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Sub-pandemias: afeto é medicamento em escassez?

Por Ícaro Gibran

Sub-pandemias: afeto é medicamento em escassez?
Foto: Acervo pessoal

As relações de afeto são ou deveriam ser as primeiras experiências do sentir humano, se considerarmos que ultrapassam as paredes uterinas e alimentam ainda que corda não haja entre o sentir e o nutrir. Começar estas reflexões deste ponto pode soar estranho visto que o afeto é também parte do ser social, qualquer sexo lhe seja atribuído. Explico ainda: como sentir se não em relação a algo ou alguém? Quais parâmetros haveria se a ternura não passasse por interlocução? Não posso e nem sequer devo atribuir o afeto primeiro à maternidade – não sou mãe, não serei e nem, ainda, viverei a experiência da gestação. O afeto de mãe é paradigma de que não trato por força de ordem moral, homem que sou.

 

Quando as recordações doem de forma leve (e assim o é pelo obstinado trabalho do tempo correndo ponteiros e rotações terrestres) a nostalgia revela a profundeza em que se fizeram corais certas emoções. Lançando os feixes de luz que as desvelam, qual imagem emergindo de águas desconhecidas, uma dessas memórias me surge numa ou outra expedição.

 

Sentada estava minha mãe sobre um banco de caminhão removido, era a sala de casa e meu pai partia. Minha ingênua percepção infantil me fez chorar as lágrimas da mulher. Palavras duras, não sei quais, e o homem caiu na estrada (era seu ofício). Ali senti momentaneamente não mais o cuidado daquela que me tutelava e amava nas quarentenas de ausência de meu pai. Senti exatamente o que eu mesmo pensava estar ela a sentir. E secando o sal dos olhos de ambos, havia compaixão e afeto.

 

O menino aprendera algo que até aqui o traria. Nas letras, cores, numerais que me ensinara enquanto primeira mestra, esta mulher da qual se fala, e que diz muito sobre mim, foi múltiplas e incansáveis na luta contra seus sofrimentos cronificados. O tal afeto não se dissolveu nas dores. Na atualidade continua igual (não o casamento dissolvido, mas a doação aos verdadeiramente seus). Ainda hoje me veio o xarope para a tosse que se inicia, a preocupação com o sono e, em sigilo, a oração.

 

Mas sei que afeto é antes prumo para o desenvolvimento em comunidade. Quando nas relações viciadas do poder que massacra e escraviza, este é sentimento que se faz substância para as mandingas/artifícios da insurreição. Insurgimos também do afeto e nele nos resguardamos para uma passagem mais fluida pelo mundo das coisas tangíveis e intangíveis. Utilizar-se dele é compromisso que se firma pela saúde do mundo, que já anda pelas tabelas dadas as estruturas em vigência e as manifestações do domínio da paixão [em sentido filosófico] – que enclausuram, acossam, subalternizam e exterminam. Não é pela vivência da pandemia destes idos de 2020 que urge tratar afeto. Lembremos: como aspecto da vida social, afeto é assunto de todo tempo, pois chagas outras expurgam os fluidos das discrepâncias sociais desde que mundo é mundo.

 

E falar sobre afeto me chegou como encomenda que ele próprio embalou, endereçou. Aabrir esta caixa demandou estar atento e forte. O porvir em confluência com a memória assusta e é datado o afeto de que fala a filosofia ocidental desde, ou mesmo antes de Aristóteles. Mas este de que tratamos é princípio grande demais para caber nessa única vertente de produção do pensar e do conhecer. Esta abordagem se coloca na perspectiva da filosofia e das práticas ocidentais, da ancestralidade africana que tem por base o cuidado, dos povos originários de América, enfim. Cuidemos então de pensar em quem esteve antes e em como aqui chegamos. Amemos e perdoemos a nós e nossas mães. Ser lançado neste mundo dói, de fato. Lidar com nossos próprios demônios, igualmente.

 

Sejamos diretos? Afetividade não é e não se pode tratar como moeda de troca, fatura corrente nas redes de relacionamento e comunicação virtual. Não se metrifica aquele de que se gosta pelas interações em tempo de quarentena. Veja quantas são as responsabilidades sobre o manejo do afeto em sentido amplo e quantas aqui tangenciamos. Desta mesma forma, nossas amigas, amigos, colegas, os nossos pares estão aturdidos diante da ameaça, do medo, da crueldade, envoltos em suas próprias questões psicossociais, trabalhos remotos (ou não), questões familiares, conduzidos pelo reclamar de uma produtividade subumana. O que temos aprendido sobre afeto e sobre como ele se manifesta? De que modo o manipulamos? É retorico, mas repense se assim o puder.

 

Como ato último dessas reflexões que trago, proponho pensar de maneira afável não apenas acerca do receber, mas, de sobremaneira, de doar-se ao afeto como aspecto de cura – a depender, pode ser vacina. Solidarizo-me, então, afetiva e consternadamente, com as mulheres brasileiras (e as do mundo) em situação de violência doméstica decorrente das abusividades de um patriarcado de pouco afeto e muita paixão – pelo domínio, destaque-se. Isto asseverado em tempos de Covid-19. É o que vemos nos dados, no noticiário, na casa vizinha. Outros seriam os motivos para a indignação que antecede a solidariedade [temos assistido o genocídio do povo negro]. Esta é solidariedade que se estende às populações marginalizadas e oprimidas, expostas interseccionalmente ao vírus da invisibilização. O sei como LGBTQIA+ que também precisa de afeto e foi acolhido por aquela mãe que chorou num banco de caminhão. Que todes pudessem tê-la. De afeto, todes, enfim, precisamos.

 

*Ícaro Gibran, bacharel em Comunicação Social (UESC) e pós-graduando em Gestão Cultural

 

*Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do Bahia Notícias