mais forte com a nossa cultura musical, criando um novo conceito para nossa música espontânea, o “Axé Music”; e, com isso, o fetichismo se instala. Inicialmente, nos convida, enquanto ouvintes, aos mesmos ideais de alegria existentes fortemente até aquele momento, porém com um dircurso que buscava definir a Bahia como uma referência turística; e a nossa música passa a ser mera ferramenta publicitária para este fim.

O conceito Axé Music tem um estilo marcado por canções fáceis, curtas, animadas e que fazem alusões recorrentes ao sol, às praias e às belezas naturais de Salvador, da Bahia, do Brasil e, é claro, ao carnaval. Uma mistura de sons, compassos e coreografias – Abandonando o a riqueza do discurso aprofundado, pacifista e ordeiro da geração anterior. “Um gênero composto por guitarras, baterias, teclados, violão e, principalmente, percussão. Eclético e, ao mesmo tempo, com um ritmo próprio e único. As melodias são quase sempre associadas ao verão e à sensualidade baiana.” (MOURA, 2001, p. 215 apud SILVA, 2009, p.16). 
Um dos resultados deste modelo é a construção de um discurso unidimenciolnal, horizontal, sem nenhum complemento filosófico, fazendo com que os ouvintes se tornem meros consumidores passivos que não exercitam nenhuma crítica ao padrão estético que tenta ser globalizado.Tal modelo exerce fascínio com um pretexto de ser uma canção prazerosa divertida e inocente; porém tal apelo, com suas variantes, exerce forte coercitividade, fazendo com que, gradativamente, o prazer ingênuo se torne volúpia no ser humano e se amplie como lascívia na sociedade.
 
Contudo, fica evidenciado que nos ultimos anos a nossa música passou a ser pano de fundo a serviço do entretenimento mercadológico. Pois a música que era de um caráter divertido e reflexivo passa a ser apenas uma música meramente divertida, comprometida com a distração; portanto, alienada em si mesmo, pois assume ela em toda parte, e sem que se perceba, o trágico papel que lhe competia ao tempo e na situação do cinema mudo.
 
Se perguntarmos a alguém se “gosta” de uma música de sucesso lançada no mercado, não conseguiremos furtar-nos à suspeita de que o gostar e o não gostar já não correspondem ao estado real, ainda que a pessoa interrogada se exprima em termos de gostar e não gostar. Em vez do valor da própria coisa, o critério de julgamento é o fato de a canção de sucesso ser conhecida de todos; gostar de um disco de sucesso é quase exatamente o mesmo que reconhecê-lo.
 
Uma música sem dicurso, sem questionamento, é mera decoração superficial de um produto a serviço da lucratividade dos ditos empreendedores da música de entretenimento da cena cultural baiana. Esse padrão musical atuante, que se repete até os dias de hoje, produz a aniquilação do gosto pela sabedoria na música.
 
Concluímos, então, dedutivamente, que, na atualidade, a falta de educação na música considerada de massa, aqui entendida como “Axé” e “Pagode”, recebeu influência direta do processo histórico da falta da música na educação, pois, com efeito, a música atual, na sua totalidade, é dominada pela característica de mercadoria, tornando-se efêmera, fugaz e de gosto duvidoso. 
Assim, fazendo uso da clareza da razão, é possível afirmarmos que a inserção da música na educação não é mais uma opção disponivel, mas sim uma imposição necessária, definida, inclusive, por lei (a Lei 11.769). Acredito que se essa Lei for bem aplicada, não precisaremos da Lei anti-baixaria.
 
* Gel Varela  é diretor da Fundação Ocidemnte – Organização Cientifica de Estudos Materiais Naturais e Espirituais e Assessor da Secretaria de Educação de Lauro de Freitas.