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A morte mais perto

Por Santiago Gómez

A morte mais perto
Foto: Acervo pessoal

Ser pobre é ter a morte mais perto. Você pode morrer de fome dentro de casa, queimado com o querosene enquanto cozinha, de uma bala da PM após botar um pé na rua, por falta de atendimento médico, na rua de frio. Mas a insegurança que vende é o medo branco. Trabalho na sala da casa que alugo no Santo Antônio além do Carmo, e um homem negro, com um boné vermelho e o rosto machucado, me interrompeu enquanto escrevia, para me dizer que é usuário de drogas, que alguém jogou uma pedra na cabeça dele enquanto dormia, e que felizmente nada aconteceu. A ferida é grande. Pediu grana, ofereci um sanduíche, pediu um copo de água, dei as duas coisas, e continuou andando. Quem mora na rua tem dificuldade para acessar à água. Penso no meu primo: negro, na família achamos que era filho de peruanos, a irmã da minha mãe e o marido adotaram, foram buscar ele numa favela e levaram dentro de uma mochila. Meu primo morreu de frio, morando nas ruas de Buenos Aires. Vício é uma merda.

 

Há um mês internaram a mãe da mulher com quem me relaciono. A senhora morava no Calabar, era diabética, e o açúcar foi para 500, nível superior a 125 é perigoso. A mulher não estava comendo direto, e isso complicou o negócio. O aparelho para medir a glicose não estava funcionando e estava sem fitas para medir, por falta de dinheiro. Há tempos que a mulher está com problemas cognitivos, se perde, não reconhece familiares, não sabe se é de dia ou de noite, porque o açúcar corroeu o cérebro. Antes de 2018 a mulher estava de boa, conseguia trabalhar, o marido tinha uma banca de frutas, que perdeu durante a pandemia. A mulher faleceu há duas semanas.

 

Sexta passada fui ao samba de São Lázaro, e encontrei um homem que estava passando mal, também diabético, levava várias horas sem comer. Ele estava sentado na sarjeta, com as costas apoiadas num carro, do lado do carro um moço tocava samba no pandeiro. Me aproximei para bater palmas na roda, e pisei sem querer no homem negro que estava passando mal. Me desculpei, ele disse tudo bem, e por como estava achei que era cachaça. Fiquei na roda de samba, mas girei a cabeça, olhei para ele e estava cinza, todo suado. Me aproximei, perguntei se precisava ajuda e pediu para eu ligar para o SAMU. O cara deve medir mais de um metro e oitenta, uns cento e quinze quilos, tava com dificuldade para respirar. Falei para se concentrar na respiração, inspirei e expirei para achar com ele o ritmo que conseguiria. Depois abanei ele por quase quarenta minutos, até que chegou a ambulância. Eu disse para ele: oh, justiça divina! Um branco abanando um preto. O cara riu.

 

Trabalhei na saúde, fui diretor assistencial do SUS numa subprefeitura de São Paulo, assim que sabia a informação que devia dar para o SAMU. A moça que atendeu a ligação me repassou com a médica, disse para ela: sexo masculino, diabético, obeso, não quis açúcar, está cinza, suado, frio, e após que eu disse frio a médica disse “ai, vai para óbito”. Meu cu fechou na hora. Puta que pariu, vou ver morrer o cara, pensei. A médica disse que enviaria a ambulância, eu pedi para ele ficar tranquilo, a ambulância estava a caminho. Nos primeiros dez minutos estive bem preocupado, olhava cada movimento dele, para gravar na memória, caso me acontecer de novo, poder identificar os signos o antes possível.

 

Aproximou-se um homem com boné do PT, que ficava preocupado toda vez que o homem fechava os olhos. Não durma, não, dizia o companheiro. Após uns minutos se aproximou uma enfermeira, tomou o pulso. Disse para eu pedir ambulância, respondi que tinha pedido. Não há nada para fazer, disse a mulher e eu respondi que sim: aguardar com calma. O SAMU chegou, levaram ele para uma UPA, estabilizaram, e felizmente o pico de glicemia não deu problema neurológico nenhum.

 

Uns dias após aquilo, após acabar uma matéria sobre o Brasil, para a agência jornalística da qual faço parte, fui dar um mergulho na praia da Preguiça. Desci pelo elevador do plano inclinado, o que está na frente da Cruz do Pascoal, e fui andando. Na praia anterior, a que está antes do restaurante Amado, tinha três PM, um bombeiro com roupa de mergulho, e uma mulher que andava de um lado para o outro. Quando me aproximei consegui ver o corpo coberto com lona preta, os pés negros estavam para fora. Me aproximei de um homem que estava com camisa da seleção argentina, perguntei se a pessoa tinha afogado, e respondeu que não. Mataram ele, disse. Perguntei se foi a PM, e me perguntou se não tinha visto nos jornais a história dos dois irmãos. O outro jogaram no mar, mas a correnteza não levou. Acham que o corpo do outro jovem jogaram na prainha, pero da Ribeira.

 

Três semanas atrás, aqui no Barbalho, seis da tarde, uma moto parou na Siqueira Campos, na frente de um jovem com tornozeleira, que estava sentado junto com duas mulheres, uma grávida. O jovem correu, o homem da moto, com capacete, começou atirar. Deu na barriga de uma das mulheres e em uma jovem que estava indo ao ponto de ônibus, após o trabalho, e também deu no jovem negro. Ouvi que foi PM e que o jovem tinha roubado o neto de um policial. Ouvi também que fazia uns dias estava circulando que procuravam o moço.

 

Levo sete meses morando em Salvador e só corpo preto que vi se fodendo. A pobreza trata disso, de ter a morte mais perto.

 

*Santiago Gómez é jornalista, mestre em Literatura, licenciado em Psicologia e psicanalista

 

*Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do Bahia Notícias