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A fragilidade e letargia do sistema penal brasileiro

Por Lucas Cavalcanti / Élio Ricardo Azevêdo

A fragilidade e letargia do sistema penal brasileiro
Foto: Divulgação

Ramón Gómez de la Serna, célebre e fecundo escritor espanhol, assim referiu-se a Franz Kafka: “Muerto precozmente, así se libró de que le dijesen las malas palavras de “si imita a si mismo”, pero que quede bien asentado para siempre que nadie se parece a FK. Solo se parece a FK el verdadero FK!!”

 

Seguramente, e como bem dito no trecho acima, a ninguém é dada a dádiva de sequer parecer-se com Kafka. Igual sorte, contudo, não encontrou suas obras, uma em especial, “O Processo”, que pela vida foi, infortunadamente, imitada.

 

Na citada obra literária temos Josef K., atônito protagonista de um romance que conta a história de um indivíduo que é processado sem saber o motivo, numa cristalina crítica ao sistema judiciário que, de forma autoritária, sem oferecer-lhe condições de defesa, ou ao menos conhecimento das razões da acusação, faz-lhe sucumbir à claustrofóbica exaustão.

 

Já na vida real, ainda que se assemelhe à mais grotesca ficção, o protagonista, não de um romance, mas de uma verdadeira “via crucis” (uma vez que encarcerado por mais de 15 anos) é o Cícero, um nordestino, cearense, desumanizado sem que sequer houvesse um processo contra si, quase sem voz, não fosse a intercessão do Dr. Roberto Duarte, vocacionado advogado de Juazeiro do Norte-Ce, na mais verdadeira acepção da palavra.

 

Muito pior do que nas destrutivas linhas do romance de língua alemã deu-se às vísceras de Cícero José de Melo, conforme recentemente circulou nas redes sociais, que, como dito, ficou preso no Ceará por mais de 15 anos, sem qualquer processo formalizado contra si.

 

Pretende-se aqui, com tal paralelo, demonstrar-se, além de que a vida imita a arte, a total fragilidade, a absoluta letargia de um sistema judiciário despótico e burocrata que, assim como no romance, falhou com o indivíduo deixando-o, por conta dessa estrutura arcaica, encarcerado por 15 longínquos anos, em total negação do estado democrático de direito, submisso à pura forma dos processos burocráticos.

 

O Absenteísmo do Cícero e seu encarceramento ilegal fora notado pelo advogado criminalista Dr. Roberto Duarte que mostrou ser muito mais que um vocacionado para a trincheira da defesa, mostrou-se um ser humano capaz não apenas de ouvir, mas de escutar, escutar o relato de um companheiro de cela do Cícero e se indignar com a situação, partindo para uma ação efetiva de justiça. Verdadeiro exercício de humanidade. Habemus, ainda, verdadeiros advogados criminalistas!!!

 

Mas, mais do que ora tratarmos acerca do gesto nobre, repita-se, de enorme orgulho à verdadeira advocacia criminal, o trágico caso traz-nos à tona a imperiosa necessidade de reflexão acerca do nosso sistema penal, não para assacar acintosamente culpados, mas sim para refletirmos acerca das escolhas da justiça criminal que desejamos.

 

São inúmeras as aleivosias que nos deparamos no dia a dia da nossa justiça criminal que corroboram para acontecimentos tais quais estes, cabendo-nos aqui citar apenas alguns destes absurdos, como por exemplo, de prisões em flagrante que se perpetuam no tempo sem análise e sem sequer haver conversão em outra medida cautelar, bem como prisões em flagrante validadas com invasão de domicílio sem autorização formal, falsas memórias testemunhais, “reconhecimento de pessoas” à margem da lei.

 

E assim seguimos, como nos casos de prisões preventivas decretadas “ex ofício”, excessos de prazos, processos criminais que dormem, não só em braços de Morfeu, como em berços esplêndidos por anos a fio, ausência de análise das prisões em flagrante a cada 90 (noventa) dias, quando não nos deparamos com a inominável troca de mensagens e ideias entre acusação e “julgador”, juízes que querem combater criminalidade, sistema inquisitorial acentuado, sem falar no período de pandemia, onde as audiências de custódia têm sido renegadas, júris que não se realizam, por corolário, se refletindo em réus que ficam presos preventivamente à mercê de advogados abnegados…

 

A passos de tartaruga, numa letargia incalculável, podemos contar nos dedos melhoras pontuais, a citar: impossibilidade de conversão de prisão em flagrante em preventiva “ex officio”, a adoção do sistema “cross examination” nas oitivas de testemunhas e não mais o sistema presidencialista, exigência para que policiais que precisem entrar em uma residência para investigar a ocorrência de crime e não tenham mandado judicial registrem a autorização do morador em áudio ou vídeo, conforme recentemente se viu no Habeas Corpus 598051/SP tendo como Relator o Ministro Rogério Schietti Cruz, da Sexta Turma, julgado à unanimidade.

 

Volvendo, contudo, à questão do cidadão, do brasileiro Cícero José de Melo, não há dúvida do absurdo, principalmente levando-se em conta que tanto o CNJ quanto o CNMP exigem do juiz da execução penal e do promotor de justiça respectivamente que realizem inspeções regulares nos estabelecimentos penais, justamente para avaliar as condições gerais da cadeia, bem como de seus internos. Falharam!! Falharam com o cidadão!! Pior, falharam com alguém desmerecidamente!! Falharam com alguém que sequer houvera falhado... O que é ainda pior!!

 

Cícero foi desumanizado e, literalmente, conduzido ao cárcere. Numa situação até mesmo, quiçá, inimaginável ao próprio Kafka, sem processo, sem formalização e, pior, mantido nele, obviamente tendo sido deletado das inspeções, estatísticas, do mapa. Lamentável!!

 

Aplausos ao nobre e honroso causídico que demostrou que a advocacia criminal não é, e não deve ser vista e vivida como um balcão de negócios de honorários, mas sim como uma atividade que deve enveredar, antes de tudo, pelo caráter humanista de essencialidade, de exercício de amor ao próximo, ainda que perante as mais extremosas situações.

 

Os desvios na estrada da vida, sejam pessoais ou institucionais devem servir de lição, jamais como alvo para simples admoestações; mas, para construções críticas, para repensarmos as instituições e a forma de agirmos a fim de que não “esqueçamos” outros Cíceros.

 

Que nos sirva de lição...

 

*Lucas Cavalcanti é advogado, professor de direito, especialista em ciências criminais, membro do IBADPP e Élio Ricardo Azevêdo é advogado, professor de direito, especialista em ciências criminais, doutorando em direito penal pela UBA-Arg

 

*Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do Bahia Notícias