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UNEGRO: 34 anos de existência e resistência

Por Ângela Guimarães e Edson França

UNEGRO: 34 anos de existência e resistência
Foto: Divulgação

Hoje, dia 14 de julho de 2022, a UNEGRO completa 34 anos de atividades no Brasil, foi fundada numa noite amena de quinta-feira, dia voltado a Oxóssi, no panteão africano é o Grande Caçador, o astucioso Senhor da riqueza e da liberdade, seus arquétipos coadunam com o que o movimento negro tem perseguido desde as múltiplas formas de resistência a exploração e opressão escravista aos dias atuais de combate ao racismo: liberdade e prosperidade. A tomada de Bastilha e outros eventos que sucederam a Revolução Francesa são também importantes simbolismos do dia 14 de julho, considerando que esse episódio guarda princípios que açularam o abolicionismo nas Américas e a Revolução Escrava do Haiti.

 

O ano de 1988 foi marcado por dois episódios de alta relevância para memória e institucionalidade nacional: centenário da Abolição e promulgação da Constituição Federal, após a longa noite da ditadura militar de 1964-1985. A UNEGRO nasce, em meio as turbulências dos debates que ocorreram em avaliação aos 100 anos do fim oficial da escravidão, denunciando a Abolição inacabada, acolhendo os principais acúmulos do movimento negro brasileiro - na ocasião focado na desconstrução do mito da democracia racial e na luta por melhores condições de vida para a população negra - e priorizando a luta pela superação do neoliberalismo, que já se apresentava com sua face terrivelmente perversa; bem como a luta contra violência do Estado, entendendo a violência como uma arma política, utilizada cotidianamente pelas elites no Brasil, com vistas a controlar o ímpeto oriundo do inconformismo das massas as opressões, injustiças e desigualdades.

 

A UNEGRO surge como mais uma indelével marca dos comunistas organizados na luta contra o racismo e o colonialismo, como linha de continuidade de experiências históricas ocorridas em diversos períodos e territórios a exemplo do Movimento Negritude e de Independência Africana de Aimé Cesaire, Amílcar Cabral, Tomás Sankara, Samora Machel e Agostinho Neto, das e dos revolucionários pretos que deram vida aos Blacks Panthers e assustaram a elite estadunidense pela predisposição de enfrentar fisicamente as agressões racistas, dos dirigentes e intelectuais, também revolucionários, como George Padmore, Osvaldão, Helenira Resende e Clóvis Moura, que deixaram legados acolhidos pela UNEGRO, por isso, ainda recém fundada, já era uma organização madura e pronta para os duros embates que sucederam a sua fundação.

 

São 34 anos de atuação ininterruptas, de contraposição efetiva ao racismo, combate à exploração do nosso povo e de enfrentamento as diversas formas de opressões que conformam os instrumentos de dominação política imposto pela burguesia nacional. Sempre conscientes do caráter antissistêmico da luta contra o racismo, por isso denunciamos no documento “Extermínio Programado da População Negra” as mãos do imperialismo em conluio com a Escola Superior de Guerra (ESG) na contenção de vidas negras e pobres no Brasil, através da violência policial e civil, grupos de extermínios, esterilização em massa de jovens negras, omissões e abandono a própria sorte para morte lenta de contingentes populacionais nos grotões de extrema pobreza, e presença das Forças Armadas como a suprema máquina de letalidade. Esta luta se atualiza neste contexto de implementação de uma política de morte por um governo genocida amparada em setores do Exército que atualiza sua função auxiliar no projeto de ultraliberalismo e necropolítica por meio das convicções expressas no documento o “Projeto de Nação – O Brasil em 2035”.

 

Estivemos em todas as lutas populares em defesa da classe trabalhadora, da soberania nacional, pelo aperfeiçoamento da democracia, ainda uma abstração e sempre distante da maioria negra dos brasileiros. Fomos às ruas com os caras pintadas para exigir o impeachment de Collor, lutamos contra as políticas neoliberais e entreguistas de Fernando Henrique Cardoso, compusemos os processos políticos e eleitorais que elevaram Lula e Dilma à Presidência da República, resistimos o Golpe que derrubou sem crime de responsabilidade a primeira mulher que chegou à Brasília como Presidenta do Brasil. Estamos na resistência ao neofascismo e a Bolsonaro, ao tempo que nos mantemos na trincheira que está promovendo o retorno de Lula. A UNEGRO não tem dúvidas, os ambientes de democracia, prosperidade e soberania são férteis para pauta antirracista, embora a experiência brasileira sinalize que devemos ousar mais nas mudanças e criar mecanismos com mais financiamento, maior capilaridade e força institucional capaz de sobreviver ataques e tentativa de liquidação das políticas como os vividos nas terríveis eras Temer e Bolsonaro.   

 

A UNEGRO tem DNA frentista, consideramos que os espaços de luta popular, luta contra o racismo apropriados de pautas adequadas devem ser fortalecidos, por isso envidamos esforços na construção da Coordenação Nacional de Entidades Negras (CONEN), Congresso Nacional de Negras e Negros do Brasil (CONNEB), Fórum Nacional de Mulheres Negras, Convergência Negra, Coalizão Negra por Direitos e Frente Nacional Antirracista (FNA). Estivemos na construção de marchas e eventos coletivos do movimento negro, destacadamente: Marcha para Brasília em memória ao Tricentenário de Zumbi, em 1995; organização do Congresso Continental dos Povos Negros da América, também em 1995; participamos da construção do 1º, 2º e 3º Encontro Nacional de Mulheres Negras; Caravana a Cabrália e Porto Seguro, Bahia, no evento denominado “Brasil Outros 500: resistência indígena, negra e popular”, em 2000; todo processo preparatório e a composição da caravana nacional que participou da III Conferência Mundial Contra o Racismo, em Durban, África do Sul, no ano 2001; Marcha Zumbi + 10 em 2005; I Encontro  Nacional de Juventude Negra; Marcha das Mulheres Negra a Brasília, em 2015, dentre outros. Igualmente nos movimentos populares, estivemos na fundação do Fórum Nacional de Lutas, da Coordenação de Movimentos Sociais (CMS), da Frente Brasil Popular (FBP), da Frente Povo Sem Medo, da Campanha Nacional Fora Bolsonaro.

 

De 1988 aos dias atuais, a UNEGRO compôs todos os capítulos da luta do movimento negro e antirracista, somos solidariamente artífices da derrocada do Mito da Democracia Racial, superando o imobilismo provocado pela negação. Apresentamos ao Estado, as instituições e a sociedade brasileira as vísceras do racismo, seu caráter estrutural, multiforme e policêntrico (como dizia Clóvis Moura), lutamos por sua criminalização e hoje não é possível racionalmente negar o racismo e seus malefícios a população negra e ao país. Fato que abriu espaços nos partidos, sindicatos, organizações não governamentais geridas pela sociedade civil, nos espaços de controle social, parlamentos e na gestão de governos, em diversas esferas, a acolher a dimensão racial nas suas estruturas organizacionais e nas ações políticas. Mudamos a face das universidades públicas com as Cotas Raciais e estamos incidindo nos currículos, com isso elevando as condições do gozo dos direitos civis da população negra e enfrentando o epistemicídio herdado desde o saque, sequestro, travessia de corpos africanos ao Atlântico com vistas a escravização. Aprovamos as Cotas nos concursos públicos buscando incidir e derrubar as barreiras que impedem o acesso da população negra aos postos de trabalho decente. Lutamos e conquistamos um conjunto de legislação, o Estatuto da Igualdade Racial, que busca corrigir os danosos efeitos do racismo na vida da maioria negra da população. Ampliamos a intolerância ao racismo, combatemos o racismo recreativo e o racismo institucional, denunciamos a violência do racismo contra as religiões de matriz africana, a perseguição à infância e juventude negras por meio do sistêmico genocídio, o feminicídio das mulheres negras, a violência política que recai sobre mulheres negras candidatas e eleitas.

 

Os desafios a luta antirracista se sucedem, pois, ao admitir o caráter estrutural do racismo, compreendemos a existência de um conjunto de práticas e normas discriminatórias historicamente constituídas que, independentemente das opiniões individuais e coletivas, promovem privilégios econômicos, sociais, políticos, culturais, educacionais para um grupo racial em detrimento de outros. Logo, nossas instituições, ordenamento jurídico e práticas sociais, em última instância, são uma espécie de “fábrica reprodutora de racismo”, por isso o Brasil é um dos países mais desiguais e violentos do planeta, aqui o racismo é resiliente.

 

A UNEGRO compreende que a pauta do movimento negro é extensa, se dá no campo econômico, político, ideológico, cultural, religioso, somos uma potência encarceradora, temos as polícias mais letais do planeta, sub-representados nos espaços de poder e decisão, as favelas são verdadeiros bantustões que abrigam mais de 17 milhões de brasileiros, dos quais 72% são negros (segundo dados do Instituto Data Favela), as mulheres negras se mantém na base da pirâmide acumulando toda ordem de desvantagens decorridas de uma sociedade desigual, misógina e um Estado violador de direitos, ou seja, a lista é grande. Por isso, ao tempo que completamos 34 anos, estamos focando na derrota política e eleitoral do neofascismo com a retirada de Bolsonaro do Palácio do Planalto através do voto, eleição de Lula e um conjunto de medidas que retirem nosso povo da indignidade da fome e da pobreza; determinação de percentual do pré-sal para o Fundo Nacional de Igualdade Racial; percentual de negros na gestão, administração direta e indireta, autarquias, estatais, embaixadas, etc.; instituir um Ministério com força institucional real, orçamento adequado e capacidade operacional, além de instituir órgãos de igualdade racial capilarizados nos ministérios e na Presidência da República; e retomada das políticas de igualdade racial adequando e/ou atualizando, segundo o quadro vigente. Também focamos no esforço de eleger uma bancada negra nos parlamentos brasileiros, ampliando nossa presença e poder de decisão sobre as pautas que incidem na vida de milhões. Obviamente essas ações têm o poder de interferir na melhoria da qualidade de vida do nosso povo, mas são insuficientes para provocar o fechamento da “fábrica de racismo”. Para realizar esse feito, estaremos em permanente processo de mobilização e disputa de consciências junto ao povo e às instituições que nutrem a utopia da construção do socialismo no país de maior presença negra fora do continente africano.

 

*Ângela Guimarães é socióloga e presidenta Nacional da UNEGRO/ Edson França é historiador, vice-presidente Nacional da UNEGRO

 

*Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do Bahia Notícias